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Vinte anos depois de ser exibido pela primeira vez, "O Clube da Luta" deixou de ser visto como sátira para ser visto até como "manual" por homens perdidos
Vinte anos depois de ser exibido pela primeira vez, “O Clube da Luta” deixou de ser visto como sátira para ser visto até como “manual” por homens perdidos| Foto: Divulgação

Há 20 anos, durante o Festival de Veneza de 1999, o mundo assistiu ao filme Clube da Luta pela primeira vez. Ao longo das duas décadas seguintes, seus temas e alegorias deixaram de ser um exagero ficcional para se tornarem a própria realidade. A sátira, graças ao absurdo que se tornou o atual contexto político e social, se converteu em paródia presciente. Os homens que não encontram lugar no mundo e buscam refúgio, primeiro, no vazio do consumismo e, segundo, na violência autoritária, alvos diretos das reflexões da trama, abraçaram o filme sem perceber que se tratava de um espelho.

Tanto o livro, escrito por Chuck Palahniuk, quanto o filme, dirigido por David Fincher, refletem sobre como o isolamento individualista da sociedade de consumo desemboca em formas de violência, inicialmente física, nas lutas corpo a corpo, e finalmente social, cujo reflexo maior seria o terrorismo doméstico. Um diagnóstico tão preciso que os produtores recearam em promover o filme em 1999, ano do massacre de Columbine, nos EUA, percebendo as relações entre um e outro mesmo as filmagens tendo acontecido antes da tragédia. A campanha publicitária, inclusive, focou muito mais nas cenas dos homens se esmurrando, apesar de o clube da luta do título ser um tema relativamente marginal da trama.

O Brasil não esteve imune à polêmica. Em novembro de 1999, durante uma sessão de Clube da Luta no shopping Iguatemi de São Paulo, o estudante Mateus da Costa Meira entrou na sala de cinema com uma submetralhadora 9mm e disparou contra a plateia, matando três pessoas e ferindo outras quatro. O assassino (e sua defesa) culpou um jogo de videogame, descartando qualquer relação com o filme, mas o estrago já estava feito. A trama, afinal, é em parte sobre como certos homens recorrem à violência como forma de causarem impacto social, não muito diferente do que estes assassinos da vida real fizeram, com a ressalva do diagnóstico de doença mental.

Atualmente Clube da Luta é visto ainda menos como a sátira que é e, por mais assustador que isso seja, mais como manual de conduta. A resposta do filme para a crise do papel social do homem deveria ser um exagero bizarro, fruto de mentes pervertidas e jamais replicada no mundo real. Não é o que acontece. Uma multidão de homens passou a idolatrar Tyler Durden como um guru existencial, oráculo que traz verdades ocultas da sociedade, sem perceber que o personagem de Brad Pitt é apenas uma projeção idealizada do Narrador vivido por Edward Norton. Se Durden é bonito e articulado, um líder carismático e autoritário nato, é porque ele é tudo o que o Narrador pensa não ser, mesmo que a revelação do final apresente fatos que provem o contrário. Mas, até aí, quem precisa de fatos para sustentar sua visão de mundo?

Muito do sucesso de Clube da Luta se deve justamente a seu diagnóstico da crise existencial masculina. Beirando o consenso, considerando que não foi exclusivo entre os grandes lançamentos de 1999. Beleza Americana, de Sam Mendes; Matrix, de Lilly e Lana Wachowski; e Como Enlouquecer seu Chefe, de Mike Judge. Todos detectam a angústia dos empregos vazios, da inexistência de sentido nas atividades sociais, que geram ansiedade, revertida em consumo. Lester Burnham, de Beleza Americana, chega a pedir demissão em uma cena curiosamente semelhante à do Narrador em Clube da Luta, trocando a violência autoinfringida do último por uma ameaça de denúncia de assédio.

Crise de identidade

Todos estes filmes vão, de alguma forma, oferecer uma resposta à crise de identidade. Seja a filosófica-existencial de Matrix, seja a passividade crítica de Como Enlouquecer Seu Chefe. A de Clube da Luta é a mais extrema, em parte por ser, à época, a mais absurda. Se estes homens se sentem emasculados pela sociedade (castração é um tema constante no filme), uma resposta possível está em recorrer aos códigos de violência física. Ser homem é ser capaz de causar dano no corpo alheio. Cada hematoma, dente quebrado e cicatriz confere a individualidade que os ternos pretos com camisa branca retiraram deles. Tyler, um líder autoritário e carismático, oferece então um novo passo: o Projeto Caos (Mayhem, no original).

O curioso no Projeto Caos é que, pela sua natureza autoritária e militarista, esses homens são novamente despidos de sua individualidade. Pior: a organização fascistóide chega a abraçar características da mesma sociedade de consumo a que se opõe ao criar “franquias” em outras cidades. Seus membros, porém, recebem uma noção de pertencimento e senso de objetivo que jamais tiveram em outro lugar.

Quaisquer semelhanças com a relação que jovens homens têm com os “Chans”, os fóruns que estão relativamente à margem da internet e nos quais eles podem destilar seu ódio contra minorias e se sentirem acolhidos, não é mera coincidência. Palahniuk, no livro, foi o primeiro a usar a expressão “floco de neve” para descrever a sensibilidade liberal que se ofende por qualquer coisa, não por acaso termo muito adotado por estas comunidades.

É possível argumentar que o sucesso de Clube da Luta entre os grupos que ele critica tão ativamente seja responsabilidade de Fincher. A edição parece ser o ápice da era do videoclipe, ágil e frenética, dá a impressão constante de que perdemos algo no que acabamos de ver. A câmera raramente vai para a mão do cinegrafista, conferindo às imagens um ar etéreo, sem julgamentos morais óbvios sobre o que está testemunhando. “Acho que as pessoas são pervertidas, essa é a base da minha carreira”, disse o diretor certa vez em uma entrevista. Há um prazer voyeurístico em seus filmes. Especialmente os que se dedicam a psicopatas, tema recorrente de sua filmografia, como em Seven (1995), Zodíaco (2007) ou Garota Exemplar (2014). Clube da Luta, por abraçar a nuance da visão de Fincher, se tornou objeto de fetiche.

A leitura de que o filme glamouriza os personagens e suas atitudes termina mais convidativa do que o contrário. Quando Brad Pitt, ícone da beleza masculina, diz coisas como “os objetos que você possui acabam possuindo você” parece profundo. E talvez seja exigir demais de um expectador que esteja buscando sentido para sua vida a compreensão de que essa frase, na verdade, não quer dizer absolutamente nada.

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