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A reação cristã clássica a pestes não é citar nossos direitos e reclamar, e sim servir incansavelmente.
A reação cristã clássica a pestes não é citar nossos direitos e reclamar, e sim servir incansavelmente.| Foto: Pixabay

Alguns pastores protestantes agora estão desafiando abertamente as ordens governamentais de isolamento. Muitos católicos pedem que bispos voltem a permitir Missas públicas, a não ser que, por meio de suas ações, esses bispos estejam querendo ensinar que a vida do corpo é mais importante do que a vida da alma.

Peço licença para discordar. Peço encarecidamente, porque há muita coisa em jogo. E essa epidemia talvez não seja a última.

Comecemos com o óbvio: aglomerações religiosas de todos os tipos já contribuíram para, inadvertidamente, espalhar o vírus. Em New Rochelle, um só homem que foi a um shabbat, um bat mitzvah e um funeral contaminou ao menos 500 pessoas. Um funeral em Albany, na Geórgia, causou a contaminação de toda a cidade. No dia 3 de abril, as autoridades do condado de Sacramento disseram ter identificado uma igreja evangélica na qual tiveram origem 71 casos positivos.

Muitas dessas reuniões aconteceram antes que o coronavírus fosse conhecido. Outras foram organizadas por pessoas responsáveis que se consideravam capazes de se proteger do coronavírus.

No condado de Skagit, ao norte de Seattle, o coral de uma igreja presbiteriana se reuniu para ensaiar no dia 10 de março. Eles se mantiveram distantes, aconselharam os doentes a ficarem em casa e distribuíram álcool em gel à vontade. No fim de março, 45 dos 60 participantes do coral adoeceram, e dois morreram. Quantas pessoas mais essas 45 pessoas infectaram enquanto estavam assintomáticas? Jamais saberemos. Quantas dessas morrerão sem serem batizadas? Os fiéis talvez possam demonstrar alguma preocupação pela alma dos vizinhos. O fato é que o canto é bom em espalhar a Covid-19. Ninguém pensou isso na hora. Essa é uma doença ainda com muito a se descobrir.

Mas parece que agora somos todos epidemiologistas: teólogos, professores de direito, escritores, maestros, editores (para citar apenas algumas das profissões daqueles que conheço e que estão agora pedindo que os bispos permitam Missas públicas). Todas as pessoas têm um plano para tornar as Missas seguras. Infelizmente, no começo da pandemia há poucas coisas das quais temos certeza. Não faz muito tempo que descobrimos que o vírus é ainda mais contagioso quando assintomático, e que ele pode sobreviver por quatro dias em várias superfícies (e ninguém examinou o mármore ou os bancos de madeira das igrejas).

As medidas de saúde pública são domínio exclusivo das autoridades civis, a não ser que eles nos peçam para negarmos Cristo. Neste momento, eles estão apenas pedindo que fiquemos em casa por algumas semanas ou meses para reduzirmos o risco para toda a comunidade.

Os sacramentos são mesmo “não-essenciais”?

É importante lembrar que a prática da comunhão semanal não é universal entre os católicos e que ela tampouco é uma necessidade para a salvação. A lei canônica exige que o fiel receba o sacramento pelo menos uma vez por ano. O bispo de São Francisco, Joseph Cordileone, ao proibir as Missas públicas, deixou bem claro que: a Missa não está sendo cancelada. Ele nos lembrou que a ordem de guardar o Dia do Senhor vem diretamente de Deus e nunca pode ser suspensa.

Numa emergência, qualquer pai católico pode batizar o próprio filho. Podemos nos juntar a Jesus no Céu mesmo sem termos recebido a comunhão durante algumas semanas ou meses. A unção dos enfermos é uma dádiva aos moribundos, mas não é essencial para a salvação.

Se é para brigarmos com as autoridades civis e os bispos, que seja por um sacramento essencial para a nossa salvação: a confissão. Para muitos que estão à beira da morte, o acesso à confissão exige a cooperação das autoridades civis. E o quanto elas estarão dispostas a colaborar com uma Igreja criando problemas em meio a uma enorme crise nacional de saúde pública e econômica?

As autoridades civis estão piorando a situação ao considerarem os eventos religiosos “não-essenciais”? Sim.

