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A filosofia de Eric Voegelin é rebelde às amarras ideológicas de seu tempo e não busca as massas para afagá-las.
A filosofia de Eric Voegelin é rebelde às amarras ideológicas de seu tempo e não busca as massas para afagá-las.| Foto: Divulgação

Eric Voegelin (1901-1985) se tornou o autor mais disputado por aquilo que se convencionou chamar de “nova direita”, ou seja, os intelectuais liberais e conservadores que ganharam espaço depois de 1990. Mas se enganaria muito aquele que pensasse que o filósofo germano-americano é algum tipo comum de filósofo pop ― tão comum em nossa era ― ou que suas teorias filosóficas tenham a missão de agradar as massas e acalentar os mais desestabilizados, uma espécie de coach dos abobalhados.

Pelo contrário, a filosofia de Voegelin é rebelde às amarras ideológicas de seu tempo e não busca as massas para afagá-la. Ele não se deixou abarcar pelo autoritarismo nazista e fascista, muito menos pela tirania comunista e pelo socialismo de fala mansa da escola frankfurtiana.

Porém, verdade seja dita, Voegelin jamais se autodenominou conservador. Pelo contrário, com certo preconceito ele se afastou desse grupo. Em seu tempo, o termo ainda era erroneamente concebido como uma amarra ideológica tal como o progressismo dos jacobinos no século XVIII e do comunismo e do fascismo no século XX. Pensava-se que quem se denominasse conservador teria que abarcar automaticamente outras características da ideologia por atacado. Um temor que outros autores, hoje reconhecidos como conservadores, também nutriram ― G. K. Chesterton (1874-1936) e Friedrich von Hayek (1899-1992) são bons exemplos desse temor inicial.

Aos poucos, contudo, essa percepção foi degringolando e, com as obras de filosofia política, principalmente as de Russell Kirk (1918-1994), isso definitivamente foi deixado para trás para a maioria dos conservadores de matriz anglo-americana, ao ponto de que, a partir da década de 1960, denominar-se conservador se tornou um autoelogio comum nos Estados Unidos.

O principal atributo conservador ― como já vimos em biografias anteriores ― sempre foi o inconformismo com os arquétipos dos mandatários ideológicos de seu tempo. Por isso mesmo que, sem demora, vários intelectuais perceberam que não ser adepto de nenhuma ideologia naturalmente os aproximava do pensamento anti-ideológico dos conservadores.

Por essa característica de inconformismo com os moldes políticos de seu tempo, unida à visão transcendental da realidade e da hierarquia existencial, Voegelin sem demora se tornou disputado por conservadores e liberais clássicos de todo o mundo. Aqui no Brasil o mérito da sua popularização é da editora É realizações, que lançou 18 títulos relacionado a Voegelin, seja de comentários ao seu pensamento, introdução à sua filosofia ou as próprias obras do autor. A editora lançou a monumental coleção História das ideias políticas, em oito volumes, obra inacabada e abandonada pelo Voegelin ― explicaremos mais adiante o porquê disso.

Para sermos totalmente justos, também a editora Loyola corajosamente lançou os 5 volumes de obra magna de Eric Voeglin: Ordem e história, na qual o filósofo ― já com uma consciência mais madura ― mergulha substancialmente na pura reflexão filosófica sobre os alicerces da realidade.

Um intelectual diferente

Eric Hermann Wilhelm Voegelin nasce em 3 de janeiro de 1901 em Colônia, Alemanha. Filho de Otto Stefan Voegelin (engenheiro civil e confesso luterano) e de Elizabeth Rüehl (católica), Eric Voeglin logo aos 9 anos, em 1910, mudou-se para Viena com a família a fim de receber, junto à sua irmã, uma sólida formação escolar nas áreas de exatas, humanas e línguas estrangeiras. Segundo seus biógrafos, ele foi educado em 5 línguas diferentes: latim, inglês, francês e italiano, além de sua própria língua materna, o alemão. O ambiente intelectual que cercava a Áustria naquele primoroso momento, mais especificamente na Viena do final do século XIX, produziu uma sólida intelectualidade para a humanidade ― Friedrich August von Hayek e Karl Popper (1902-1994) são apenas dois nomes para exemplificarmos.

