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Estátua de Mao Tsé-tung
Estátua de Mao Tsé-tung na Praça Zhongshan, no centro de Shenyang, província de Liaoning, China.| Foto: BigStock

Fome, trabalhos pesados impostos violentamente para a população, benefícios públicos como saúde e educação acessíveis somente para aqueles que tinham boas ligações familiares e incertezas constantes. Esse é um resumo muito breve da vida das pessoas na China sob o comando de Mao Tsé-tung. Ao menos é isso que conta a chinesa Jung Chang em seu livro "Cisnes Selvagens" (Trad. Marcos Santarrita, Companhia das Letras).

Não é necessário avançar muito na leitura para perceber o tom trágico do livro. Na realidade, não é preciso avançar quase nada: a dedicatória é "A minha avó e meu pai, que não viveram para ler esse livro". Ao longo das páginas, descobrimos que a avó de Chang passou anos doente sem acesso ao tratamento adequado; já seu pai foi acusado de traição pelo próprio Partido Comunista, do qual era membro, por ter levantado críticas à Revolução Cultural. O processo e o isolamento se estendeu por tantos anos que o levaram à insanidade.

Publicado inicialmente em 1991 na Inglaterra, o livro é a concretização do sonho de Chang de ser escritora, o que só se tornou possível quando ela saiu da China. Tanto que, até hoje, o livro é proibido em seu país natal.

A obra mescla um relato autobiográfico e uma pesquisa histórica detalhada para levar o leitor pelas profundas transformações sociais e políticas vividas pelos chineses durante o século XX. Para dar conta de tudo isso, Chang se inspira na vida das mulheres de sua família (principalmente sua avó e mãe) e mostra o quanto as políticas públicas interferiam nas vidas privadas.

Durante o período de um século, o país deixou de ser um Império para se tornar uma República marcada por uma grande instabilidade e permeada por conflitos internos, tão frágil que foi invadida pelos japoneses, que se tornam uma elite governante bastante violenta. O fim da Segunda Guerra Mundial expulsa os japoneses, mas traz os americanos e soviéticos – e uma consequente guerra civil por conta da crescente polarização. A guerra termina com o início do período comunista, liderado por Mao Tsé-tung.

O "Grande Salto Adiante"

Mas o que a autora nos mostra é que, mesmo durante a República Popular, que começou em 1949 e dura até hoje, a China continua sendo um país instável e sem um plano concreto. Mudanças de liderança e de alianças políticas faziam com que a agenda pública se transformasse de poucos em poucos anos, às custas de muito sofrimento da população.

No final da década de 50, por exemplo, ocorreu o "Grande Salto Adiante", movimento de crescimento econômico e industrial, que tirou a população do campo e incentivou fortemente a produção de ferro. O resultado? Uma população com fome e exausta pelo trabalho pesado. Neste período, Chang tinha apenas seis anos; mesmo assim, quando ia ou voltava da escola, "apurava os olhos sobre cada centímetro do chão, em busca de pregos quebrados, parafusos enferrujados e quaisquer outros objetos de metal enfiados na lama entre as pedras", conta. Alimentar os fornos e produzir aço era uma preocupação tão grande que até as tradicionais panelas wok foram recolhidas e derretidas.

O mesmo aconteceu com a Revolução Cultural na metade da década de 60, que abriu espaço para que a população mais jovem praticasse atos violentos com as demais parcelas da população por supostos desvios de conduta – promovendo uma troca de poder entre uma primeira geração de revolucionários que estavam descontentes com a conduta do partido por uma geração mais jovem e reacionária. É o caso do pai de Chang – decidido a denunciar injustiças do Partido Comunista, do qual era membro, é acusado e preso por traição. Com isso, fica ausente da vida familiar por anos e sofre danos psicológicos pelo resto da sua vida.

O mito era uma fraude

O ponto principal do livro de Chang é que as atrocidades acompanham a história do país durante o século inteiro. A avó, que nasceu em um período mais tradicional, viveu com os pés enfaixados (os pés pequenos eram considerados atraentes em mulheres), o que lhe rendeu problemas de postura e saúde constantes. A mãe, em busca de uma sociedade mais igualitária que não perpetuasse tradições como essa, apoia a implementação do Partido Comunista para descobrir, mais tarde, que outras injustiças e desigualdades continuaram existindo. A própria autora, em busca de fazer o que é certo, chegou a participar da Guarda Vermelha, para então descobrir que o mito construído por Mao tinha na realidade muitos problemas.

Durante sua adolescência, por exemplo, Chang trabalhou em campos de plantação, como eletricista e como médica, tudo isso sem treinamento algum (os jovens inclusive eram incentivados a sair das escolas para ter essas experiências). Quando a autora tinha 16 anos, sua família, composta por sete pessoas, estava espalhada por seis lugares diferentes – tudo isso sendo coordenado por pessoas do Partido.

Chang também conta que a China Mao era uma sociedade com muitas classes e hierarquias. "Cada um era enquadrado numa categoria rígida. Em todos os formulários, depois de 'data de nascimento' e 'sexo' vinha a inevitável coluna 'origem familiar'. Isso determinava a carreira, as relações e a vida da pessoa", relata a autora.

Desde que saiu do país em 1978, Chang nunca voltou a morar na China, mas visita o país e a família com frequência. Em um prefácio escrito em 2003, afirma: "Na China de hoje a vida é muitíssimo melhor do que a maioria das pessoas se lembra – um fato que nunca deixa de me alegrar imensamente". Ainda assim, reconhece que o país ainda precisa passar por um longo processo de liberalização – o que, de maneira otimista, acredita ser inevitável.

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