Ao mesmo tempo, porém, vale reconhecer que essas autoridades civis estão ocupadas demais no momento. Elas têm de encontrar uma forma de conseguir respiradores, triplicar os leitos hospitalares disponíveis, têm de pensar no que fazer com os prisioneiros, como enfrentar orçamentos cada vez menores, como proteger os sem-teto, como convencer as pessoas a seguirem os protocolos de distanciamento social, como proteger os funcionários dos mercados e dos serviços de emergência e, no caso de Nova York, decidir em que parques eles vão enterrar os mortos, se é que chegaremos a isso. A coisa mais sensata e caridosa a se fazer numa enorme situação de emergência nacional como essa é dar um desconto ao governo pelo uso inapropriado da linguagem. A única coisa obvia é que essa quarentena não é uma tentativa explícita de prejudicar as igrejas.

É possível que a paralisação dos Estados Unidos seja pior do que deixar a pandemia seguir seu curso natural? Claro que é possível. Os líderes estão tomando decisões apressadas, sem informações o suficiente. Nossos líderes podem realmente estar equivocados. A economia também é fonte de vida. A cura não deve ser pior do que a doença. Mas uma pandemia exige uma reação enorme da comunidade. Alguém tem de tomar a dianteira.

A suspensão dos eventos religiosos é realmente algo inédito?

Também estou impressionada com o desconhecimento dos católicos descontentes quanto ao histórico da reação dos bispos. Douglas Farrow, por exemplo, escreve sobre “Páscoa Sem Missa”:

Ainda que não estejamos excomungados, somos proibidos de ouvir [a Missa] ao vivo. Proibidos pelo governo — e pela própria Igreja — de fazer parte dela.

A proibição por parte do governo é algo que os cristãos sofreram muitas vezes ao longo dos séculos, embora nossa geração não tenha sofrido isso. A proibição por parte da Igreja é inédita, até onde sei.

Com todo o respeito ao professor Farrow, que admiro imensamente, ele podia ter aprendido mais se ao menos procurasse no Google pela reação dos bispos católicos durante a Gripe Espanhola de 1918.

A resposta? Eles fecharam as igrejas. E depois pediram que os católicos se sacrificassem e ajudassem os próximos.

Na Filadélfia, por exemplo, no dia 3 de outubro de 1918, o Conselho de Saúde determinou que todas as escolas e eventos religiosos fossem fechados “por tempo indeterminado”. O bispo Dennis Dougherty não reclamou nem se rebelou. Em vez disso, ele ofereceu os imóveis da diocese para que fossem usados como hospitais e convocou todos os padres e freiras não-enclausuradas, além dos membros da Sociedade São Vicente de Paula, para ajudar as vítimas. Uma freira da congregação Imaculado Coração de Maria contou que entrou nas casas e encontrou famílias inteiras na cama, doentes, sem ninguém para cuidar deles. De acordo com o Centro Católico de Pesquisas Históricas da Arquidiocese da Filadélfia:

Quando isso acontecia as freiras davam banho nos doentes, limpavam a casa, preparavam comida e davam remédios aos doentes. As freiras que trabalhavam em hospitais, apesar da falta de experiência, tinham de administrar remédios, tirar a temperatura e alimentar os doentes. Muitas freiras trabalhavam em turnos de 12 horas. Uma delas disse que “graças a essa experiência, aprendi a admirar minha vocação mais do que nunca”.

Da mesma forma, em Washington, D.C., quando o responsável pela saúde ordenou o fechamento das igrejas, pastores protestantes se reuniram e votaram pela obediência ao decreto. Uma Igreja Presbiteriana aconselhou os fiéis:

Considerando que pareceu o melhor às autoridades deste distrito, depois de muita deliberação, proibir a reunião de pessoas aos domingos em seu lugar preferido de adoração, sugiro que, na mesma hora de sempre, vocês se reúnam em suas casas e se unam em oração ao Deus das Nações e Famílias, para que ele nos dê sabedoria nessa época de dificuldades, para que nossos médicos e autoridades públicas possam ser guiados em seu trabalho e contem com a ajuda divina, para que as pessoas sejam sábias e corajosas. Nunca nos esqueçamos de que “a ajuda vem do Senhor que fez os Céus e a terra”. O protetor de Israel não dormirá; Ele está sempre alerta!

Chris Gehrz, professor de história na Universidade Bethel de Minnesota, recentemente reuniu uma série de recortes de jornais de cidades cujas igrejas foram fechadas por causa da Gripe Espanhola. Na primeira página do Boston Globe de 29 de março de 1918, por exemplo, lê-se que este é “o domingo mais silencioso da história de Boston”, com os eventos religiosos e as aglomerações públicas canceladas. O jornal dizia que um dia como esse não se via desde a época dos puritanos.