Em 1919, Voegelin foi aceito na faculdade de Direito da Universidade de Viena e é lá que mais tarde se tornaria assistente do grande intelectual do mundo jurídico, Hans Kelsen (1881-1973), com quem teria sérias desavenças intelectuais posteriormente. De 1919 a 1934, ele frequentou assiduamente os seminários de Ludwig von Mises (1881-1973). Do final de 1921 ao início de 1922, ele estudou na Universidade de Oxford. Em 1922, defendeu a sua tese de doutorado sob a orientação de Othmar Spann (1878-1950) e Hans Kelsen (1881-1973).

Em 1924, Voegelin recebeu uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller para estudar dois anos nos Estados Unidos, onde passou pela Universidade da Columbia, Harvard e Wisconsin. Depois de prolongar a bolsa por mais um ano, foi estudar em Paris. O primeiro livro de Voegelin é Über die Form der Amerikanischen Geistes [Acerca da forma do espírito americano]. Esse trabalho permitiu que ele voltasse para Viena e lecionasse Sociologia e Ciência Política na Faculdade de Direito e na Escola Técnica Superior da Universidade de Viena.

Em 1932, Voegelin se casou com Luise Betty Onken (1906-1996). O matrimônio duradouro se tornou o grande sustentáculo para o seu frondoso trabalho intelectual. O casal não teve filhos. Em 1933, Voegelin começou uma verdadeira saga contra o espírito ditatorial do século XX, saga que o marcaria para sempre e que moldaria a sua filosofia até o fim de sua vida. Nesse ano, ele lançou duas obras elementares que fariam da cátedra que ocupava um espaço de resistência à tirania que se anunciava pelos cantos de Viena. Depois de lançar Rasse und Staat [Raça e Estado] e Die Rassenidee in der Geistesgeschichte: von Ray bis Carus [A ideia de raça na história das ideias: De Ray a Carus], o filósofo corajosamente adentra o conceito sociológico, filosófico e biológico de raça, analisando qual o seu peso e representação na história social. Com muita argúcia e sinceridade, ele anteviu o massacre político que, naquele momento, poderia ser perpetrado pelo nacional-socialismo alemão se as convicções do grupo conquistassem adeptos e espaço político.

Fato é que suas obras obviamente não agradaram os nazistas e os apoiadores de Hitler. Depois de lançar, em 1938, a obra Die politischen Religionen [As religiões políticas], na qual argumenta que a transcendentalidade é algo que apoia e suporta a realidade tal como ela é e, ao mesmo tempo, criticar a sacralização do Estado como meio de irrupção revolucionária, sua cabeça passou a ser um alvo para os novos líderes. Em 11 de março de 1938, a Áustria é então invadida pela a Alemanha e Voegelin obviamente perde o emprego por ser um crítico voraz do nazismo. No mesmo mês, sentindo que seria preso a qualquer momento, ele fugiu com sua esposa para Zurique, na Suíça.

Foi uma fuga quase cinematográfica. Ele relata em suas Reflexões autobiográficas que a Gestapo chegou a ir duas vezes em sua casa para reter seu visto de saída para a Suíça, mas nas duas vezes ele não estava em casa. Depois, com a ajuda de alguns amigos, finalmente ele e sua esposa conseguem imigrar paras os EUA. Em um dos relatos desse momento podemos quase sentir o desprezo que Voegelin nutria pela ideologia nazista e ao mesmo tempo a tensão que rondava aqueles dias de quase prisão:

Assim que Hitler Ocupou a Áustria, cheguei a flertar por um instante com a ideia de apoiar os nacional-socialistas. [...] Mas a minha formação moral não me permitia tamanho excesso. Depois de muitas horas naquele estado de fúria, a razão venceu e cuidei de preparar minha emigração. Isso era necessário, pois eu nunca fizera segredo de minha atitude contrária ao nacional socialismo e, como já era previsível, fui prontamente demitido do meu cargo na universidade.

