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Cientificismo, a religião dos engenheiros
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Cientificismo é um termo mais usado do que conhecido. Sempre aparece como xingamento, porque é ruim mesmo. Mas aparece como xingamento, em geral, na boca dos progressistas, que chamam de cientificista qualquer preocupação com a objetividade.

Cientificismo é um conceito muito importante, com uma história reveladora. Ele é a crença na capacidade da Ciência de determinar todas as questões humanas e sociais. Surgiu na França entre engenheiros. Sua primeira expressão foi o sansimonismo, um tronco do qual saíram o positivismo e o marxismo. Deste último ramo, mais prolífico, podemos dizer que brotaram todos os sistemas que visam a justificar o capitalismo de compadrio, dentre os quais o fascismo e o nazismo.

Friedrich Hayek contou essa história numa série de artigos que se transformou no livro “A Contra-Revolução da Ciência” (The Counter-Revolution of Science), sem tradução em português.

O enigma do Bem Comum

Notório por ser um economista austríaco ganhador de Nobel, Hayek foi também um defensor da democracia na hora mais difícil, a II Guerra Mundial. Foi quando escreveu para os ingleses “O Caminho da Servidão” (este, com mais de uma tradução, sendo a mais recente da editora LVM), livro em que tentava convencê-los de que a concentração de poder econômico implicava o fim da democracia. Hayek estava exilado na Inglaterra, e via lá um senso comum segundo o qual os alemães eram pessoas más que tentavam implementar um modelo virtuoso de Estado, que estava sendo conseguido pela União Soviética.

O socialismo, dizia Hayek, implica ditadura porque implica concentração de poder. Mas por que as pessoas aceitam, de bom grado, submeter-se a um ditador? Segundo ele, porque acreditam que o Bem Comum é algo facilmente discernível, e que todos os problemas da sociedade podem ser sanados se um mandatário bem intencionado tomar as rédeas para resolver tudo.

Cada discussão no Parlamento leva uma vida. Por isso, o povo crê que os políticos de modo geral demoram só porque são vagabundos, quando na verdade pensar em cada particularidade das leis de um país toma tempo e dá trabalho. Em seguida, o povo fica nervoso e delega poderes ao homem de ímpeto… Para se sentir traído em seguida, porque não concorda tintim por tintim com a noção de Bem Comum que então lhe é imposta de cima a baixo.

Mas de onde vem essa noção de que se pode resolver tudo assim, num estalar de dedos, no topo de um governo central? Segundo Hayek, é resultado da Contra-Revolução Científica, ocorrida na França do século XIX.

Revolução e Contra-Revolução

O ícone da Revolução Científica é Galileu, mas aquele que serve de marco para a conclusão do processo de criação da Ciência moderna é Isaac Newton. Na época de Galileu, o conhecimento era produzido e sistematizado na Universidade, que estava sujeita à Igreja Católica. Galileu é contemporâneo da Reforma Protestante, mas ainda não havia muita estabilidade entre os protestantes, e inexistiam movimentos laicos a subsidiar esse enfrentamento científico. Assim, o conhecimento era algo quase estático, submisso à autoridade papal, herdado da Antiguidade, digerido pelo tomismo e codificado em manuais de Coimbra.

Quer saber como se origina o arco-íris? Vá ao manual do Colégio de Coimbra, e lá constará uma explicação fundamentada em Aristóteles e numa dúzia de autoridades antigas ou renascentistas. Depois da Revolução Científica, a Ciência estava liberta da autoridade eclesiástica; só prestava contas à Razão e à Experiência. Os padres que dessem seus pulos para deixar a metafísica intacta a despeito de descobertas científicas.

Isaac Newton (1643 – 1727), em sua nação protestante, lançou a pá de cal na autoridade das universidades católicas tradicionais. Na catolicíssima França, os leigos criaram Academias laicas, os salões, as revistas, e tocaram uma pujante vida intelectual fora da universidade. Enquanto isso, no jesuítico Império Português, em 1746, era proibido ensinar as “novidades” de Newton e até de Descartes (1596 – 1650). Seguia-se aristotélico até o Marquês de Pombal expulsar os jesuítas, em 1759. Aí, também, a biblioteca do Colégio da Bahia, que formou Antonio Vieira, virou embrulho de peixe.

Mas voltemos para a parte agitada da Europa: quando Newton fez seu trabalho mais importante, deu o nome de “Princípios matemáticos da filosofia natural”, porque tinha-se, ainda, uma concepção unitária do conhecimento, de modo que a Ciência, com C maiúsculo, distinta da filosofia, ainda não existia no senso comum. A filosofia natural, ou física, era só mais um ramo da filosofia. As humanidades eram a filosofia moral. Por isso os filósofos morais entraram em parafuso, perguntando-se, desde o Iluminismo, qual a razão de a filosofia da natureza ir tão melhor do que ela.

Na França epiléptica que se seguiu à Revolução, Napoleão terminou por consagrar a Escola Politécnica como modelo ideal de instituição do conhecimento, sacolejando para lá a aristotélica Sorbonne. A técnica tratorou as humanidades, o latim e o grego deixaram de ser ensinados rotineiramente, e todo um legado clássico humanístico – Heródoto, Cícero, Tácito – caiu no esquecimento como se fosse tão obsoleto quanto a física de Aristóteles. O que os substituiria? A mesma coisa que substituiu a física aristotélica: números e fórmulas.