Os cristãos são chamados a servir e a se sacrificar

Essa talvez seja uma boa hora de pensar no exemplo de São Carlos Borromeu durante a Peste de 1576, que muitos católicos nas minhas redes sociais usam para pedir que bispos e padres se rebelem. Depois que as autoridades civis fugiram, no auge da peste, São Carlos Borromeo permaneceu na cidade, onde cuidou dos doentes e dos moribundos, ajudando os necessitados. Ele fechou as igrejas de Milão. E depois instalou um punhado de alteres do lado de fora, para recitar a Missa. Ele fez isso para que as pessoas vissem que a Missa não tinha sido suspensa. O maior sacrifício ainda estava sendo realizado. Nós, católicos, podemos vivenciar a mesma coisa hoje, graças ao milagre dos serviços de streaming.

São Carlos Borromeo também doou sua fortuna para alimentar os famintos e impôs uma dura penitência a si mesmo. Então me permita pergunta uma coisa aos cristãos que anseiam por rebeldia: vocês já fizeram algo assim? Vocês receberam seu auxílio emergencial e doaram aos pobres? Ou vocês estão apenas tuitando sua insatisfação por não poderem comungar? São Carlos Borromeo era reverenciado e conquistou almas para Cristo porque ele se sacrificou pelos outros.

A reação cristã clássica a pestes não é usar nossos direitos e reclamarmos, e sim servir incansavelmente. O espírito que choraminga não é o Espírito de Cristo.

Também estou frustrada por perceber que a Igreja Católica não tem um papel de maior relevância nessa crise. Não podemos mais enviar freiras às favelas para que elas cuidem dos pobres porque os médicos cuidam da saúde e o governo lhes dá auxílio emergencial. A ONG Catholic Relief Services se atém ao trabalho no exterior. Não temos uma organização como a Samaritan’s Purse par amontar hospitais de campanha no Central Park. Os católicos norte-americanos talvez possam usar um pouco dessa energia para descobrir formas de ajudarmos em tempos de crise no futuro.

Mas quando ouço a insatisfação de muitos católicos, isso parece algo muito autocentrado: eu, eu, eu, e minhas necessidades espirituais. No fundo lembro dos versos de W. H. Auden:

E sempre a ensurdecedora multidão raivosa

Sem raivosa e sempre ruidosa,

A lei somos nós,

E sempre o idiota sussurrando eu.

O foco em si mesmo, e não nos outros, é a orientação básica do pecado.

Que testemunhos estamos dando?

Estou impressionada com a quantidade de gente que acha que uma pandemia perigosa é a melhor hora para fomentar o espírito de rebelião e começar uma luta contra o governo pelo que muita gente certamente verá como nosso direito de infectar as outras pessoas. É assim que os outros nos verão. Eles não veem isso como um testemunho de nossa fé inabalável, e sim uma prova do nosso desprezo teimoso pela vida deles e a vida dos policiais, funcionários de supermercados e lixeiros com os quais todos interagimos.

O pastor da igreja de Ohio que insiste em realizar cultos diz que ele está recebendo e-mails cheios de ódio, com mensagens do tipo “eu odeio você e espero que sua família morra, vamos trancá-los na igreja e esperamos que vocês morram todos juntos”. As pessoas mais decentes, como Sandra, que está isolada em casa vendo todos irem à igreja aos domingos, discordam. “Acho que eles deveriam obedecer as leis, como a Bíblia dos manda”, disse ela à Reuters.

Lutar pela liberdade religiosa, sendo que nossos vizinhos verão isso como “o direito de infectar os outros” é uma luta perdida. E que talvez nos leve também a perder algumas almas. Nossos vizinhos estão compreensivelmente revoltados com o aparente egoísmo de nossas necessidades numa época de crise.

A Missa não foi cancelada. Cristo está presente todos os dias graças ao sacerdócio que Ele criou. O grande drama do sacrifício de Cristo e nossa Ressurreição com Ele continua. Só estão nos pedindo que temporariamente nos abstenhamos da Eucaristia. Muitos católicos, em muitos lugares, passam muito tempo sem a comunhão semanal. A nossa fé, salvação ou o caráter fundamental da Eucaristia não dependem do nosso “direito” a recebermos a comunhão todos os domingos.

A reação cristã tradicional numa pandemia é clara: servir. Compartilhar. Sacrificar. Rezar.

Que façamos isso.

*Maggie Gallagher é diretora-executiva do site BenedictInstitute.org

© 2020 The Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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