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Chico Buarque recebeu na terça-feira, dia 21, o polpudo Prêmio Camões.
Chico Buarque recebeu na terça-feira, dia 21, o polpudo Prêmio Camões.| Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo

O cantor, compositor, escritor, dramaturgo e ativista político Chico Buarque foi agraciado, na última terça-feira (21), com o prestigiado Prêmio Camões. O prêmio é um dos maiores da literatura mundial (em termos monetários) e rende ao contemplado cem mil euros (cerca de R$449 mil), pagos pelos cofres públicos de Portugal e do Brasil. A parte que cabe ao contribuinte brasileiro é pago pela Fundação Biblioteca Nacional.

O Prêmio Camões, tradicionalmente ignorado pela imprensa brasileira, ganhou alguma (não muita) relevância em 2017, quando foi concedido ao escritor Raduan Nassar, coincidentemente também um ativista político à esquerda. Na época, ao embolsar os cem mil euros a que tinha direito, Raduan Nassar aproveitou os holofotes para fazer discurso político, chamando o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff de golpe.

As reações ao prêmio dado a Chico Buarque, como era de se esperar numa sociedade polarizada como a nossa, foram desde os parabéns entusiasmados, sob gritos de “gênio!”, até a revolta pura e simples – mais simples do que pura.

Angústia da influência

O mito de um Chico Buarque inquestionavelmente genial não resiste a uma análise mais cuidadosa. Ele é, sem dúvida, autor de letras memoráveis, e todos da minha geração têm a sua “preferida do Chico”. A minha, por exemplo, é “Beatriz”, escrita em parceria com Edu Lobo.

O problema é que algumas das criações mais celebradas de Chico Buarque, tanto na música quanto no teatro, são obras, digamos, inspiradas no trabalho de outros artistas. A belíssima “Pedaço de Mim”, por exemplo, tem aqueles que considero alguns dos versos mais lindos do cancioneiro nacional. E, na voz de Zizi Possi, eles ficam ainda mais melancólicos:

“Leva o vulto teu

que a saudade é o revés de um parto,

a saudade é arrumar o quarto

do filho que já morreu”.

Pena que a imagem já esteja presente, como conta o jornalista Reinaldo Azevedo, em “Vida e Morte do Rei João”, peça menos popular de William Shakespeare.

Dor enche o quarto de meu filho ausente,

deita em sua cama, anda a meu lado,

sua graça assume, sua fala repete,

me faz lembrar todos os seus encantos,

preenche as roupas ocas com sua forma.”

O mesmo problema (que alguns preferem chamar de intertextualidade) aparece em “Geni e o Zepelim”, inspirada no conto “A Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. E não só. O dramaturgo Chico Buarque é também cheio de inspirações mais ou menos explícitas, da “Medéia” de Eurípides em “Gota d'Água” ao poema “A Túnica Inconsútil”, de Jorge de Lima, em “O Grande Circo Místico”.

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Não que Chico Buarque seja um plagiador, como dirão os mais apressados e exaltados. Mas ele sem dúvida sofre de uma enorme angústia da influência, para usar o eufemismo traquinas cunhado pelo crítico norte-americano Harold Bloom.

Política imoral

Um dos aspectos que mais salta aos olhos na obra de Chico Buarque – para o bem e para o mal – é a conotação política de suas letras, sobretudo as escritas na época da ditadura militar. De acordo com o imaginário histórico-cultural, Chico Buarque lutou bravamente contra os militares ignorantes usando da única arma de que dispunha: a poesia.

Tudo é muito belo, de uma beleza que resvala no piegas. Mas a realidade tem tons mais sombrios. Ouvir com atenção à música “Meu Guri”, por exemplo, é se deparar com uma ode à deturpação moral na qual o bandido é alçado à condição de herói caído no confronto com as “forças burguesas”.

Na música, a vida de um menino é narrada pela mãe enlutada. Ela, também corrompida pelos objetos de desejo do capitalismo, descreve a “labuta” do menino que se esforça para lhe dar presentes.

Chega suado e veloz do batente

E traz sempre um presente pra me encabular

Tanta corrente de ouro, seu moço

Que haja pescoço pra enfiar

O detalhe, descobrimos mais adiante, é que os presentes são roubados. O tom melancólico da música, contudo, não deixa dúvidas: Chico Buarque exalta a apropriação indevida do menino que acaba “estampado, manchete, retrato, com venda nos olhos, legenda e as iniciais” como uma manifestação de amor legítima em meio à luta de classes.

