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Como governos usaram manipulação psicológica para gerar medo e obter adesão ao lockdown
| Foto: Bigstock

Cientistas do comportamento têm acompanhado de perto as atitudes da população em relação à pandemia, principalmente nos países desenvolvidos. Falando ao jornal britânico The Guardian, no início do mês, pesquisadores preocupados com o que consideram adesão insuficiente à terceira dose da vacina para Covid-19, culpam a queda de confiança dos cidadãos no governo, e associam essa queda ao escândalo do primeiro-ministro Boris Johnson, que foi flagrado numa festa, descumprindo os protocolos de segurança sanitária que ele próprio defendia. Também culpam a percepção do público – precisamente embasada - de que a variante ômicron é menos perigosa. “A preocupação com a infecção caiu em 52% dos adultos”, lamenta John Drury, professor de psicologia social na Universidade de Sussex. Os cientistas lamentam, ainda, que a mensagem do governo britânico em 2022 é de abertura e menos intervenções.

Esses profissionais, contudo, poderiam encontrar culpados pela queda de confiança popular entre os próprios colegas. Um dos motivos para a mudança de atitude do governo nesse ano foi o fato de que, em 2021, seguindo os conselhos de psicólogos do comportamento, as autoridades tentaram manipular psicologicamente a população a ter mais medo do vírus. A tentativa foi descoberta e denunciada.

A história completa é contada no livro A State of Fear (Um Estado de Medo, em tradução livre) da escritora, fotógrafa e cineasta Laura Dodsworth. O livro é de maio de 2021 e tornou-se um bestseller entre os britânicos. Longínquos são os dias da Revolta da Vacina, do início do século XX, quando governos invadiam lares e inoculavam cidadãos à força. Hoje, segundo o livro, autoridades públicas tendem a empregar especialistas em manipulação psicológica para fomentar o medo: “A Covid-19 é a maior ameaça que este país enfrentou na história de tempos pacíficos”, disse Boris Johnson. “É a maior ameaça à Alemanha desde 1945”, asseverou Angela Merkel.

A autora da obra é, à primeira vista, uma figura improvável para fazer a denúncia e contar uma história de abuso de autoridade e manipulação de características orwellianas. Em 2019, Laura ficou conhecida por um projeto no qual fotografou as vaginas de 100 mulheres, entrevistando 18 delas sobre o órgão sexual feminino. Estereótipos feministas à parte, no livro, ela se revela uma liberal preocupada. “Desde a primeira noite em que nos disseram que tudo seria fechado, percebi que eu estava mais assustada com o autoritarismo do que com a morte, e mais perturbada pela manipulação do que pela doença”, relata nas páginas. “Nunca antes colocamos as pessoas sadias em quarentena. Estávamos imitando a resposta da China totalitária ao vírus”. Ela encerra cada capítulo com um depoimento real de alguém que foi vítima da campanha de pânico e dos lockdowns, como a história de uma adolescente que ficou deprimida e começou a se cortar, de uma idosa cuja alegria de viver foi tirada e declara que gostaria de ter a opção de poder se arriscar a morrer de Covid.

O "empurrãozinho"

Recentemente, a psicologia passou por uma crise diante da constatação de que muitos resultados de pesquisas consideradas sérias falhavam ao ser repetidos. Porém, no caso do incentivo ao medo, há publicações que demonstram efetividade na estratégia. Numa metanálise da efetividade do apelo ao medo, publicada em 2015, Melanie Tannenbaum, psicóloga da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, juntou dados de 127 estudos, totalizando mais de 27 mil pessoas envolvidas. A conclusão dos pesquisadores é de que “há muito poucas circunstâncias” sob as quais os apelos ao medo não funcionam. O estudo considerou especialmente as mensagens para convencer o público a aderir a protocolos médicos.

A principal ferramenta dos psicólogos comportamentais envolvidos com governos é a teoria Nudge, termo que em inglês significa cutucar ou empurrar levemente, como incentivo ou para chamar a atenção. Entre psicólogos brasileiros é frequentemente apelidada de teoria do empurrãozinho. O filósofo canadense Joseph Heath, no livro de 2014 Enlightenment 2.0 (Iluminismo 2.0), resume assim a proposta dos fundadores da teoria, Cass Sunstein e Richard Thaler: “já que qualquer sistema precisará ter uma opção padrão, podemos fazer a mais benéfica ser a padrão”. A ideia é alterar o ambiente em que o indivíduo toma decisões de forma a guiá-lo, de antemão, em direção a uma decisão preferida.

