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Cena do documentário “O Diálogo Entre Fé Cristã e Ciência no Brasil”, produzido pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.
Cena do documentário “O Diálogo Entre Fé Cristã e Ciência no Brasil”, produzido pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.| Foto: Reprodução/YouTube

É possível ser cientista e cristão? Para os fundadores da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²), a resposta é “sim”. Criada em 2016, durante uma conferência nacional realizada no Instituto Mackenzie, em São Paulo, é resultado de três anos de mobilização iniciada pelo pastor Guilherme de Carvalho, da Igreja Esperança Belo Horizonte.

A organização tem como objetivo, declarado em seu site oficial, “promover a comunicação e a integração entre a comunidade cristã e o campo científico no Brasil”, atuando como “uma embaixada de sentido entre o universo da fé cristã e o universo da ciência”.

A palavra-chave para os membros da ABC2 é diálogo. O grupo se propõe a “desenvolver e promover visões cristãs bíblicas sobre a natureza, o escopo e as limitações da ciência, e sobre as interações entre ciência e fé”.

E estimula também os cientistas que são cristãos a se manter engajados em suas igrejas locais, tanto quanto no ambiente de trabalho, de forma a “responsabilizar-se pelas implicações éticas, sociais e ambientais da ciência e da tecnologia, e a comunicar o evangelho na comunidade científica”.

Essa é uma meta viável?

Roberto Covolan, físico, ex-professor da Unicamp e presidente da associação, afirma que sim: “Existe o mito, surgido em meados do século 19, de que ciência e religião estão e sempre estiveram em campos antagônicos, o que não é verdade”.

“A ciência moderna surgiu no seio de uma Europa cristã, e o cristianismo contribuiu de forma significativa para o surgimento e a permanência do empreendimento científico. Houve muitos cientistas cristãos”, complementa Covolan.

Para ele, existe uma confusão entre ateísmo metodológico e metafísico: “O ateísmo metodológico tem a ver com o fato de que, quando um cientista investiga fenômenos naturais, ele busca causas naturais. Fazer uso desse método não significa esposar o ateísmo metafísico, que á uma visão de mundo”.

“Como dizia Eugene Scott, ex-diretora do Centro Nacional de Educação Científica dos Estados Unidos”, cita o físico, “ciência não nega nem se opõe ao sobrenatural, ela apenas o ignora por razões metodológicas. Enquanto a ciência se preocupa com o processo, o significado último das coisas está na esfera teológica”.

“Preocupações pastorais”

Resultado de anos de convívio entre pesquisadores cristãos de diferentes pontos do Brasil, a ABC2 conta com apoio financeiro da Templeton World Charity Foundation, fundada na Pensilvânia, em 1987, e dedicada a estimular o contato entre ciência e religião.

A entidade realiza eventos e cursos, publica livros, originais ou traduzidos, e produz vídeos didáticos sobre temas relacionados aos pontos de encontro entre fé e ciência.

Apresentados pelo professor, filósofo e teólogo Pedro Dulci, alguns desses vídeos respondem a perguntas como: “Um cientista pode crer em milagre?”; “A Bíblia é um livro de ciência?” e “O universo precisa de Deus para ser explicado?”.

O objetivo é sempre reconhecer e respeitar as características dos dois campos, o da fé e da ciência, buscando pontos de contato entre eles.

Nas sedes regionais da associação, pesquisadores de diferentes áreas buscam pontos de intersecção entre o que a ciência alcança, possíveis interpretações teológicas para conclusões vindas do ambiente acadêmico e mesmo explicações da fé para questões não explicadas pela ciência.

Como afirmam os professores da Faculdade Unida de Vitória Abdruschin Schaeffer Rocha e Kenner Roger Cazotto Terra em artigo, a associação grupo segue “traços teológicos neo-calvinistas”, cujos associados demonstram ter “preocupações pastorais”.

“Ao enfatizar o diálogo”, dizem os pesquisadores, “a ABC2 afasta-se do paradigma do conflito, difere da proposta de relação de independência e privilegia a interação construtiva entre ciência e fé”.

Roberto Covolan lembra que as reações, tanto entre cientistas quanto entre religiosos, são de desconfiança: “Não diria que experimentamos perseguição ou preconceito, mas existe um pouco de incompreensão. Por outro lado, temos percebido uma acolhida cada vez maior”.

