• Carregando...
O influenciador digital Felipe Neto
A metamorfose ambulante do influenciador digital Felipe Neto: de cabelos coloridos a comportadas madeixas negras, de vídeos para crianças a opiniões sobre política| Foto: Reprodução

Há quase dez anos publicando vídeos no Youtube amealhando impressionantes 38 milhões de seguidores, o antes irreverente, engraçado e inócuo comunicador Felipe Neto se transformou num dos maiores influenciadores digitais brasileiros. Transmitindo sua mensagem sobretudo a adolescentes e àquele público que se convencionou chamar de “jovem adulto”, Felipe Neto parece ter opinião sobre tudo.

Desde que se percebeu como formador de opinião, Felipe Neto deu uma guinada à esquerda, atacando qualquer coisa que cheire a valores tradicionais — que ele confunde com reacionarismo. Foi assim que, nos últimos anos, o trintão de cabelos coloridos que fazia caras e bocas para falar de memes e cultura pop se tornou o trintão de cabelos normais que faz caras e bocas para falar de política, de sociedade, de filosofia e até de nutrição.

“Muitas pessoas têm uma ideia errada sobre mim. E eu não tenho a mínima vontade de esclarecer as coisas”, diz o perfil de Felipe Neto no Twitter, plataforma que ele usa para se comunicar com mais de 8 milhões de pessoas. Mas, como se verá ao longo deste texto, o objetivo de Felipe Neto parece ser, o tempo todo, esclarecer as coisas e corrigir a ideia supostamente errada que as pessoas fazem dele.

Foi com este espírito, aliás, que ele deu recentemente uma entrevista ao canal GQ Portugal. A conversa rápida (na verdade um monólogo) expõe um Felipe Neto em profunda contradição consigo mesmo e num tom belicoso e autocongratulatório, apesar de dizer que “a solução nunca está na violência [do discurso]”.

Sobre sua posição ideológica atual, por exemplo, de oposição ao liberalismo (o mesmo liberalismo que lhe rende um bom dinheiro, graças à capitalíssima monetização de seus vídeos, sem falar nos royalties que ele recebe por todo o material licenciado) e aos valores conservadores (que ele confunde com reacionarismo — já mencionei isso?), ele diz que, depois de conversar com “mulheres, negros e gays não tem como ser a mesma pessoa. A não ser que você seja muito mau caráter”.

Essa “mudança ideológica”, aliás, é motivo de muita especulação por aqueles que se detêm sobre o fenômeno Felipe Neto. O mesmo comunicador que há dez anos se sentia completamente livre para fazer comentários politicamente incorretos hoje se dedica, entre outras coisas, a exaltar a própria virtude apontando os “defeitos políticos” dos outros. O mesmo Felipe Neto que se vangloria de ter conseguido uma doação substancial para o Teleton, por exemplo, é aquele que repreende as pessoas por se vangloriarem de doações a instituições de caridade.

O fato é que, de um tempo para cá, Felipe Neto passou a aderir a todo tipo de causa progressista. Numa das reviravoltas mais interessantes, o Youtuber, antes “carnista”, se tornou vegano. “Todo animal que nós comemos tem esse nível de satisfação em estar vivo”, escreve ele sobre um vídeo no qual uma simpática vaquinha aparece “jogando bola” com um homem. Justo ele, que era dono de uma rede que vendia coxinhas no Rio de Janeiro — da qual aparentemente teve de se desfazer para ficar em paz com sua nova consciência.

A partir daí, o que se vê na postura do influenciador digital é um recrudescimento de um discurso que mistura falta de uma base cultural sólida, muitos clichês e uma boa dose da raiva tão típica das redes sociais. “O que me deixa pasmo é como tem tanta gente errada”, escreve Felipe Neto, entre um e outro retuíte de personalidades como Ciro Gomes, Jean Wyllys, Marcelo Freixo e David Miranda.

