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Analistas acreditam que a tentativa do presidente da França, Emmanuel Macron, de criar um Islã esclarecido nasceu fracassada.| Foto: AFP

No dia 2 de outubro, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou medidas para conter o que ele chama de “separatismo islâmico”. De acordo com Macron, “o problema é essa ideologia que afirma que suas leis são superiores às da República”. Exatamente duas semanas mais tarde, um muçulmano checheno decapitou um professor que tinha mostrado aos alunos cartuns da revista satírica Charlie Hebdo que riam de Maomé. O Poder Executivo agora tem apoio para uma ação agressiva contra o islamismo. O ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, declarou que a França agora está “em guerra”.

Apesar dessa retórica, e apesar de muitos admirarem a postura mais agressiva, as novas medidas de Macron envolvem delegar uma “responsabilidade imensa” a uma instituição associada ao islamismo. Mais uma vez, um governo ocidental se equivoca quanto à periculosidade do islamismo.

À primeira vista, o anúncio de Macron parece expressar uma posição inédita de um governo ocidental contra a ameaça da radicalização islâmica. Em seu pronunciamento da comuna de Les Mureaux, Macron descreveu o separatismo islâmico como um projeto “religioso e político” que defende “transgressões” dos valores republicanos. Ele disse que o separatismo islâmico geralmente resulta na formação de uma “contrassociedade” na qual crianças são tiradas das escolas e atividades culturais são usadas como pretexto para ensinar princípios que “não se adequam” às leis da República. É uma “doutrinação” que nega os princípios franceses da “igualdade entre homens e mulheres” e “dignidade humana”.

A solução, para Macron, está no controle. Instituições de caridade e mesquitas, por exemplo, terão de dar publicidade às doações, sobretudo doações vindas do exterior. Atualmente, a maioria das igrejas e sinagogas francesas já são administradas por organizações religiosas registradas, mas 90% das mesquitas do país optaram por serem classificadas como “organizações culturais”, uma distinção jurídica que lhes permite revelar pouca coisa aos auditores do governo. Macron pretende criar novas medidas para pressionar as chamadas organizações culturais a se registrarem como grupos religiosos.

Macron enfatizou sua crença na importância de libertar o islamismo francês da influência estrangeira. Ele reiterou sua decisão de pôr fim ao sistema de “imãs secundários”, no qual clérigos turcos, argelinos e marroquinos podem imigrar para a França a fim de assumir o controle das mesquitas.

Entre as novas medidas estão ainda a criação de planos “anti-putsch” — uma tentativa de proteger os comitês de liderança das mesquitas da usurpação por extremistas. (Nem Macron nem qualquer outra autoridade explicou o que acontecerá às mesquitas já controladas por movimentos islâmicos extremistas como o Salafis ou Tablighi Jamaat, ou quem seriam seus sucessores).

Aos americanos, a proposta de regulamentação agressiva de instituições religiosas pode soar como algo extraordinário. Mas ainda que os anti-islamitas mais militantes possam considerar as medidas de Macron um passo na direção certa, seu “objetivo de formam e promover (...) uma geração de imãs e intelectuais” defendendo “um Islã totalmente compatível com os valores da República” é equivocado. Porque o governo estará transferindo boa parte da responsabilidade para uma organização associada ao islamismo.

Impostos sobre peregrinação a Meca

Boa parte do projeto será administrado pelo Conseil français du culte musulman (CFCM), organização criada pelo Ministério do Interior da França em 2003 para representar os muçulmanos do país. O CFCM, que agirá como intermediário do Estado, será responsável por certificar programas de treinamento de imãs e os próprios imãs, além de escreverem uma declaração que os imãs terão de assinar para não perderem a certificação. Tudo isso, explica o governo, será financiado com impostos cobrando de muçulmanos que realizam a peregrinação a Meca.

Que Islã, então, o CFCM promoverá? A instituição é conhecida por suas divisões, compreendendo membros de diferentes federações, algumas associadas a regimes estrangeiros, como o Marrocos, Argélia, Turquia e Comores. A organização também incluir o grupo Musulmans de France (conhecido como UOIF), organização francesa fundada por membros da Irmandade Muçulmana, e o movimento islâmico turco Millî Görüş, que mantém laços com o regime de Ancara.