Nos estados Unidos, em 1938 e 1939, ele trabalhou como professor na Universidade de Harvard e no Bennington College. Em 1940, Voegelin assumiu uma cadeira na Universidade do Alabama e, em 1942, se transferiu para o Departamento de Ciência Política da Universidade de Louisiana. Curiosamente, sua estadia na Louisiana foi o momento mais produtivo de sua vida, seja como estudioso, seja em relação à produção intelectual. De 1942 a 1957, tempo que passou nessa universidade, ele se aprofundou em hebraico, grego e até chinês.

Foi também em Louisiana que o filósofo escreveu a maior parte de sua obra História das ideias políticas e pesquisou as fontes primárias que seriam utilizadas por ele até o seu fim como grande manancial de reflexão e escrita acadêmica. Apesar dos 8 volumes da coleção, Voegelin abandonou a obra pois julgava que um trabalho de marcações e apontamentos histórico-filosóficos não chegaria ao amago da questão política, que era justamente a pergunta: “o que é e o que sustenta a nossa concepção de realidade”?

É em outra coleção, Ordem e história, que o filósofo tentará alcançar tal resposta. No entanto, o valor intelectual que há em História das ideias políticas é praticamente incalculável e até hoje a coleção embasa os mais rigorosos e aclamados estudos históricos e de crítica política.

Mas foi em 1952, com A nova ciência da política, que Eric Voeglin despertou a atenção da intelectualidade de seu tempo. A obra denunciava a estratégia político-religiosa das ideologias que pretendiam se apoderar da consciência, da realidade e da carcaça religiosa a fim de instaurar seus ditames políticos nas nações que habitavam. Sem dúvida esse foi o grande acerto do autor naquele momento. O tamanho relativamente pequeno do livro, assim como sua escrita direta e didática, levou a reflexão da ciência política para além do materialismo histórico marxista que disputava espaço nas mentes dos estudantes de filosofia política e ciência política dos Estados Unidos.

Em 1959, Voegelin lançou outro livro com um tema muito semelhante: Science, Politics, and Gnosticism [Ciência, política e gnosticismo]. A obra buscava atualizar a anterior e corrigir alguns problemas filosóficos internos. Outro sucesso de crítica, não demorou para se tornar manual e ocasião para debates dentro das universidades americanas e europeias.

Em 1964, Voegelin reuniu 11 conferência no livro Hitler e os alemães. Em 1966, publicou Anamnesis, obra que, para muitos de seus entusiastas, é o elo necessário para entender a mente e a filosofia de Voegelin, a parte sem a qual toda a reflexão voegliniana se torna obsoleta e abstrata.

Sua carreira como professor terminou no Hoover Institute, na Universidade de Stanford, onde permaneceu de 1969 até a sua aposentadoria, em 1974. Voegelin morreu em 19 de janeiro de 1985.

O problema religioso da política dos deuses do século XX

Eric Voegelin com certeza não foi o primeiro intelectual a falar do fenômeno da sacralização mundana dos componentes político-ideológicos da sociedade. Tal percepção denunciativa já estava, de maneira embrionária, em Edmund Burke (1729-1797), e escancarado nas pretensões de “religião social” de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e de Conde de Saint-Simon (1760-1825).

A diferença de Voegelin é que ele dá uma explicação completa para a burla em si, e não somente flashs de denúncias. Para o filósofo germano-americano, o gnosticismo revisitado pela mentalidade filosófica do século XVIII, XIX e XX é a chave para entender a questão política atual.

Primeiramente lembremos o que é o gnosticismo. Trata-se de uma heresia de variação cristã que nasce por volta do século II d. C.. Os gnósticos acreditavam que o conhecimento puro e simples era a chave para mudanças e correções de todas as aporias e imperfeições da realidade e que a posse de um conhecimento inovador e completo permitiria ao homem galgar a salvação social e/ou a iluminação de sua alma.

