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Santiago, capital do Chile
Santiago, capital do Chile| Foto:

Muito além dos vinhedos e das minas de cobre, o Chile é um ponto fora da curva entre os países da América Latina. Referência em baixa inflação, desenvolvimento humano, competitividade, inserção na economia global, liberdade econômica e percepção de corrupção, o país possui lições de estabilidade política e econômica que revelam como se tornou o primeiro país latino a se tornar desenvolvido.

Nos últimos 40 anos o país passou por uma profunda transformação: de uma ditadura militar para uma das democracias mais avançadas do mundo, de um regime que censurava veículos para um dos países com maior liberdade de imprensa. Conseguiu manter estabilidade política e socioeconômica, aliando desenvolvimento econômico com redução da pobreza.

Para entender como esse processo foi conduzido, no entanto, é preciso voltar para o início dos anos 1970. Foi quando, a partir da reconstrução da estabilidade financeira perdida com o experimento populista do presidente deposto salvador Allende, o “Milagre Chileno” começou.

Na ocasião, Allende venceu a corrida à presidência com pouco mais de um terço dos votos válidos — nas regras eleitorais do país à época não havia segundo turno. Passou a imprimir um projeto de poder socialista no Chile que, apesar de ter vencido as urnas, não era reverenciado pela maior parte da população.

No poder, atropelou as instituições chilenas — o Congresso, a Suprema Corte, a Controladoria Geral e a Constituição. Apoiou grupos paramilitares que recebiam ajuda de Cuba, nacionalizou fazendas e indústrias, gerou desabastecimento e inflação. Foram criados programas sociais de transferência de renda que o próprio governo não conseguiu custear, haja vista a crise econômica que havia causado. Além disso, o primeiro presidente marxista eleito no mundo limitou o comércio internacional, prejudicando os chilenos mais pobres que ficaram impedidos de ter acesso a bens e serviços: tudo para proteger grupos de interesse locais. O governo ainda reprimiu a imprensa e buscou controlar o ensino nas escolas chilenas para favorecer as pretensões de seu projeto de poder.

Um mês antes de sua deposição, o Congresso listou dez flagrantes de desrespeito à ordem constitucional e legal do país. Por 87 votos a favor e 47 contra, o governo de Allende foi declarado como ilegal.

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Ao final, pouco antes de concretizar um golpe e estabelecer sua própria ditadura, foi impedido por militares que se anteciparam e bombardearam o Palácio de La Moneda.

Retirado do poder, deixou o país com inflação superior a 1000%, muita desorganização econômica e incertezas.

A economia na ditadura Pinochet

Os primeiros anos do regime do general Augusto Pinochet seguiram a cartilha desenvolvimentista nacionalista com foco em protecionismo, substituição de importações e política monetária desastrada.

A situação foi agravada a partir de crises internacionais ao longo da década de 1970, tais como a crise do petróleo de 1973 (que quadruplicou o preço do barril), a recessão americana de 1975 (responsável pela enorme queda do preço de commodities exportadas pelo Chile no mercado internacional), além da instituição, em 1979, da OPEP, que novamente triplicou os preços do barril de petróleo. Todos esses fatores prejudicaram muito o Chile, na medida em que o país era dependente da exportação do insumo.

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Com a recessão mundial de 1982, o PIB do Chile caiu 13,4% e a taxa de desemprego chegou a 19,6%, além de 30% da população se tornar dependente de programas de assistência social. Em 1986 o PIB per capita chileno ainda era inferior ao patamar de 1973: apenas 1.525 dólares, valor inferior à média da América Latina.

Em meio ao caos, Pinochet decidiu buscar ajuda de economistas que não professavam a cartilha nacionalista e tampouco estavam ligados à política econômica dos anos de Allende. Os escolhidos foram economistas chilenos da Universidad Católica de Chile que tinham feito intercâmbio na Universidade de Chicago, onde foram influenciados pelo pensamento de Milton Friedman, Nobel em Economia de 1976.

A ideia de que o mercado traz melhores soluções do que burocratas, e que, ao estabelecer incentivos apropriados aos consumidores e poupadores, há decisões acertadas e escolhas bem feitas — não havendo necessidade do governo decidir pelos cidadãos —, era a base conceitual da revolução de pensamento que nos anos seguintes aposentou a abordagem keynesiana para lidar com as políticas econômicas.

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Essa postura contrastava não apenas com a realidade chilena, mas com toda a política econômica da América Latina — o que ajuda a explicar por que o Chile se tornou um ponto fora da curva: durante os anos 1960 a 1990, vários governos implementaram fortes políticas de centralização econômica na região. Como diz a cientista política guatemalteca Glória Álvarez, “os populistas da América Latina disputam para saber quem consegue ser o melhor Papai Noel com o dinheiro alheio”. O Chile fez exatamente o oposto, mais notadamente a partir da década de 1980.

A escolha do general foi pragmática: ele sabia que adotar os mesmos tons intervencionistas da agenda de Allende seria insistir na receita que gerou o caos econômico e instabilidade política no país: ter resultados semelhantes dificultaria sua manutenção no poder.