No passado, o CFCM foi muito criticado por seu caráter subrepresentativo e por suas disputas internas. Pior, os chamados islamitas exercem grande controle sobre a organização. Ainda que alguns representantes do CFCM sejam eleitos, o sistema eleitoral em si recompensa mesquitas 0 que geralmente são financiadas ou administradas por islamitas — com uma quantidade maior de delegados. O fato de o governo usar o CFCM para esse projeto exclui a maioria dos muçulmanos franceses e também vozes reformistas e teólogos não-islamitas, muitos dos quais reclamavam que os teólogos linha-dura do UOIF haviam tomado completamente a instituição.

É difícil imaginar que o CFCM se aterá em desenvolver o “Islã esclarecido”. Ano passado, o CFCM foi criticado por declarar o hijab (o véu muçulmano) uma obrigação religiosa. Isso marcou uma guinada clara rumo ao islamismo radical, já que antes a organização reconhecia a existência de um debate em torno da questão.

O CFCM é atualmente liderado pelo proeminente líder muçulmano francês Mohammad Moussaoui, que é próximo do regime marroquino, afiliado à Irmandade Muçulmana, e também pelo ativista Abdallah Zekri. Zekri e Moussaoui também fazem parte da Fondation pour l’islam de France (FIF), organização que receberá 10 milhões de euros em dinheiro do governo para seu envolvimento com os projetos de Macron.

Tanto Zekri quanto Moussaoui são conhecidos por justificar ou menosprezar a ameaça do islamismo. No começo do ano, Zekri esteve em meio a um escândalo por ter justificado ameaças de morte enviadas a um adolescente que denunciava o Islã.

Quanto a Moussaoui, ao ser entrevistado pela senadora francesa Jacqueline Eustache como parte da investigação do Senado sobre a radicalização islâmica, ele repetiu a velha ladainha de que os islamitas não têm nada a ver com o Islã e se apropriaram tanto do termo quanto da religião em si. Ele deixou claro seu raciocínio ao tentar evitar questões sobre a Irmandade Muçulmana e a influência Salafi em certas regiões da França. Diante da insistência da senadora Eustache, ele disse que grupos não deveriam ser rejeitados por completo com base na ideologia e encorajou o combate às ideias, não às pessoas.

Assim, é de nos perguntarmos: que ideólogos linha-dura o CFCM se recusará a rejeitar como parceiros nos esforços de contrarradicalização do governo?

Ligações suspeitas

Macron não foi o primeiro a sugerir que o CFCM cuidasse da certificação de imãs. Na verdade, pouco depois dos ataques terroristas de 2015 em Paris, o próprio CFCM expressou sua vontade de cuidar das certificações. Em 2016, meses antes da eleição de Macron, o então presidente do CFCM, Anouar Kbibech, mencionou que o CFCM estava buscando esse objetivo tentando “harmonizar” um currículo diferente do usado pelos institutos privados, entre eles o Institut Européen des Sciences Humaines (IESH), da Irmandade Muçulmana.

O IESH foi fundado por membros do UOIF, também ligado à Irmandade Muçulmana. Seus programas acadêmicos foram criados por teólogos, entre os quais o clérigo linha-dura e apoiador de bombardeios suicidas Yusuf Al-Qaradawi. Seus alunos mais promissores continuam a jurar fidelidade à Irmandade Muçulmana. Entre os formados pelo IESH estão um recrutador do ISIS na Síria. E o IESH recebe centenas de milhares de dólares da Qatar Charity (QC), que tem conexões com o terrorismo. Em 2007, Mohamed Karmous, tesoureiro da escola, foi preso pelas autoridades suíças enquanto levava €50 mil em dinheiro da QC para o IESH.

Então talvez agora se entenda por que o IESH ficou tão entusiasmado com o anúncio de Macron. Na verdade, o diretor do IESH, Larabi Becheri, recentemente disse a um jornalista que a intenção de Macron quanto ao treinamento de imãs era o sonho do IESH. Becheri disse que aprovava o plano, descrevendo o CFCM como “a organização mais legítima para isso”.

Para alguns secularistas, os planos de Macron de trabalhar juntamente com o CFCM seriam melhores do que a ideia original dele de firmar um acordo segundo o qual a separação entre mesquita e Estado deixaria de ser aplicada e o Estado treinaria os clérigos diretamente. Hoje Macron insiste em dizer que o Estado francês não se envolveria com esses programas de treinamento. Ao contrário, apenas o CFCM seria responsável por criar um “Islã esclarecido” na França. Mas essa não é toda a verdade.