Defensores da teoria do empurrãozinho usam suas consequências como evidência a seu favor. Uma das formas de dar um empurrãozinho nos cidadãos é, por exemplo, presumir que aceitam alguma política, a menos que digam “não” explicitamente. Estabelecer que todos são doadores de órgãos até declaração em contrário, por exemplo, aumenta a taxa de doadores em vários países, mas há controvérsia se a implementação do "consentimento presumido" aumenta por si essa taxa.

O próprio Heath reconhece que o empurrãozinho é uma forma de paternalismo, que era condenado como autoritário por filósofos liberais clássicos como John Stuart Mill, mas que nesse caso seria permissível, pois “protege-nos da nossa própria irracionalidade (…) somos submetidos a uma restrição não apenas para o nosso próprio bem, mas para o nosso próprio bem conforme o conceberíamos se nos sentássemos e pensássemos a respeito”. Com que direito especialistas que aconselham políticos nos substituem no ato de sentar e pensar, não está claro.

Paternalismo e condescendência têm uma longa história na parceria de especialistas da psicologia com governantes. Em meados do século XX, um pioneiro foi o sobrinho de Sigmund Freud, Edward Bernays. Em seu livro apropriadamente intitulado Propaganda, de 1928, Bernays lança o objetivo às claras: “A manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo inconspícuo da sociedade constituem um governo invisível, que é o real poder governante do nosso país”. Bernays participou ativamente de iniciativas que incentivavam o governo americano para exagerar ao tratar da ameaça comunista e do risco de guerra nuclear nos anos 1950.

A ascensão da psicocracia

O Reino Unido merece destaque nesse assunto, pois foi um dos pioneiros em implantar os empurrõezinhos. Em 2010, implantaram sob auspícios do governo a Equipe de Insights Comportamentais (BIT), também apelidada entre psicólogos como Unidade do Empurrãozinho. Logo ela se tornou um negócio lucrativo como ‘companhia limitada com propósito social’, dispondo de escritórios em Londres, Manchester, Paris, Nova York e Toronto. Como conta Laura Dodsworth, a Unidade já cuidou de mais de 750 projetos e, em 2019, trabalhou em 31 países, treinando mais de 20 mil servidores públicos.

Quando Laura tentou entrevistar o fundador da Unidade, o psicólogo David Halpern, foi elogiada pela organização por seu trabalho anterior, até ofereceram emprego. Ela consultou um amigo especialista: “Ele riu e disse ‘parece um jeito de te neutralizar. Uma tática clássica de neutralizar um oponente é oferecer colaboração’.” A entrevista jamais aconteceu. Halpern também faz parte de outro órgão de ciência comportamental do governo britânico, o Grupo Científico de Influenza Pandêmica sobre o Comportamento. A sigla em inglês, SPI-B, soa como “abelha espiã”.

Foi do SPI-B que vazou um documento que deixou bem clara o tipo de influência feita sobre o governo. O documento, com data de 22 de março de 2020, cujo título é “Opções para aumentar a aderência às medidas de distanciamento social”, diz que “O nível percebido de ameaça pessoal precisa ser aumentado entre aqueles que estão complacentes, com o uso de mensagens emocionais impactantes”. Um dia depois, o primeiro-ministro fez um pronunciamento alarmante à população, no qual Laura e outros acreditam que foi acoplada a uma linguagem corporal que denunciava falta de sinceridade. Na ocasião, ele anunciou um lockdown de três semanas.

Os planos do governo de incentivar o medo encontraram pouca resistência na imprensa. O motivo disso não é apenas o de que “notícia é quando o homem morde o cachorro”, um adágio que sugere corretamente a inclinação do jornalismo ao inusitado e ao negativo. Houve uma queda de quase 50% nos investimentos trimestrais em publicidade no país, logo após a declaração soturna do primeiro-ministro. Com isso, o próprio governo aumentou sua participação como comprador de anúncios, o que incentiva a imprensa a não criticá-lo.

Assim como o consentimento informado é um pré-requisito ético para muitos tratamentos médicos, deveria ser também para políticas públicas numa democracia. Esse tipo de política de manipulação psicológica vai na contramão disso. Em vez de presumir que os cidadãos são racionais e persuasíveis por bons argumentos, presume que são irracionais e que devem ser empurrados para uma direção ou outra, supostamente para seu próprio bem, como rebanho.

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