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O presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan e a primeira-dama Nancy Reagan, em evento de homenagem a ela por seu trabalho no combate às drogas, em agosto de 1988 | MIKE SARGENT/ AFP
O presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan e a primeira-dama Nancy Reagan, em evento de homenagem a ela por seu trabalho no combate às drogas, em agosto de 1988| Foto: MIKE SARGENT/ AFP

Alguma coisa estava incomodando Ronald Reagan naquele fim de semana de agosto de 1982, com essa exceção, tranquilo. 

“Na C.B. outra vez”, o presidente anotou em seu diário. “Mais trabalho dos sábados, mais uma carta longa que preciso escrever a Loyal. Estou preocupado com ele. Ele está muito mal de saúde.” 

O neurocirurgião pioneiro Loyal Davis, sogro de Reagan, morreria poucos dias depois. 

Outra coisa também preocupava Reagan: que seu sogro à beira da morte era ateu, segundo a maioria das definições do termo. 

“Nunca consegui subscrever à divindade de Jesus Cristo nem a seu nascimento imaculado. Não acredito na ressurreição dele, nem creio no céu ou no inferno como lugares”, Davis escreveu certa vez. “Se as pessoas se lembrarem de nós quando estivermos mortos e falarem de nós com prazer e alegria, essa será nossa recompensa divina.” 

Ronald Reagan, por outro lado, acreditava que todos um dia enfrentariam o julgamento divino e pensava que o de Loyal estava se aproximando. Por isso ele, o homem mais poderoso do mundo, deixou todo o resto de lado, muniu-se de uma caneta e se lançou numa missão urgente: salvar uma alma. 

“Querido Loyal”, Reagan começou. “Espero que você me perdoe por isso, mas ando querendo lhe escrever desde que conversamos ao telefone. Sei do sofrimento que você está passando e acredito de todo coração que existe algo que pode ajudar com isso...” 

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A carta datada de 7 de agosto não faz parte dos documentos presidenciais disponíveis ao público na Biblioteca Reagan. Topei com ela no início deste ano numa caixa de papelão contendo objetos pessoais de Nancy Reagan. A biblioteca me deu acesso aos objetos como parte de minhas pesquisas para uma biografia da falecida primeira-dama. 

Reproduzo trechos da carta aqui com a permissão do Instituto e Fundação Presidencial Ronald Reagan. 

A descoberta dessa missiva íntima, quatro páginas de papel timbrado da Casa Branca guardados aleatoriamente numa pasta, me fez parar para refletir. Não é preciso ser crente você mesmo nem pensar que as políticas de Reagan se alinhavam perfeitamente com os ensinamentos cristãos para apreciar o que essa carta particular revela sobre ele. 

Pude sentir a intensidade sincera de Reagan, o cuidado com que ele refletiu sobre o que ia escrever. Nem uma palavra do texto manuscrito em sua letra pequena e redonda tinha sido riscada. Será que o presidente escreveu e revisou várias versões, enviando finalmente aquela que dizia exatamente o que ele queria transmitir? Perto do final da carta havia três manchas de líquido. Café derramado? As lágrimas posteriores de alguém? 

A linguagem usada por Reagan não possui a elegância, burilada por um redator de discursos, que normalmente associamos ao presidente que ficaria conhecido como o Grande Comunicador. A carta é uma profissão de fé íntima e humilde. Reagan é “Ronnie”, que garante a seu sogro: “Nos foi prometido que esta é apenas uma parte da vida e que uma glória maior nos aguarda”. 

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Foi “um milagre”, escreveu Reagan, que “um homem jovem de 30 anos, sem credenciais de acadêmico ou sacerdote, tenha tido mais impacto sobre o mundo que todos os professores, cientistas, imperadores, generais e almirantes que já viveram, somados”. 

“Ou ele foi quem disse que foi ou ele foi o maior charlatão que já viveu. Mas será que um mentiroso e charlatão sofreria a morte que ele sofreu?” 