Gente não é objeto inanimado

Segundo Hayek, as ciências humanas e naturais demandam atitudes mentais opostas: umas devem apagar a subjetividade em nome da objetividade, enquanto que as outras estudam precisamente os sujeitos, de modo que uma total anulação da subjetividade do cientista é indesejável e até prejudicial.

Na origem da ciência com C minúsculo (da filosofia natural e da alquimia), os pensadores erravam porque tentavam penetrar no âmago das paixões e inclinações das coisas físicas: o fogo subia porque queria, etc. Quando a matéria passou a ser considerada apenas objeto inanimado, a ser medido e pesado, a Ciência andou. Mas tentar considerar agentes humanos como se fossem, também eles, meros objetos a serem quantificados, implica o suicídio das humanidades.

É preciso, porém, não confundir a subjetividade das ciências humanas com a sua total falta de objetividade, dando uma de Paulo Freire. Diz Hayek: “Enquanto, para o cientista natural, o contraste entre fatos objetivos e opiniões subjetivas é simples, a distinção não pode ser aplicada com tanta presteza ao objeto das ciências sociais. A razão é que o objeto, os ‘fatos’ das ciências sociais, também são opiniões — não as opiniões do estudioso dos fenômenos naturais, claro, mas as opiniões daqueles cujas ações produzem o objeto do estudioso. Nesse sentido, os fatos são tão pouco ‘subjetivos’ quanto os das ciências naturais, porque independem do observador particular; o que ele estuda não é determinado por sua imaginação ou fantasia: é dado à observação de diferentes pessoas. Mas, em outro sentido, se distinguimos fatos de opinião, os fatos das ciências sociais são meras opiniões, pensamentos daqueles cujas ações estudamos.”

Por isso, as ciências sociais “lidam com fenômenos que só podem ser entendidos porque o objeto de nosso estudo tem uma mente de estrutura igual à nossa. Isto não é um fato menos empírico do que o nosso conhecimento do mundo exterior. É mostrado não só pela mera possibilidade de nos comunicarmos com outras pessoas – agimos com base neste conhecimento toda vez que falamos ou escrevemos”.

Ora, quando um arqueólogo encontra uma faca numa escavação de civilização ágrafa e desconhecida, como ele poderá saber que aquilo serve para cortar, senão consultando a sua própria alma? Não há nada numa faca atestando por escrito que aquilo serve para cortar; é apenas a presunção de que nós conhecemos o Homem que nos faz crer que uma faca serve para cortar em qualquer civilização.

Há quem estude o homem apenas como se fosse um corpo inanimado, com tabelas e números? Hoje, é o que mais há. Analisei aqui um estudo dos EUA feito por gente que não pôs um pé no hospital, mas se julgava capaz de recomendar um apartheid em hospitais neonatais. Eu só posso compreender esse tipo de estudo se eu tiver uma noção das opiniões que guiam esses pseudocientistas depravados, que pertencem ao conjunto dos tarados por raça. Primeiro eles creem que os humanos só pensam naquilo — na raça — depois, saem catando dados brutos para fomentar apartheid. Fazem isso sem sequer pensar em se colocar no lugar dos médicos ou pacientes: sua humanidade não lhes confere nenhuma vantagem científica.

A religião dos engenheiros

Para além das considerações epistemológicas (isto é, relativas à filosofia da ciência) que rascunhei, Hayek também traz um histórico muito iluminador dos primórdios do cientificismo. O sansimonismo foi fundado pelo Conde de Saint-Simon, um ricaço extravagante que terminou na miséria, gabando-se de ter experimentado diversas posições sociais ao longo da vida. Os engenheiros da Escola Politécnica adoravam ele.

Ele chegou a planejar uma sociedade que girasse em torno do culto divinizado a Newton. O Concílio de Newton substituiria o Vaticano como representante de Deus, e seria composto por 21 indivíduos de 7 categorias: um trio de matemáticos, outro de físicos, químicos, fisiólogos, literatos, pintores e músicos. Os filósofos teriam sido cassados pelos fisiólogos, tal como os químicos cassaram os alquimistas. Uma das missões desse Concílio seria impedir a eterna luta de classes, que existe necessariamente entre os proprietários e os despossuídos.

Saint-Simon seria o novo Pedro dessa religião, e, com auxílio do Concílio, dirigiria o trabalho dos homens com muita inteligência e altruísmo. Estavam previstos o fim da propriedade privada e da liberdade de expressão. A concepção da participação dos artistas é uma antecipação da propaganda. Arte se torna propaganda – que é o verdadeiro nome da “arte engajada”.

O movimento alcançaria o seu pináculo com outro doido, talvez mais doido do que ele, chamado Prosper Enfantin. Também se considerava um Papa, e chegou a criar uma comuna de sansimonianos celibatários militaristas com roupinhas esquisitas e uniformizadas. Eles lembravam a Hayek o nazismo por causa do caráter proselitista, disciplinado e militarista. Enfantin, papa do Ocidente, foi ao Oriente procurar a Mulher Livre, que haveria de se casar com ele, virar papisa e trazer concórdia ao mundo. Desse movimento todo saiu a construção do Canal de Suez e a criação de bancos públicos.

Hayek acha que os hegelianos alemães eram, na verdade, sansimonianos disfarçados, depois que o movimento caiu em desgraça. Os alemães adoraram o movimento.

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