Ou seja, o sistema gnóstico abandona a graça sobrenatural de Deus como meio de salvação e a coloca aqui na Terra. No o alcance da psiquê humana ― afirma o gnosticismo ― estão todos os instrumentos de autorredenção de que a humanidade necessita. Em suma, os gnósticos acreditavam que, por suas forças e abnegações intelectuais, era possível alcançar a salvação final, além de consertar os problemas que a própria existência naturalmente comporta.

Voegelin, por meio das suas obras A nova ciência da política e Ciência, política e gnosticismo, demonstra como a modernidade simplesmente reaqueceu a heresia antiga e deu a ela novas roupagens, pois o cerne mesmo da crença ideológica moderna é acreditar que, com a posse e pertencimento a um grupo determinado, alcançaremos a redenção humana e social por meio de métodos sociológicos e instrumentos intelectuais.

No quinto volume da obra História das ideias políticas o filósofo rastreia o que seria a volta do gnosticismo, agora com uma linguagem mais aberta e escancarada. Ele rastreia especificamente no final do século XIII, sob o renascimento do pensamento milenarista, a origem das "religiões políticas” que tomariam conta do panorama histórico do século XX. Ele menciona o abade cisterciense e filósofo Joaquim de Fiore (1135-1202). O religioso acreditava que a história era dividida em 3 etapas, em referência à Trindade Santa: o reino do Pai, que abarca de Adão ao Cristo; o reino do filho que se dá de Cristo a 1200 e o reino do Espírito que iria de 1200 ao juízo final. Joaquim de Fiore é milenarista e, como tal, acredita que o reino dos Céus e o da Terra se misturam. Para o abade, é no reino do Espírito que os perfeitos e a própria Parúsia se mostrará de maneira visível e real. Em suma, Joaquim de Fiore acreditava que o reino de perfeição divina seria efetivado cá na Terra.

Fiore viria a influenciar toda uma gama de filósofos, entre eles Auguste Comte (1798-1857), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1770-1831). Sobre isso, afirma o professor de ciência política Michel P. Frederici: “Para Voegelin, a escatologia trinitária de Joaquim é uma característica definidora da modernidade e especialmente da política moderna”.

Voegelin denomina a realidade de perfeição transcendente de escathon e afirma que a missão principal das ideologias influenciadas por Fiore, em última análise, é tentar imanentizar a todo custo esse escathon. Isto é, tentar enfiar o céu na Terra, a perfeição na imperfeição, o divino no profano, a Verdade na ilusão, o eterno no precário. E, a fim de salvar a ordem natural das coisas, Voegelin também faz uso de um filósofo cristão antigo, um filósofo que, já em seu tempo, lutou intelectualmente contra os gnósticos.

Para Eric Voegelin é claro que a definição das Cidades de Santo Agostinho de Hipona (354-430) era o meio de sanidade que permitia aos habitantes dessa Terra o discernimento correto sobre as suas capacidades e incapacidades diante da realidade. Esse discernimento, aliás, é a própria alma da realidade. Quando o santo afirmou, na sua louvada obra Cidade de Deus, que há uma divisão entre cidade terrena e cidade eterna e que era essa última realidade transcendental a que atualizava a primeira realidade imperfeita por meio de seus símbolos e providências, ele colocava uma clara linha divisória intransponível nas pretensões humanas de criar com as próprias mãos uma cidade perfeita por meio de ajustes políticos e profetismos ideológicos.

De certa maneira, Voegelin tenta encampar uma nova investida agostiniana no século XX e mostrar a impossibilidade substancial de perfeição que as ideologias modernas tentam alcançar. Ao mesmo tempo, ele pretende mostrar que, por meio de seus símbolos engendrantes, a ordem transcendente moral e metafísica que abarca a nossa realidade material é uma realidade substancial inacabada.

