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Manifestantes protestam contra o cancelamento da exposição “Queermuseu - Cartografia da Diferença na Arte Brasileira”, em frente ao Centro Cultural Santander, no centro de Porto Alegre (RS), na tarde de terça-feira | CAU GUEBO/ESTADÃO CONTEÚDO
Manifestantes protestam contra o cancelamento da exposição “Queermuseu - Cartografia da Diferença na Arte Brasileira”, em frente ao Centro Cultural Santander, no centro de Porto Alegre (RS), na tarde de terça-feira| Foto: CAU GUEBO/ESTADÃO CONTEÚDO

Após o anúncio do cancelamento da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, o prédio do Santander Cultural, em Porto Alegre, permaneceu fechado no último domingo e na segunda-feira. Esta terça-feira (12), deveria marcar o primeiro dia de funcionamento normal após a retirada das obras, mas, à tarde, o espaço permaneceu fechado: um protesto contrário ao fim da exposição estava marcado para a Praça da Alfândega, em frente ao museu, e os temores de um desentendimento entre os manifestantes, os integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) que lá se encontravam e a Brigada Militar acabaram se confirmando. A manifestação, que contou com performances artísticas que faziam referências às peças da exposição suspensa, terminou dispersada pela Tropa de Choque após os membros do MBL serem expulsos do local

Desde o início da tarde, artistas, membros do movimento LGBT de Porto Alegre e o curador da mostra, Gaudêncio Fidelis, concentravam-se nas imediações do Santander Cultural preparando as ações de protesto pelo cancelamento da exposição, originalmente prevista para continuar até 8 de outubro. Divulgado pelas redes sociais, o autointitulado “Ato pela liberdade de expressão artística/Contra a LGBTTFobia” reuniu entre 800 pessoas, de acordo com a estimativa da polícia, e 2 mil, conforme afirmaram os organizadores. 

Nossa opiniãoO Queermuseu e a liberdade artística

Além das performances, os manifestantes cobriram a entrada do museu e as próprias bocas com faixas de isolamento, exibindo cartazes nos quais se liam palavras de ordem como “abaixo a censura” e “falso moralismo”. Do outro lado da Praça da Alfândega, grupos favoráveis ao fechamento da exposição – nem todos ligados ao MBL – preparavam-se para a própria manifestação, em menor número. 

Críticas

“Vivemos em um país cuja maioria da população é cristã. Temos que respeitar essa religião”, diz Denise Cristina Urruth, que faz parte do grupo intitulado “Intervencionistas” e se uniu à marcha do MBL em apoio ao cancelamento da mostra. Ela se referia principalmente a uma das obras mais discutidas da exposição, que expôs hóstias cobertas por escritos de cunho sexual. Ainda segundo a manifestante, a indignação do grupo se devia ao fato de ter havido uso de “verbas públicas” para uma exposição que fazia “apologia à pedofilia e à zoofilia”. 

A crítica é semelhante à de Paula Cassol, coordenadora do MBL no Rio Grande do Sul, que questionou tanto o caráter das obras exibidas quanto o financiamento através de incentivo fiscal. Inicialmente, a mostra também foi duramente criticada pelo prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr. (PSDB), em sua página no facebook – a postagem foi posteriormente deletada. 

A mostra no Santander Cultural contou com verbas captadas pela lei de incentivo à cultura (Lei Rouanet), que permitia ao banco aplicar diretamente em ações culturais uma parte dos valores devidos à Receita Federal. O Santander destinou à exposição de Porto Alegre R$ 800 mil e, como encerrou a mostra um mês antes do previsto, anunciou que ressarcirá o governo

Quanto às denúncias de pedofilia e zoofilia, a crítica iniciada pelo MBL chamou a atenção para duas obras em especial: “Cenas do Interior II” (1994), de Adriana Varejão, que teve uma cena destacada nas redes sociais em que um homem penetra uma cabra, e “Travesti da Lambada e Deusa das Águas” (2013), de Bia Leite, que faz referência ao meme da internet “criança viada”. 

Crianças 

Outro aspecto levantado pelos opositores do Queermuseu foi a ausência de uma classificação indicativa para as obras. O projeto de captação de recursos mencionava que a visitação seria aberta à comunidade como um todo, inclusive crianças, e o deputado estadual Marcel van Hattem (PP) difundiu em suas redes sociais uma imagem do que seria um grupo escolar visitando a exposição. “Professor que leva aluno a esse tipo de exposição não é professor. Se fosse, teria respeito pelo menor de idade e não exporia às barbaridades ali expostas, incluindo elementos de zoofilia e pedofilia”, escreveu. 

Na imagem compartilhada pelo deputado aparecia o perfil do cientista social Vinicius Lara, que havia publicado a fotografia com uma mensagem de apoio à visita. À reportagem, Lara disse desconhecer a origem da imagem, que não é de sua autoria. 

Gazeta do Povo entrou em contato com as Secretarias Estadual e Municipal de Educação e ambas garantiram não possuir registro de escolas públicas que tenham realizado atividades que incluíssem visitação à exposição. O Santander Cultural, por sua vez, não havia divulgado até o fechamento desta reportagem uma lista de escolas que eventualmente tivessem visitado a mostra. 