Assim, o câmbio foi liberado, houve uma onda de privatizações e a Previdência foi reestruturada em um regime de capitalização. Promoveu-se controle da taxa de juros e um gradual rompimento das práticas protecionistas, ao contrário do caso brasileiro que, em 2019, ainda é cercado por uma muralha comercial. Houve ainda redução na alíquota de impostos, tendo em vista a indução de mais negócios, e, a médio prazo, houve aumento de arrecadação.

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Os anos da ditadura não foram muito bons do ponto de vista econômico, com inúmeras crises internacionais e a América Latina marcada pela desconfiança após vários países (como o Brasil) darem calotes em suas dívidas. A transição não foi fácil, uma vez que a economia chilena era, ainda há pouco tempo, contaminada por distorções generalizadas em relação ao livre mercado — como uma extensa interferência do poder público, empresas estatizadas, câmbio controlado e falta de confiança na capacidade do governo de honrar com seus compromissos.

Todavia, substituiu-se a centralização estatal por princípios de livre mercado, e, a despeito de terem gerado desemprego e contração econômica no curto prazo, foram criadas as bases para um crescimento sustentável e uma melhoria nas condições de vida da população.

Redemocratização e, enfim, desenvolvimento

Mesmo com o desenvolvimento da economia ainda incipiente, a população passou a defender cada vez mais maior liberdade civil e política. Após muita pressão popular e internacional, Pinochet legalizou os partidos políticos em 1987 e convocou um plebiscito para 1988 que decidiria se ele continuaria como governante. A população votou pela saída do general e, assim, a transição democrática foi realizada.

Os governos civis que sucederam o ciclo militar aprofundaram as reformas iniciadas por Pinochet. O país passou a ser caracterizado pela responsabilidade fiscal e abertura ao comércio exterior. Mesmo presidentes socialistas, como Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, que promoveram reformas, sobretudo na saúde e algumas no sistema de pensões, mantiveram o compromisso com a estabilidade das contas públicas.

Com uma economia dinâmica, orientada para o mercado e muita inovação, além de ênfase no comércio exterior, o país soube aproveitar o boom das commodities dos anos 2000, atraindo investimentos estrangeiros diretos.

Embora seja frequente a ideia de que a liberdade econômica não contribui para o desenvolvimento social e questões relativas à superação da pobreza, trata-se de um equívoco: a renda per capita do país, que era de 4.463 dólares no início do século, superou a marca de 16 mil dólares em 2016. Já o número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza caiu de 45,1% em 1987 para 11,5% em 2009.

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Ademais, o Chile adota os padrões da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), tornando a abertura de uma empresa algo simples e ágil: é o 56º país do ranking que mede a facilidade de fazer negócios do Banco Mundial.

O Chile destaca-se ainda no comércio internacional, estando inserido em acordos comerciais importantes: é membro fundador da Aliança do Pacífico, tem um tratado de livre comércio com os Estados Unidos — em vigor desde 2004 e responsável por um aumento comercial bilateral de 60% —, e participa de outros acordos com a União Europeia, China, Japão e Coreia do Sul.

Além disso, o sistema previdenciário no Chile incentivou a poupança doméstica, sendo o principal responsável pelo fato de o país estar no seleto grupo dos únicos sete do mundo que, segundo o Fundo Monetário Internacional, possuem dívida líquida negativa em relação ao PIB. A soma de ativos chilenos chegou a 73% do PIB em 2016, o que ajudou a financiar e desenvolver a economia.

Esse sistema previdenciário é caracterizado por cada trabalhador contribuir com 10% de seu salário para um fundo de aposentadoria individual. Sua vantagem é que não há risco fiscal para o governo desde 1981: apenas 0,7% do PIB é gasto com Previdência, enquanto no Brasil esse número é equivalente a 13%.

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O sistema de seguridade inclui ainda a saúde, para o qual cada trabalhador contribui com 7% de seu salário para ser atendido pelo Fundo Nacional de Saúde (Fonasa). Todo o cenário contribui para que haja um aparato de cobertura social, mas com responsabilidade fiscal.

O debate público chileno é muito centrado em melhorias de políticas distributivas, como a universalização do ensino superior público e a passagem do sistema previdenciário para um modelo híbrido, com nuances de sistemas de partilha — como o brasileiro. Isso fez com que a administração mais recente de Bachelet tenha sido responsável por aumentar a despesa fiscal e dobrar a dívida pública.

Ainda assim, o país tem os ratings mais elevados da América Latina: a nota emitida pelas agências de risco à qualidade de crédito do tesouro chileno garante grau de investimento, o que atrai recursos estrangeiros.

Desde 2013 o país possui o maior PIB nominal per capita da América Latina, e passou a ser considerado pelo Banco Mundial um país avançado, com economia de alta renda e desenvolvida.

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O Chile é um exemplo de como a liberdade econômica ajuda a construir uma sociedade mais próspera. Ela não apenas fundamenta uma mudança política significativa, alterando a percepção geral sobre qual papel o governo realmente deve exercer, mas também melhora a qualidade de vida dos indivíduos — e principalmente daqueles mais pobres — ao lhes proporcionar, sobretudo, a liberdade de escolha.

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