Para melhor ou para pior, a fé religiosa é utilizada em nossa política como prova de que aqueles que nos lideram partiram de uma base feita de valores. Os americanos parecem esperar devoção religiosa de seus presidentes. Sondagens de opinião realizadas ao longo dos anos sugerem que pelo menos quatro em cada dez americanos não apoiariam um candidato qualificado em outros quesitos, mas que não acreditasse em Deus. 

Fé particular

Ronald Reagan era um enigma para os conservadores sociais: ele surgira da Gomorra de Hollywood, era divorciado, sancionou a lei de aborto mais liberal do país quando foi governador da Califórnia e, presidente, raras vezes pôs os pés numa igreja. 

Mas em 1980 ele conseguiu arregimentar um exército de fundamentalistas para derrotar o cristão devoto Jimmy Carter, que lecionava na escola dominical e se casara com sua namorada dos tempos do colégio, de sua cidade natal. 

Aquela eleição assinalou a emergência da direita religiosa como uma força na política. Hoje em dia o nome de Reagan é evocado habitualmente por líderes evangélicos quando eles são pressionados a explicar o acordo suspeito que selaram com um presidente hedonista e narcisista que não parece ser motivado por nenhum código moral. 

Tudo isso gerou um certo cinismo em relação ao que Reagan acreditava de fato. Será que realmente tem importância o que um presidente carrega no coração e como ele vive sua vida pessoal? Ou as únicas coisas a levar em conta são quanto ele reduziu os impostos e qual é o viés dos juízes que ele nomeia? 

Alguns partidários do presidente Donald Trump chegaram ao ponto de denegrir o 40º presidente para louvar o 45º. Em julho, em meio a uma nova onda de furor em torno dos alegados casos extraconjugais de Trump com uma atriz pornô e uma modelo da “Playboy”, Robert Jeffress, um pastor da Primeira Igreja Batista em Dallas, riu e disse à Fox News: “Já passamos por isso antes”. 

Em seus tempos de ator, disse Jeffress, Reagan foi “um mulherengo conhecido”. 

A verdade é que Reagan ficou arrasado quando sua primeira esposa, a atriz Jane Wyman, o deixou. Nos poucos anos entre essa separação e seu casamento com Nancy Davis ele levou uma vida social ativa que foi devidamente acompanhada pelas colunas de fofocas. (“Um solteiro recentemente criado é vigiado com olhos de lince, e um simples jantar a dois é retratado como um novo romance”, ele lamentou certa vez.) 

Mas não há evidências de que ele tenha sido qualquer coisa menos fiel e devotado a Nancy depois que eles se casaram. Reagan e Nancy sempre eram ironizados pela paixão que um tinha pelo outro. 

A carta a seu sogro – o único homem que jamais chegou perto de Ronnie na estima de Nancy – revela como a fidelidade conjugal estava entremeada às crenças religiosas de Reagan. Ele a enxergava como fonte de felicidade nesta vida e de recompensa na próxima. 

Loyal Davis e a mãe de Nancy, Edith, ambos os quais tinham passado por divórcios quando jovens, foram, de muitos modos, um exemplo para o casal Reagan. 

“Loyal, você e Edith conheceram um grande amor, um amor muito maior do que é dado a muitas pessoas. Esse amor não acabará com o fim desta vida”, escreveu Reagan. “... tudo que é necessário é que você creia e diga a Deus que você se entrega às mãos dele.” 

A carta teve algum impacto? Nancy Reagan, que estava com Loyal Davis quando ele morreu e salvou a carta que ele recebera de seu genro, diria mais tarde que, de fato, seu pai se voltou a Deus no final de sua vida. 

Dois dias antes de sua morte, em 19 de agosto de 1982, Davis pediu a presença de um capelão do hospital e orou com ele, disse Nancy. “Notei que ele estava mais calmo e com menos medo.” 

Terá sido uma conversão em seu leito de morte? Talvez isso não passe de uma expressão dos desejos de sua filha. 

Mas uma coisa é certa – algo que não deve ser esquecido hoje, quando pessoas religiosas racionalizam suas lealdades políticas. Para Ronald Reagan, a fé religiosa não era um estratagema eleitoral. Suas palavras privadas mostram que ela era seu ponto de partida e seu centro.

Tradução por Clara Allain

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