E é aqui que entra o problema da ordem cósmica e do simbolismo. Para Voegelin, os símbolos que atualizam na realidade e nas eras uma consciência civilizacional são mais do que meras cópias da linguagem humana de uma realidade divina ou de uma percepção de consciência universal. Para ele, o símbolo é a própria presença divina na realidade e fonte de ordenamento mínimo desse plano. Dessa verdade, conscientemente ou não, participamos e ajudamos a desvendar ou obnubilar. Em suas próprias palavras:

Os símbolos são fenômenos de linguagem engendrados pelo processo da experiência de participação. Os símbolos de linguagem que expressam uma experiência não são invenções de uma consciência humana imanentista, mas são engendrados no processo mesmo de participação. [...] Um símbolo não é nem um signo humano convencional que traduz uma realidade exterior à consciência, nem como sugerem certas formulações teológicas, a palavra de Deus transmitidas, convenientemente, em linguagem inteligível ao receptor. Mais propriamente, um símbolo é gerado pelo encontro entre o humano e o divino e, como tal, participa tanto da realidade humana quanto a da realidade divina. Esta me parece, ao menos até o momento, a melhor formulação desse problema que atormenta tantos filósofos do simbolismo: o de que os símbolos não significam simplesmente uma realidade divina que está além da consciência, mas são, de alguma maneira, a realidade divina em sua presença mesma.

O problema da ordem

O problema ideológico, para Voegelin, vai muito além da desordem moral de um país ou Estado. A ideologia e o sucesso de suas linguagens apenas evidenciam uma desordem da consciência e do espírito humano como um todo. E, para o filósofo, os gnósticos de nosso tempo já começam a partida ganhando, pois é seu papel vender os alucinógenos, enquanto os amigos da realidade vendem os amargos remédios contra as esquizofrenias causadas pelas delícias psicodélicas das ideologias.

A promessa ideológica é muito convidativa, ela insere no ego humano um empoderamento divino, fazendo-o crer que basta o seu engajamento num grupo de homens intelectualizados, de indivíduos que têm o reto conhecimento e pronto: a Parúsia está logo ali. É só esperar.

Esse resumo pode ser perfeitamente encaixado nas pretensões comunistas, nazistas e fascistas. Todas as ideologias modernas, de uma forma ou de outra, seguiram tais roteiros em suas revoluções e investidas. A desordem criada pelas ideologias, entre outros sintomas e cancros, está na ausência de percepção moral e na quebra da sintonia entre o homem e a realidade. Essa realidade é a que se sobrepõe aos indivíduos, não pedindo a eles as suas opiniões econômicas e políticas a fim de dar rumo aos desígnios que são exclusivos da própria realidade.

Para Voegelin o homem só pode perceber a realidade se sua consciência estiver desinfectada do vírus da ideologia e das ilusões pseudofilosóficas. No fundo, para o filósofo a percepção da realidade está intrinsecamente ligado ao autoconhecimento e à reta compreensão de sua própria consciência. Por isso mesmo, é necessário que as pessoas façam um aprofundamento reminiscente. Isto é, tal como na teoria de Platão, é preciso que o homem busque em sua consciência os elos quebrados que levaram sua mente e suas experiências de realidade a se desvincularem das obviedades do ser, aquilo que lhe mostra a transcendência de sua existência. A harmonia entre vontade do agente e a iluminação transcendente dos fatos é a própria ordem na história.

O livro Anamnese é justamente a tentativa de explicitar esse processo. E por isso mesmo eu disse acima que, sem o entendimento e a prática desse processo, segundo o autor, o homem não consegue evoluir em sua interpretação da realidade.

Segundo Michel P. Federici, estudioso da teoria de Voegelina, o processo de entendimento da ordem da realidade implica naturalmente em duas condições. A primeira é a condição ética do agente, sem a qual nem a percepção da distonia entre a sua alma e as obviedades da existência ele perceberá. A segunda condição é o esforço racional do agente em querer conhecer a realidade em seu âmago, iluminada, é claro, pelo impulso transcendente em suas experiências e percepções. Sem esse casamento entre esforço racional e iluminação transcendente, o que se verá são somente borrões e fantasmas malformados através de olhos míopes e defeituosos.

É esse o processo intelectual do homem, a teoria do conhecimento que Voegelin propõe. A história, para Voegelin, é o processo contínuo do homem sob tal caminho anamnético, de consciência de sua limitação, busca por sintonia, conhecimento e, por fim, a própria iluminação transcendental que revela as lacunas e entornos de forma gradual. Esse é o próprio roteiro da humanidade em busca de uma ordem possível, afirma o filósofo.