Claro que, na voz inconfundível de Elza Soares, que perdeu muito cedo o filho que teve com Garrincha, a música ganha contornos de uma tragédia realmente digna de compaixão.

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Outra música que flerta com a imoralidade política é “Morena de Angola”, imortalizada na voz de Clara Nunes. O problema, aqui, é que a música termina com “minha camarada do MPLA” – referência explícita ao Movimento Popular de Libertação de Angola, partido que governa ditatorialmente o país africano desde a independência de Portugal, em 1975, e de inspiração marxista-leninista.

Sem falar que, se não tivesse sido escrita por Chico Buarque, é bem provável que a música seria atacada por seu conteúdo machista.

Proparoxítonas

Quando da entrega do Prêmio Camões, o poeta e colega de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras, Antônio Cícero, representante brasileiro na premiação binacional, destacou a letra de outro clássico chicobuarquiano: “Construção”. “É um poema até raro de fazer”, disse ele, reproduzindo e ampliando o mito da genialidade do compositor com base nas famosas proparoxítonas no fim de cada um dos versos da longa canção. Eis um trecho:

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Talvez tenha escapado ao fã Antônio Cícero dois detalhes envolvendo “Construção”. Primeiro, as rimas pobres da música. Rimar “última” e “última” nos dois primeiros versos é algo digno dos compositores da polêmica versão de “Shallow”, gravada recentemente por Paula Fernandes e Luan Santana.

Depois, peço licença para ousar questionar a suposta raridade do “poema” de Chico Buarque. A música “Robocop Gay” (um sucesso impensável para os dias de hoje), do grupo de rock satírico Mamonas Assassinas, é quase toda escrita em redondilha maior (sete sílabas poéticas), sendo que os três primeiros versos de cada estrofe terminam em proparoxítonas.

Chico Buarque é ainda autor de uma das rimas mais absurdas da música popular brasileira. Em “Meu Caro Amigo”, ele cometeu a ousadia de rimar “futebol” e “rock’n’roll”. Mas, claro, sempre haverá quem veja nisso sinal de incontestável genialidade.

Vanguarda tardia

Na década de 1990, Chico Buarque, cansado de ser o gênio inquestionável da MPB, resolveu se lançar escritor. Estorvo, seu livro de estreia, foi um sucesso de público – menos pelo prazer da leitura e mais porque, veja bem, é um romance de Chico Buarque de Hollanda. Quatro anos mais tarde, ele cometeu outro romance, Benjamin.

O que une essas duas primeiras incursões de Chico Buarque pela literatura é o estilo “varguardista tardio”. O autor se inspirou fortemente no “nouveau roman” francês, que fez sucesso mais entre os críticos e a Academia do que entre o público na França da década de 1950.

Mas um romance de Chico Buarque é um romance de Chico Buarque – e ai de quem contestar seu poder narrativo, suas descrições brilhantes, metáforas surpreendentes e finais emocionantes.

Depois de um hiato de oito anos, Chico Buarque lançou Budapeste, Leite Derramado e O Irmão Alemão que, não sendo estorvos, tampouco são dignos de colocar o compositor no panteão dos grandes escritores da nossa língua – embora se saiba que sempre haverá uma cadeira na Academia Brasileira de Letras especialmente reservada para “o Chico”.

Shallow now

Numa época em que compositores se unem para fazer a versão de uma música de sucesso e não conseguem encontrar solução melódica melhor do que “juntos e shallow now”, numa época em que o sertanejo universitário, com sua apologia à bebedeira e ao sexo casual, parece estar presente até mesmo nos ouvidos de certa elite esclarecida, parece uma heresia questionar as qualidades estéticas e éticas da obra de Chico Buarque.

Não é. Heresia é ter um cantor, compositor, romancista aplaudido antes do primeiro acorde e da primeira frase, como que por inércia, seja porque ele tem aqueles lindos olhos claros, seja porque “conhece como ninguém a alma feminina”, seja porque lutou contra a ditadura, seja porque não tem vergonha de, do alto de seus 74 anos, entoar com sua inconfundível voz o coro de Lula Livre.

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