O problema do recrudescimento do discurso é que ele traz consequências nem sempre das mais agradáveis. Sua posição de confronto em relação ao governo Jair Bolsonaro e do prefeito Marcelo Crivela tem lhe rendido problemas. Felipe Neto, não sem uma pontinha de orgulho pelo martírio virtuoso (“Não vou trocar minha verdade por afagos”), teria enviado a mãe ao exterior depois de receber ameaças. Hoje ele, que vive falando da mansão (nunca casa; mansão) onde vive, na Barra da Tijuca, dos seguranças que o acompanham e da fortuna amealhada graças ao capitalismo malvadão que combate, se coloca como vítima de uma perseguição fascista contra uma liberdade de expressão muito específica — a sua.

É um posicionamento aparentemente muito rentável. E Felipe Neto sabe disso. Não à toa, quando o prefeito Marcelo Crivella decidiu recolher livros que seriam inapropriados para crianças e que estavam sendo vendidos livremente na Bienal do Rio, em setembro, ele investiu numa iniciativa publicitária doando milhares de livros supostamente censurados. Quais autores e títulos foram distribuídos e qual o impacto da iniciativa ainda são perguntas sem respostas.

Mas, a julgar pela formação literária de Felipe Neto, é possível especular que naqueles pacotes havia mais João Silvério Trevisan do que Oscar Wilde. O Youtuber é fã incondicional de Stephen King, que considera o maior escritor de todo o Universo e adjacências. O que me leva a recordar de uma entrevista com o saudoso crítico literário Harold Bloom que, ainda no começo dos anos 2000 e sob ataque de leitores de praia e fãs fantasiados de bruxos, disse que leitores de Harry Potter crescem para se tornar leitores de Stephen King, que por sua vez nunca crescem.

E estamos falando, veja bem, daquele que o historiador Ademir Luiz, num artigo para a Revista Bula, considerou “o intelectual mais influente do Brasil”. O mesmo que, recentemente, num de seus arroubos de analista político, se dedicou a especular a respeito dos votos dos personagens do seriado Friends na recente corrida eleitoral brasileira. Sim! Felipe Neto, o intelectual mais influente do Brasil, disse que Ross teria votado em Jair Bolsonaro — e a Internet, aparentemente, mordeu a isca.

(Em tempo: Ross é arqueólogo e professor universitário, o que me leva a crer que ele teria votado mesmo é em Fernando Haddad).

Mas o verborrágico Felipe Neto é assim mesmo: mistura cultura pop e política e, dessa, constrói para si mesmo um personagem profundo e ajuda a “promover o debate” entre seu público. E, quando as coisas saem do controle (e no ambiente virtual isso não é exceção), não se preocupe. Porque Felipe Neto sempre encontra uma saída. Duas das justificativas que ele mais usa quando se vê encurralado pela lógica e pelos fatos são “é brincadeira” e “desisto”. Mas nunca é brincadeira e não, ele não desiste — o que é uma estratégia clara de alguém que deseja ver reafirmada dia após dia a necessidade de sua presença.

E é assim que, dia após dia, vídeo após vídeo, tuíte após tuíte, de like em like e ganhando entre US$0,25 e US$4,5 a cada mil visualizações, Felipe Neto vai se transformando na voz de uma geração privilegiada, que não come carne porque pode se dar ao luxo de abdicar da proteína animal, que sente náuseas diante da “imposição estética” sobre as mulheres, que se indigna mais com as fake news do que com a morte de um policial, que se revolta ao descobrir que a palavra “robô” tem uma ligação remota qualquer com a escravidão e que chegou a um ponto da vida “que eu não sei mais diferenciar o que é luxo e o que é brega”.

Uma voz contraditória, indecisa entre a jocosidade zombeteira inofensiva dos memes e os tuítes cheios de autoimportância e consequência, capaz de resolver todos os problemas do mundo em 240 caracteres e usando meia-dúzia de hashtags espirituosas ou arqueando as sobrancelhas expressivas e falando com uma voz uma oitava acima do normal para uma câmera que não tem para onde correr.

Felipe Neto é, por isso, o arauto de um espírito para sempre jovem e descompromissado, que desconhece a diferença entre irreverência e irresponsabilidade. Um espírito que não se envergonha de confessar: “Eu não sei o que é ser adulto e espero nunca descobrir. Eu quero ser sempre isso que eu sou”.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]