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Internados com Covid em Hospital de Campanha de Santo André
Internados com Covid em Hospital de Campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André, 16 de abril de 2021. Análise de estudos mostra que a hidroxicloroquina poderia ter ajudado de maneira profilática.| Foto: EFE / Sebastiao Moreira

Uma nova análise dos dados dos melhores estudos publicados sobre o efeito da hidroxicloroquina (HCQ) na pandemia concluiu que essa droga ajudou a reduzir a Covid-19 sintomática em 5% a 45% dos casos, em comparação a pessoas que não tomaram HCQ, se ela fosse tomada antes da exposição dos pacientes à doença. O resultado central dessa profilaxia pré-exposição, que consiste em tomar HCQ por precaução antes do contágio, é uma redução de 28% no risco de Covid-19.

Caso o medicamento fosse tomado após a exposição (profilaxia pós-exposição), tanto um efeito benéfico de redução no risco quanto um efeito maléfico moderado de aumento no risco seriam compatíveis com o que foi observado, de acordo com a análise — neste caso, o resultado central é que não haveria efeito em tomar a HCQ logo após pegar Covid.

Em outras palavras, se “tratamento precoce”, um termo preferido pelos proponentes da HCQ e outras drogas reutilizadas para a Covid, significa profilaxia pré-exposição, ele funcionou. Se significa profilaxia pós-exposição, não parece ter funcionado para essa droga.

Harvard e Espanha

O primeiro autor da análise é Xabier García-Albéniz, afiliado a uma organização não-governamental de saúde em Barcelona, Espanha, e à Universidade de Harvard. Ele é acompanhado por quatro coautores afiliados a Harvard, ao Ministério da Saúde da Espanha e à Universidade de Málaga. A análise é uma revisão metanalítica, ou seja, um estudo sobre estudos que busca agregar dados e conciliar as diferentes conclusões dos estudos individuais. Foi publicada na revista European Journal of Epidemiology, a oitava mais influente publicação científica na área da epidemiologia (entre 111) segundo o site Scimago, especializado em rankings de revistas científicas.

O foco dos autores da revisão foi nos estudos que utilizaram a HCQ como um profilático antes e depois da exposição ao vírus, como algo que evitasse a apresentação ou o agravamento dos sintomas, não como um tratamento. Estudos que utilizassem a HCQ como tratamento para um quadro estabelecido de Covid-19 foram excluídos da análise. Também foram excluídos estudos que não usaram a técnica da randomização, que é a distribuição por sorteio dos pacientes em dois grupos, um que tomou HCQ e outro que não tomou, para comparação — uma estratégia para reduzir possível tendenciosidade nos resultados.

De 72 estudos, 11 restaram para a reanálise após a seleção: sete deles tratavam da profilaxia pré-exposição e quatro da pós-exposição.

A Falácia da Linha Nítida

Xabier e colegas discutem os resultados em linguagem negativa: não se pode descartar a ideia de que a hidroxicloroquina foi benéfica como um tratamento preventivo para Covid-19, como muitos fizeram — frequentemente com motivações políticas. Eles lamentam uma interpretação errônea dos resultados dos estudos que atrapalhou os estudos clínicos que estavam em andamento no começo da pandemia e impediu que fossem geradas estimativas precisas a respeito do manejo da pandemia antes do advento das vacinas.

Essa interpretação errônea é conhecida como a “falácia da linha nítida”. Na pesquisa científica, especialmente nas áreas biológicas e médicas, convencionou-se usar uma ferramenta estatística conhecida como valor p. Simplificadamente, o valor p é a probabilidade de os resultados a favor de eficácia de um medicamento terem sido obtidos por pura sorte, em vez de por causa de um efeito real. Por uma convenção, aceita-se no máximo um valor p de 5% — em menos de cinco a cada cem vezes aqueles resultados serão observados ao acaso, então é suficientemente improvável que eles sejam por sorte e suficientemente provável que representem algo como uma diferença no risco de desenvolver Covid entre quem tomou HCQ e quem não tomou.

Se o valor p for maior que 5%, os resultados são declarados estatisticamente “não significativos”. Foi o que aconteceu com alguns dos estudos da HCQ. Mas há um debate dentro da estatística sobre a utilidade de se falar em “não significativo” e uma crítica sobre más interpretações do que o valor p significa.

