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O confucionismo está na moda entre a eite do Partido Comunista. Essa pode ser uma boa notícia para quem anseia por mudanças políticas na China.
O confucionismo está na moda entre a eite do Partido Comunista. Essa pode ser uma boa notícia para quem anseia por mudanças políticas na China.| Foto: Pixabay

Em maio de 1989, manifestantes na Praça da Paz Celestial, em Pequim, ergueram uma estátua de gesso da Deusa da Democracia. Durante quase uma semana, ela ficou de frente ao retrato do Camarada Mao que pende do Portão da Paz Celestial. A justaposição parecia resumir a escolha que a China tinha de fazer: o comunismo ou a democracia liberal.

Jiang Qing, então com trinta anos, não achava que nenhuma das duas opções era aceitável. Assim como os que ansiavam por democracia, ele viu a repressão aos protestos da Praça da Paz Celestial como um sinal de que o regime comunista não tinha legitimidade. Mas ele negava que a democracia liberal fosse a solução mais acertada. Poucos meses depois dos fins dos protestos, ele publicou um artigo dizendo que “o confucionismo deveria substituir o marxismo”. Era o manifesto de um novo movimento: o integralismo confucionista. Nos anos seguintes, Jiang expos um plano detalhado de reforma do Estado chinês. Ao mesmo tempo, ele se tornou um dos intelectuais mais discutidos da China e um dos mais injustamente negligenciados no Ocidente.

Filho de uma autoridade do alto escalão do Partido Comunista, Jiang era um marxista desde o berço. Na sua juventude como soldado, ele leu O Capital em seu tempo livre, convencido de que o livro continha a verdade sobre o homem e a sociedade. Mais tarde, já na universidade, ele se sentiu atraído pelos textos mais humanistas do jovem Marx e pelas teorias de Locke e Rousseau. Ele se tornou, em suas próprias palavras, “um liberal radical e um ocidentalizador radical”. Mas a atração não durou. Influenciado pela leitura dos clássicos chineses, Jiang se convenceu de que o liberalismo e o marxismo eram ideologias estranhas, que faziam com que a China rompesse com sua cultura antiga. Pior ainda, essas ideologias negavam a importância do sagrado, levando ao que ele mais tarde chamaria, citando Richard John Neuhaus, a “Praça Pública Nua”.

Inspirado nos Anais de Primavera e Outono, um clássico confucionista, Jiang argumenta que todo governo exige três formas de legitimidade: sagrada, histórica e popular. Somente um regime que governa de acordo com o que é sagrado, consistente com a história e cultura do país e que conta com o apoio do povo pode alcançar a “legitimidade integral”. Os regimes comunistas fracassam nas três frentes. Eles riem das leis celestiais, consideram o passado opressor e se sobrepõem aos desejos do povo. Embora a democracia liberal consulte a vontade do povo e garanta direitos importantes, Jiang argumente que ela também rejeita o passado e o divino.

O Estado confucionista de Jiang teria uma legislatura tricameral. A legitimidade popular se contraria na Casa do Povo, com membros eleitos pelo voto universal. A legitimidade cultural se encontraria na Casa da Nação, composta por nobres, descendentes de heróis e representantes das minorias cristã, muçulmana, budista e daoísta chinesas. A legitimidade sagrada se encontraria na Casa de Ru, uma assembleia de estudiosos confucionistas escolhidos por sua virtude e conhecimento. Votando em conjunto, as duas casas inferiores seriam capazes de vetar iniciativas da Casa de Ru, inclusive as que tivessem como algo as minorias religiosas. Mas a Casa de Ru poderia, unilateralmente, vetar um projeto aprovado pelas duas outras casas se ele entrasse em contradição com os ensinamentos celestiais, como no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Além das três casas legislativas, Jiang imagina um monarca simbólico e uma Academia Confucionista. Mais uma vez, Jiang propõe um plano tríplice que reflita as três formas de legitimidade. A legislatura tricameral como um todo representa a vontade do povo. O monarca simbólico representa a continuidade histórica. A Academia Confucionista representa o caminho supremo do Céu.

Somente uma monarquia hereditária, argumenta Jiang, é capaz de representar a continuidade histórica do Estado chinês. Somente uma academia religiosa que adquire sua legitimidade da fidelidade a verdades imutáveis é capaz de resistir às forças que levariam a China ao genocídio, à guerra e à destruição do interior do país. Apesar de ter deixado de lado sua juventude marxista, Jiang continua concordando com muitas das críticas da esquerda à exploração capitalista. Mas em vezes de apoiar sonhos utópicos de igualdade perfeita, ele propõe a criação de uma elite não-capitalista capaz de conter o poder do dinheiro.

