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Estamos entrando em uma era de  pós-democracia científica.
Estamos entrando em uma era de pós-democracia científica.| Foto: Pixabay

Uma das características marcantes da epidemia de coronavírus é a presença insistente de "especialistas". A política ficou para trás, em segundo plano, parecendo estar sujeita a uma autoridade superior identificada por uma ciência genérica, ou melhor, uma "Ciência".

A percepção de um poder não regulamentado mas efetivo manifestou-se visivelmente durante as conferências de ministérios da Saúde e nas infinitas intervenções de programas de talk show. Onde responsáveis técnicos e expoentes do mundo científico foram levados a invadir campos fora de sua competência, indicando datas para o prolongamento do lockdown e determinando medidas que não eram de sua faculdade.

Mas tudo isso não deveria surpreender. Já há algum tempo assistimos à lenta mas constante condução dos países democráticos em direção a formas de sujeição política por pessoas não eleitas. Um trabalho de desgaste que começou de longe com a deslegitimação da representatividade popular: uma ideia difundida pela tese de que a corrupção da política é a raiz de todos os problemas e que, portanto, seria desejável fiar-se a elementos externos.

Essa ideia se baseia no conceito de que os seres humanos que fazem política são ontologicamente diferentes daqueles encontrados em outras instituições. Uma hipótese inconsistente, mas que, apoiada pela mídia, encontrou aceitação em uma opinião pública bastante ingênua e que sempre procura um bode expiatório.

Estando deslegitimada a representação popular, as conquistas sociais obtidas por gerações inteiras foram dessa forma corroídas com a cessão de áreas de interesse público para técnicos considerados mais confiáveis. Nascia assim o que poderia ser definido como "tecnocracia", o governo dos técnicos, e que cada vez mais frequentemente tende para o que poderia ser chamado de (usando um neologismo) uma "cientocracia".

A cientocracia é uma forma de governo que não age eliminando a política, mas que opera tornando-a na realidade supérflua, condicionando suas decisões e garantindo que não haja alternativas às indicações propostas. Essa maneira de governar ocorre por meio da criação do que se chama de "obrigações externas".

A obrigação externa propriamente dita é uma lei ou tratado que  compele a determinadas escolhas, às quais se deve submeter e que não são questionáveis. Começamos a nos familiarizar há anos com essa forma de poder no contexto das questões climáticas, quando um órgão supranacional da ONU, responsável pelo estudo das mudanças climáticas, o IPCC, adquiriu progressivamente cada vez mais influência, chegando a dirigir protocolos internacionais.

Para a atuação da cientocracia, a atividade conjunta de "especialistas" e imprensa é indissolúvel. Uma opinião pública amestrada para receber favoravelmente e como palavra indiscutível tudo o que vem da "ciência" é o substituto do voto democrático popular que transforma a legitimidade popular do sufrágio universal em uma legitimidade de pesquisas de opinião.

A persuasão da opinião pública que ocorre na cientocracia segue o que acontece nas operações de marketing implementadas para o lançamento de um produto comercial. Além disso, na cientocracia a sociedade é equiparada e governada como um único e imenso mercado a ser conquistado.

As operações de marketing, por sua vez, são reconhecidas tipicamente pelo uso de "depoimentos", com personagens construídos artificialmente, mas propostos e aceitos como fenômenos espontâneos. Uma audiência acostumada a esse tipo de operação comercial deveria teoricamente reconhecê-la em sua verdadeira natureza, mas devido à autoridade residual da grande mídia entre uma parcela significativa da população, esse mecanismo não é percebido.

Um caso real e evidente da criação de depoimentos é a operação Greta Thunberg, que, apesar de não esconder a artificialidade, é acolhida por grande parte da sociedade como expressão de uma história verdadeira, tanto mais autêntica quanto mais estejam presentes implicações emocionais e anedotas pessoais.

A "ciência" nesse tipo de operação deixa de ser representada por pesquisadores considerados mais ou menos respeitáveis para ser representada por personagens que, justamente por não pertencerem à comunidade de "cientistas", vão mais diretamente aos corações das pessoas comuns e que com eles possam se identificar. Através desses personagens as pessoas podem pensar que é possível que alguém realize um grande feito começando de baixo. É uma forma de estrelismo de show de talentos transposto para questões científicas.

O estrelismo científico também está fortemente presente no campo da medicina, onde mais uma vez o papel da política pode ser espremido até a irrelevância. Aqui também é fundamental o uso do depoimento de especialista. Veja, por exemplo, a criação de um especialista como o prof. Roberto Burioni: até 2016 desconhecido do grande público e lançado naquele ano com um artigo na Repubblica, um privilégio muito raro.

Os especialistas propostos pelo marketing da cientocracia desfrutam do favor da mídia, podem dizer que não há perigo de epidemia e, posteriormente, afirmar o contrário; podem aviltar colegas, culpados por não estarem alinhados com o pensamento politicamente correto e insultar os outros. Nenhum jornal estará contra eles.

No tempo da cientocracia, a política, isto é, a nossa representação, é cada vez mais intimidada e levada a se resguardar por trás das reivindicações da "ciência". O sistema cientocrático se alimenta de medos pessoais e coletivos que assumem o papel de “obrigações externas” para as ações: se as coisas derem certo, o político obterá a aprovação geral; se, ao contrário, derem errado, não será culpa de ninguém.

Mas tudo isso não é algo novo, é a realização de um sistema de governo proposto por Francis Bacon em New Atlantis [Nova Atlântida], no início do século XVII. Com o surgimento da cientocracia, realiza-se a sociedade descrita por ele, que de utopia se transforma em realidade. Assim estamos entrando em uma era de pós-democracia científica.

*Enzo Pennetta, formado em Biologia e Farmácia, é professor de ciências naturais. Em 2011, publicou "Investigação do darwinismo"; em 2016, "O último homem"; e em 2020, "O quarto domínio".

© 2020 La Nuova Bussola Quotidiana. Publicado com permissão. Original em italiano.
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