Em 2016, a Associação Americana de Estatística publicou um alerta contra o mau uso do valor p. Em 2019, mais de 800 cientistas assinaram uma carta à revista Nature alertando que mais da metade de um conjunto de 791 artigos científicos traziam uma interpretação incorreta de que “não-significância equivale a nenhum efeito”. Os signatários pensavam que o problema era mais cognitivo que estatístico: “encaixotar os resultados em ‘significativos’ ou ‘não-significativos’ faz as pessoas pensarem que os itens assim classificados são categoricamente diferentes”.

Em suma, o erro de muitos jornalistas e divulgadores de ciência ao comentar os estudos da hidroxicloroquina em que o valor p foi maior que 5% é uma violação de um famoso adágio popularizado pelo astrônomo Carl Sagan: “Ausência de evidência não é evidência de ausência”. Se o valor p algumas vezes passou de um limiar arbitrário máximo, isso não significa que está provada uma ineficácia da droga, mas no máximo que não houve, na amostra e sob as condições específicas de alguns estudos, evidências suficientes a favor de sua eficácia. Pelo contrário, uma observação repetida de valores p baixos, mas acima do limiar, poderia ser contada como evidência a favor de algum efeito que os métodos não foram adequados para capturar.

Os cientistas da revisão lamentam os resultados dessa confusão: “o recrutamento [de participantes] para a maioria dos estudos de profilaxia com HCQ foi impedido de forma severa pelas interpretações incorretas das evidências” dos primeiros estudos. Os achados desses estudos foram retratados “amplamente (e incorretamente) como evidências definitivas da falta de eficácia da HCQ, simplesmente porque não eram ‘estatisticamente significativos’ quando tomados individualmente”, comentam, o que levou muitos a “concluírem prematuramente que a HCQ não tinha efeito profilático, quando a conclusão correta era que a estimativa do efeito era imprecisa demais”. Em suma, “a opinião pública interfere com a geração das próprias evidências”, alertam os autores aconselhando futuros estudos.

Revisando a revisão

A propósito da revisão a reportagem consultou o dr. Daniel Victor Tausk, que vem se manifestando publicamente de forma similar à vista nesta revisão há dois anos. Ele é professor associado do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo.

Tausk e um seleto grupo mostraram durante a pandemia uma postura moderada a respeito do tratamento precoce ausente em muitas personalidades públicas associadas à ciência: nem tanto ao céu, como os defensores mais ferrenhos do repropósito de medicamentos, nem tanto à Terra como novas celebridades com afiliação política mais nítida que afirmaram que o Brasil deveria ter se saído melhor na pandemia por causa do suposto uso generalizado de hidroxicloroquina e ivermectina.

Em julho de 2021, ele produziu um documento de 21 páginas em que analisou por si mesmo a combinação dos valores p de nove estudos das consequências clínicas da profilaxia com hidroxicloroquina e encontrou um valor p combinado de menos de 1% (passando no teste que os próprios céticos quanto à eficácia da HCQ consideravam tão importante). O próprio Tausk diz que essa reanálise está desatualizada.

Ele refez para a Gazeta do Povo parte da análise da nova revisão de Xabier García-Albéniz e colaboradores. Os autores usaram duas abordagens estatísticas, uma mais “clássica” e outra mais “pessimista”. Tausk removeu um estudo usado na revisão pois suspeita que os resultados podem ter sido atrapalhados pela forma como o estudo separou os participantes: por andares de um prédio. Há espaços fechados como corredores em que pessoas em um mesmo andar podem pegar Covid. Na abordagem clássica, o valor p da profilaxia pré-exposição da hidroxicloroquina dá 2%, ou seja, “significativo”. Na abordagem mais pessimista, o valor p é de 6,5%, acima do limiar convencional de 5%, mas não muito. O matemático calcula que a redução do risco de piora clínica com o uso da droga é de cerca de 20%, um pouco menor que a estimativa da revisão.

Reportagem na Gazeta do Povo alertou para o problema de má interpretação do valor p em estudos da hidroxicloroquina, orientada por especialistas do círculo de Tausk, em 1º junho de 2021.

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