Jiang insiste em dizer que não se trata de uma teocracia. Ele se inspira nos clássicos confucionistas para defender a tolerância às minorias religiosas e sugere que um Estado confucionista permitiria mais liberdade de expressão e religião do que a que os chineses hoje têm. Mas ainda assim seu sistema se baseia na impressionante ideia de que “a legitimidade sagrada do caminho do Céu é maior do que a legitimidade cultural do caminho Terra e do que a vontade popular”. A espiritualidade é superior à temporalidade.

O argumento de Jiang é um problema para os “neoconfucionistas da diáspora” que vivem em Taiwan e Hong Kong. Eles buscam conciliar o confucionismo com o liberalismo e a democracia. Li Minghui, pesquisador taiwanês e um dos maiores críticos de Jiang, defende que não há nenhum conflito basilar entre o confucionismo e o liberalismo. Apesar de rejeitar o individualismo extremo, ele propõe uma forma de “personalismo” confucionista que afirma a democracia liberal. Na visão de Li, a proposta de Jiang “não tem nenhuma chance de ser implementada e, se um dia viesse a ser tornar realidade, levaria a China de volta à Idade Média. Outros neoconfucionistas acusam Jiang e os “neoconfucionistas do continente” de serem obcecados pelo poder e política à custa do cultivo moral individual.

Jiang, por sua vez, acusa os neoconfucionistas da diáspora de sucumbirem a uma “tendência extremamente individualista, metafísica e interiorizadora”. O confuncionismo antes exercia poder social por meio dos templos e das academias imperiais, além dos exames imperiais. Mas desde o fim do sistema imperial, no começo do século XX, a maioria dos neoconfucionistas se recusam a pensar como uma instituição. Em vez de tratar o confucionismo como uma filosofia de governo, eles o veem como uma forma de ensino essencialmente privada. Ironicamente, ao fazer isso eles não conseguiram resgatar o confucionismo e impedi-lo de ser uma ideologia estatal. Eles inventaram uma forma de confucionismo que justifica regimes democráticos e liberais.

Uma quimera política

Jiang admite que sua proposta é “uma quimera política”. Ele acredita que são necessárias três condições antes que sua ideia seja cogitada como uma possibilidade real. Primeiro, deve haver um renascimento em larga escala do confucionismo. Depois, uma nova classe de confucionistas virtuosos e educados deve surgir. Em terceiro lugar, a China deve mudar para reconhecer a primazia popular do confucionismo, assim como mudou seu entendimento quanto aos direitos de propriedade.

O confucionismo agora está na moda entre a elite do Partido Comunista, que o vê como um instrumento de diplomacia cultural. Até ano passado, a China criou mais de 500 Institutos Confúcio em mais de cem países. Jiang reclama do “confucionismo politizado” que “perdeu sua capacidade de criticar o sistema atual e se atém à autocrítica, além de buscar apenas os interesses do sistema e dos governantes atuais”.

Em vez do “confucionismo politizado”, Jiang espera criar um “confucionismo político”: não um credo que sirva ao Estado, e sim um Estado que sirva a um credo. Ele admite que é difícil. “Desde a dinastia Han”, escreve ele, “o confucionismo se transformou numa ideologia política a serviço exclusivo de um monarca (...) e a tradição do confucionismo político praticamente desapareceu”. Ele anseia por um poder espiritual que transcenda os interesses nacionais e que se coloque acima da política.

Em busca de seu sonho, Jiang abriu uma academia confucionista privada. Ela fica nos montes de Guizhou, a província remota onde ele nasceu. No primeiro andar do prédio principal há uma estátua de Confúcio com suas fileitas de tábuas com os nomes dos maiores discípulos do sábio. Uma fileira representa a escola mais política com a qual Jiang se identifica e a outra com a escola mais íntima defendida por seus oponentes.

Confúcio ensinava que a prática da humanidade deriva de duas coisas: “controle-se e restaure os ritos”. Esse trabalho imenso agora consome as energias de Jiang. “Mas respeitar os ritos hoje não é praticá-los como eles foram escritos”, diz ele. “Já que praticar um código antigo é impossível depois das transformações drásticas pelas quais passamos”. Jiang, portanto, começou a desenvolver “um novo rito confucionista que preservará a profundidade espiritual do antigo rito confucionista, adequando-se à vida na sociedade atual”.

Jiang escreve com menos frequência do que antes, mas seu trabalho continua. Longe das controvérsias públicas nas quais costumava se envolver, Jiang ensina seus alunos, recebe convidados e continua seus estudos. Na hora da refeição, um sino convoca os estudiosos a comerem alimentos cultivados no terreno da academia. Como maior defensor do renascimento confucionista, Jiang Qing hoje busca esse renascimento tranquilamente.

*Matthew Schmitz é editor da First Things.

© 2020 First Things. Publicado com permissão. Original em inglês
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