É o governo que escolheu delegar essa “responsabilidade imensa” ao CFCM. É o governo que participou das negociações com a Arábia Saudita para tratar da questão do Hajj (peregrinação a Meca). E é o governo que prometeu continuar exercendo uma “pressão imensa” sobre o CFCM para regulamentar os imãs franceses. A invenção do novo Islã francês será uma iniciativa liderada pelo governo e administrada pelos islamitas.

Claro que o plano conta com oposições de vários tipos. Outros islamitas franceses condenam não só as novas medidas propostas por Macron como também a retórica por ele usada. Alguns acusam Macron de ser oportunista e de focar no islamismo para evitar o confronto com outros movimentos “realmente” separatistas, citando a desigualdade econômica e a discriminação. Enquanto isso, Salafis linha-dura e da linhagem mais pura encorajam os muçulmanos a abandonarem o país, dizendo que os imperfeitos países muçulmanos são melhores do que a França.

Macron também enfrenta críticas dos dois lados do espectro político. O presidente do La France Insoumise, principal partido de extrema-esquerda francês, chamou a fala de Macron de “discurso de ódio contra muçulmanos”. E na direita muitos estão chateados com Macron porque ele não foi ousado o bastante, tomando “poucas medidas fortes e corajosas”.

Ainda que tenha sido importante o fato de Macron usar explicitamente a palavra “islamismo” e não hesitar em mencionar grupos como a Irmandade Muçulmana como uma ameaça (evitando o erro comum de se ater apenas aos jihadistas Salafi), algumas das medidas por ele propostas parecem aumentar o problema da radicalização e do extremismo islamita. Os legisladores deveriam perceber uma coisa óbvia: os islamitas não são bons parceiros quando se trata de lutar contra o islamismo.

Depois do ataque recente a um professor, a polícia francesa prendeu várias pessoas envolvidas no caso, inclusive um imã que teria estimulado uma campanha online contra o professor. As autoridades francesas também fecharam uma mesquita por compartilhar nas redes sociais um vídeo atacando o professor.

Contrarradicalização

Portanto, até mesmo as ações policiais mostram que o microgerenciamento do treinamento dos imãs proposto por Macron é uma obsessão estranha por um programa de contrarradicalização. O problema do islamismo não está no futuro; é uma realidade atual e próspera – encontrada nas mesquitas controladas pela Irmandade Muçulmana e pelos Salafis franceses, nos grupos comunitários e nas organizações de ativistas.

Seria melhor que o governo se ativesse às instituições e indivíduos extremistas que já operam em toda a França. Usando a legislação secular, o Estado poderia tomar medidas mais agressivas para incapacitar as redes islamitas – prejudicando-as financeiramente, impedindo que contem com apoio externo e contendo sua infiltração e exploração de todas as facetas da sociedade francesa.

Muita coisa poderia ser feita se o governo aceitasse algumas das sugestões recentemente publicadas pelo Senado francês. Entre as sugestões estão o banimento de clérigos extremistas como Yusuf al-Qaradawi, o treinamento de policiais franceses para monitorarem os movimentos islamitas e a criação de sistemas para alertar os governos locais de mesquitas e clérigos islamitas próximos. Programas de treinamento explicando para as autoridades locais as várias vertentes violentas ou não do islamismo ativas em toda a França também são recomendados.

O secularismo francês e o controle governamental sobre a expressão política são bem diferentes do que se vê nos Estados Unidos. Legalmente, já é possível fechar instituições radicais e multar indivíduos por discurso de ódio. Mas os governos franceses têm evitado usar esses expedientes. O governo também poderia dar mais atenção à investigação de instituição de caridade islâmicas que apoiam financeiramente vários movimentos islamitas, fechando-as sem hesitação se descobrir conexões com o extremismo.

Ao escolher o CFCM para levar a cabo seus planos de reforma islâmica, Macron está empregando uma organização indissociável das duas ameaças que o próprio Macron diz que a França tem que enfrentar: a influência teocrática estrangeira maligna e o crescimento do ultraconservadorismo islâmico na França. Já é bastante difícil para o governo francês monitorar movimentos islamitas em todo o país e intervir quando necessário. A tentativa de reformar o islamismo francês está destinada ao fracasso e desviará a atenção de problemas mais urgentes. No caos, os extremistas prosperarão.

Martha Lee é pesquisadora do Islamist Watch, projeto do Middle East Forum.

© 2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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