Na segunda-feira (11), Julio Almeida, promotor da Infância e da Juventude de Porto Alegre, e Denise Villela, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões, visitaram a mostra para investigar as denúncias. De acordo com o promotor, apesar das cenas de sexo explícito em algumas obras, não havia qualquer peça que pudesse ser enquadrada criminalmente. “Não há crianças e adolescentes em sexo explícito ou exposição de genitália de crianças e adolescentes. Também não há obras que façam com que a criança seja incentivada a fazer sexo com outra criança”, afirmou Julio Almeida ao portal G1

Ainda de acordo com o promotor, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aponta a necessidade de classificação etária para produtos culturais e midiáticos como revistas, programas de TV e peças de teatro, por exemplo, mas não estabelece uma obrigatoriedade clara em casos de exposições em museus. 

Defesa 

No lado favorável ao retorno da exposição, Guilherme Nunes Muniz participava do protesto em defesa da mostra. Integrante do movimento LGBT, ele afirma: “as obras nunca foram expostas para agredir, mas, pelo contrário, para mostrar que existem problemas na sociedade e que esses problemas precisam ser discutidos”. 

Guilherme admite que a exposição possa ter ofendido determinados setores da sociedade, mas entende que o fechamento da mostra contraria a liberdade de expressão. Para ele, o Queermuseu cumpriu seu objetivo mesmo sendo cancelado. “O papel era questionar. Se a ideia era cancelar e botar a exposição embaixo dos panos, deu errado, porque a repercussão foi internacional”. 

O caso do cancelamento do Queermuseu ganhou destaque na imprensa brasileira e estrangeira, e gerou um grande número de respostas de artistas questionando o que consideravam ser um ato de “censura” e “ignorância” quanto ao significado da arte. 

Desde o anúncio da suspensão da exposição em uma nota oficial divulgada pelo facebook no último domingo (10), o Santander Cultural não se manifestou mais à imprensa sobre a decisão, considerada “autoritária” pelo curador da mostra, Gaudêncio Fidelis. Ao longo da semana, um abaixo-assinado virtual foi criado no site change.org solicitando a reabertura da exposição, contando com cerca de 62 mil adesões até o fechamento desta reportagem. 

Algumas cidades também manifestaram interesse, pública ou privadamente, em receber a exposição interrompida em Porto Alegre. Na manhã de terça-feira (12), o secretário de cultura de Belo Horizonte, Juca Ferreira, confirmou ter sido procurado sobre a possibilidade de a cidade exibir as peças do QueermuseuEx-Ministro de Cultura nos governos Lula e Dilma, Ferreira disse ver “com bons olhos” a transferência da exposição na capital mineira, mas apontou a necessidade de um estudo de custos e de viabilidade para receber a mostra, após a atenção renovada que as obras ganharam em função da repercussão do cancelamento em solo gaúcho. 

Em entrevista ao site do vereador do Rio de Janeiro David Miranda (PSOL), o curador Gaudêncio Fidelis declarou que o cancelamento da exposição foi uma medida unilateral do banco: “num determinado momento, depois das manifestações do MBL, o Santander, através de seus representantes, conclui uma vontade da maioria. Mas não é a vontade da maioria. Foi uma atitude absolutamente intempestiva”, afirmou. Na mesma entrevista, Fidelis argumentou que o fechamento dificultava o debate: “o grande drama que temos que enfrentar neste momento é de que nós não temos como dar acesso às pessoas para elas julgarem por si mesmas neste momento que essa discussão pública está sendo feita”. 

Resposta 

A reportagem procurou Gaudêncio Fidelis para falar sobre o caso. Citando os três primeiros textos publicados pela Gazeta do Povo a respeito do fechamento da mostra, o curador da exposição criticou o fato de os envolvidos na exposição não terem sido ouvidos antes pelo jornal e não concedeu entrevista. Justificou-se enviando a nota a seguir, por e-mail: 

Desde o encerramento abrupto, intempestivo e autoritário da exposição pelo Santander Cultural, minha preocupação tem sido de atender irrestritamente a imprensa nacional e internacional para a qual dei entrevistas sem nenhuma exceção até o momento. Foram até agora foram mais de 80 entrevistas, com o objetivo de esclarecer a opinião pública sobre os fatos diante da narrativa falsa e distorcida que o MBL e seus seguidores empreenderam através de uma cruzada moralista contra a exposição com o intuito de fechá-la. Entretanto, lendo as três matérias já publicadas pela Gazeta do Povo ficou claro para mim que esse órgão tomou uma posição definitiva em favor destes grupos radicais de extrema direita, utilizando-se inclusive das informações falsas que eles disseminam. Considerando que a exposição tem 85 artistas sendo vários do Paraná e nenhum deles, nem a curadoria, foi consultada até agora para gerar estas matérias, fica claro que a opinião do Jornal já está formada e não há razão para uma entrevista neste momento. Inclusive, vale salientar, como toda a imprensa nacional já divulgou, à exceção da Gazeta do Povo de Curitiba, que o Ministério Público já visitou a exposição e declarou não haver qualquer obra que incite a pedofilia, zoofilia ou pornografia, e nem atribuiu restrições de faixa etária como este jornal afirma. 

Cordialmente, 

Gaudêncio Fidelis-Curador da exposição Queermuseu e doutor em História da Arte

Colaborou Gabriel Eduardo Bortulini

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