A ordem é, então, a sintonia fina que há entre a consciência do homem e a ação transcendente do divino que atualiza e ilumina a realidade tal como ela é em sua compreensão possível. Nas palavras do próprio Vogelin: “Ordem é a estrutura da realidade como experenciada pelo homem, bem como a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele, isto é, a ordem cósmica”. Após o homem sondar a sua consciência de maneira sincera e realizar um processo de anamnese, se sintonizando também com a realidade transcendente que ilumina os fatos e mistérios, ele está alinhado com o Agathon (o bem), isto é, a ordem.

Para finalizar, vejamos o resumo muito elucidativo do já citado Michel P. Federici:

A reconquista da ordem na sociedade desordenada depende da confrontação entre a verdade (aletheia) representada na alma de seu portador e a desordem da sociedade representada nas mentiras e ilusões (doxai) do dia. Os pensadores representativos que descobriram a verdade que Voegelin discute em Ordem e História deveriam ser vistos nesse contexto; eles ordenaram a própria alma de acordo com o Agathon (O bem), e sua resistência à doxa (desordem) é o caminho que a sociedade tem de seguir para restaurar a Eunomia, a ordem justa.

Voegelin e o conservadorismo

Como adiantei no início do artigo, Eric Voegelin é conservador por puro desenvolvimento intelectual, desinteressado das brigas grupais de seu tempo, totalmente alheio à toda discussão entre tribos à direita ou à esquerda.

Voegelin desenvolveu sua filosofia com rigor, com uma capacidade intelectual incrível, se apoiando primordialmente nos pensadores clássicos e, assim, por competência própria e por desígnios furtuitos, aportou em águas não ideológicas. Por isso, ele se uniu a conservadores que também já vinham há tempos denunciando a mesquinhez intelectual dos construtos ideológicos pós-Revolução Francesa.

No entanto, não esperem dele qualquer aplauso militante ou ânsia ativista. Para o filósofo, pouco importam as militâncias, pois elas carregam o mal da cegueira ideológica que é, por fim, o engano que levou a humanidade ao pior pandemônio histórico de todos os tempos: as ditaduras e genocídios do século XX. Na verdade, Voegelin via o conservadorismo como qualquer outra ideologia do século XX e acreditava que sua representação política sofria dos mesmos males da representação catequética dos esquerdistas.

É bem verdade que, apesar das suas críticas, a filosofia de Voegelin se assemelha em vários momentos à filosofia burkeana. Ambos acreditavam que a transcendência atuava e definia aquilo que é realidade. Ambos parecem crer que a reta política se faz na conservação da reta cultura tradicional do Ocidente, assim como concordam que a revolução acéfala e a militância tola são os princípios mesmos da decadência social.

No entanto, apesar de tais semelhanças com o pai da filosofia conservadora, Eric Voegelin definitivamente não era conservador militante – ainda que, entre democratas e republicanos, seu endosso obviamente não seria para os progressistas. Voegelin cresceu num ambiente conservador moderado da reformista Áustria do final do século XIX e por isso é notável que sua filosofia e modo de ser se adequem de algum modo aos princípios da filosofia conservadora.

Esse debate sobre o conservadorismo de Voegelin ainda se mantém aberto entre seus analistas, mas não há dúvidas de que o pensamento conservador contemporâneo tem na filosofia voegliniana um dos principais fundamentos. Não seria exagero algum afirmar que as teorias filosóficas que Eric Voegelin tornou real são, ainda hoje, uma das que mais fazem sucesso entre os intelectuais do conservadorismo contemporâneo.

Voegelin parece ter se unido aos conservadores de forma involuntária, mas não é involuntário que sua filosofia seja um porto seguro para o pensadores liberais e conservadores do século XXI. Sua filosofia robusta é extremamente necessária para aqueles que querem pensar a política de forma séria para além dos folhetins sindicais ou das cartilhas de partidos.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Jr.
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