Confronto na biologia

O convívio entre religião e produção científica é mais fluido em algumas áreas do conhecimento do que em outras. Entre os cerca de 550 membros da associação, 40% são da área de humanas, 37% de exatas e 20% de biológicas – os demais 3% são simpatizantes do grupo, sem área de atuação acadêmica definida.

“O que eu diria por experiência é que é mais comum vermos cristãos em áreas de ciências mais aplicadas (engenharias, computação, etc.) do que nas ciências básicas, e dessas, a biologia é a que sem dúvida tem menos cristãos”, afirma Tiago Garros, biólogo e doutor em teologia.

“Quando me tornei professor, os alunos achavam mais estranho ainda saber que o professor de Biologia que lhes ensinava sobre Darwin frequentava igreja dominicalmente”, acrescenta ele.

“A maior linha de confronto entre ciência e fé é na área de biologia”, explica Wesley Silva, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, no documentário de quase 30 minutos de duração O Diálogo Entre Fé Cristã e Ciência no Brasil, produzido pela ABC² e lançado em 2017.

“Para eu ser um bom engenheiro cristão, eu tenho que entender como as duas coisas andam juntas e se comunicam”, afirma, no vídeo, Gustavo Assi, professor de engenharia naval da USP e secretário executivo da ABC². “Existem lugares no mundo onde conversar sobre princípios de fé na academia é natural. E conversar sobre ciência na igreja também é natural”.

No vídeo, Leo Iwai, químico e pesquisador do Instituto Butantan, lembra que, no Brasil, essa busca por diálogo ainda é difícil. “Quando eu falo que sou um cristão e sou um cientista as pessoas me olham com um certo espanto”.

Cientistas teístas

Iniciativas como a da ABC² são pouco comuns no Brasil. O biólogo Tiago Garros é fundador do TheoLab, uma organização de Gramado (RS) que tem entre seus objetivos “capacitar e encorajar jovens cristãos que adentram o mundo universitário e acadêmico e muitas vezes se sentem atacados por causa de sua fé”.

Anualmente, a entidade realiza acampamentos de ciência e fé – o mais recente, realizado no início de março, reuniu 150 pessoas.

“O Theolab surgiu oficialmente em 2019, fruto de uma necessidade que é perceptível para qualquer pessoa que tem vivência em igrejas evangélicas: a complexa e por vezes nada amigável relação que os evangélicos têm com a ciência”, explica Tiago Garros.

Garros aponta que “o projeto almeja oportunizar eventos e ambientes onde essa relação possa ser discutida de forma aberta e sincera pelos cristãos evangélicos, privilegiando o ensino de forma a mostrar que essa desconfiança e suposta inimizade entre fé e ciência não se justifica”.

“Historicamente, se você é um cientista ateu, sua chance de ganhar um prêmio Nobel é muito, muitíssimo menor. Olhando para os 100 primeiros anos do Prêmio Nobel, vemos que 65% dos vencedores eram cristãos. Somados aos judeus e a alguns poucos muçulmanos, temos que 87% eram teístas e apenas 10.5% agnósticos ou ateus”, lembra ele.

Segundo Garros, a tendência continua: “muitos cientistas de ponta são cristãos declarados, como Francis Collins, diretor geral do projeto Genoma Humano, atual diretor da NIH (maior entidade de pesquisa médica do mundo), que está na linha de frente das pesquisas de vacina contra Covid-19 e é cristão evangélico”.

Diferentemente de Roberto Covolan, Tiago Garros afirma ter identificado casos de perseguição: “Conheço relatos de perseguição mais institucional no âmbito de eventos de diálogo sobre as relações entre a religião e as ciências que eram pra acontecer em universidades públicas. Grupos ateus organizados conseguiram fazer com que fossem cancelados”.

“Parece que estudar ou simplesmente falar de religião já é visto como ‘ferir o estado laico’, o que é uma tremenda ironia quando se pensa no caldeirão religioso que é o Brasil”, conclui Garros.

Correção

Diferentemente do que foi informado na reportagem, Roberto Covolan é físico, ex-professor da Unicamp e presidente da associação, e não químico do Instituto Butantã. O texto foi corrigido

Corrigido em 14/09/2020 às 18:13
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