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O governador Ron DeSantis, que assinou uma lei proibindo treinamentos empresariais abordando privilégio ou opressão com base em raça, gênero ou origem nacional: "Não há lugar para doutrinação ou discriminação na Flórida"
O governador Ron DeSantis, que assinou uma lei proibindo treinamentos empresariais abordando privilégio ou opressão com base em raça, gênero ou origem nacional: “Não há lugar para doutrinação ou discriminação na Flórida”| Foto: EFE/Giorgio Viera

Deixar de lado a finalidade de oferecer bons produtos e serviços para assumir posições políticas, sobretudo em temas controversos como aborto, armas, diversidade e mudanças climáticas, pode ter um preço alto para as empresas, não só pelas já conhecidas ações de boicote por parte do consumidor final. Neste ano, pelo menos 44 projetos de lei ou novas leis penalizando a militância corporativa foram criados em 17 estados americanos liderados por republicanos; quase quatro vezes mais do que o registrado em 2021.

O levantamento foi publicado no mês passado pela agência de notícias Reuters, que ressalta que as medidas anti-woke não se restringem a redutos conservadores tradicionais, como o Texas, mas têm avançado nos chamados estados roxos, cujos eleitores oscilam entre candidatos democratas e republicanos, como Arizona e Ohio.

Além de armas e energia, que foram o foco de pelo menos 30 medidas legislativas nos EUA, em 2022, a análise mostra que temas como questões sociais, incluindo teoria crítica de raça (que defende que o preconceito racial está embutido nas leis e instituições americanas), obrigatoriedade de vacinas contra Covid-19 e crédito social (sistema chinês que leva em consideração as inclinações políticas do indivíduo na hora de fornecer e precificar serviços) também foram pauta de projetos de lei.

No mês de abril, o governador da Flórida, Ron DeSantis, assinou uma lei que ficou conhecida como Ato Stop WOKE [iniciais em inglês para Wrongs to Our Kids and Employees; algo como chega de engano para nossos filhos e funcionários, em tradução livre], proibindo treinamentos em empresas ou escolas que afirmem que as pessoas são privilegiadas ou oprimidas com base em raça, gênero ou origem nacional, ou que alguém “tem responsabilidade pessoal e deve sentir culpa, angústia ou outras formas de sofrimento psicológico” por ações cometidas no passado por membros de sua raça, gênero ou nacionalidade. Segundo a legislação, esse tipo de treinamento equivale a discriminação.

“Na Flórida, não vamos deixar a agenda da extrema esquerda tomar conta de nossas escolas e locais de trabalho. Não há lugar para doutrinação ou discriminação na Flórida”, disse DeSantis. Na época, o governador apontou o Bank of America como uma empresa que realiza esse tipo de treinamento. Um porta-voz do banco alegou que os materiais foram oferecidos a centenas de empresas por uma organização sem fins lucrativos e, portanto, não faziam parte de seus treinamentos próprios.

Na opinião do ex-diretor do Escritório de Administração e Orçamento dos EUA e presidente do Center for Renewing America, Russ Vought, “boicotes podem ou não funcionar, mas o que funcionará é identificar todos os benefícios exclusivos que essas empresas woke obtêm sob a lei e removê-los e exigir que operem como todas as outras empresas nesses estados”.

Foi o que aconteceu recentemente com a Disney, também na Flórida. Em abril, DeSantis assinou um projeto de lei aprovado pelo Legislativo de maioria republicana, revogando a isenção especial de impostos e outros privilégios para o Walt Disney World em Orlando. O benefício, que existia há mais de meio século, por um entendimento dos legisladores de que o empreendimento criaria empregos, atrairia turistas e geraria impostos sobre as vendas de produtos, foi derrubado após protestos do CEO da Disney, Bob Chapek, contra a Lei dos Direitos dos Pais na Educação. O projeto do governador proíbe o ensino de questões de gênero na educação infantil até a terceira série na Flórida.

Aborto 

Com a revogação de Roe vs. Wade pela Suprema Corte, devolvendo a cada estado a autonomia de legislar sobre o aborto nos Estados Unidos, o tema também deve passar a ser pauta de projetos contra empresas que facilitam o acesso ao serviço em outros estados. O legislador republicano do Texas Briscoe Cain declarou que planeja uma legislação para proibir a cobertura de custos de viagem para aborto e para impedir que as empresas que a fornecem fechem qualquer negócio ou contrato com o estado do Texas. "Nenhuma corporação que faça negócios no Texas terá permissão para subsidiar abortos ou viagens de aborto de qualquer maneira", disse à Reuters.

Dois meses da queda da jurisprudência no Supremo, um grupo de 14 republicanos da Câmara dos Deputados do Texas, liderado por Cain, enviou uma carta ao CEO da Lyft, Logan Green, afirmando que “o estado do Texas tomará medidas rápidas e decisivas se você não rescindir imediatamente sua política recentemente anunciada de pagar as despesas de viagem de mulheres que abortam seus filhos ainda não nascidos”. Eles também se comprometeram a apresentar projetos de lei impedindo empresas que pagam por abortos a fazer negócios com o estado.

Armas de fogo 

Em setembro do ano passado, entrou em vigor no Texas uma lei proibindo agências estaduais de fazerem negócios com qualquer corporação que “discrimine” empresas ou pessoas ligadas à fabricação de armas e munições. A legislação exige que bancos e outras empresas enviem cartas ao procurador-geral do Estado, atestando que “não têm uma prática, política, orientação ou diretiva que discrimine uma entidade de armas de fogo ou associação comercial de armas de fogo".

A medida é uma reação a um movimento iniciado pelo JPMorgan Chase, maior banco dos EUA, e pelo Citigroup, limitando parcerias que envolvessem armas de fogo, em 2018, após um tiroteio que deixou 17 mortos em Parkland, na Flórida. O Citicorp (divisão de consumo do Citigroup) afirmou que proibiria seus clientes de varejo de vender armas para pessoas sem verificação de antecedentes (o que já é previsto pela lei) e para menores de 21 anos, além das vendas de estoques. Entre esses clientes da instituição bancária estão os que recebem empréstimos e os que oferecem cartões de créditos de lojas.

O Bank of America informou que não emprestaria mais recursos para fabricantes de armas de estilo militar. Na mesma linha, a BlackRock, maior gestora de ativos do mundo (são mais de R$ 44 trilhões em ativos sob sua gestão, cinco vezes o PIB do Brasil em 2021, que foi de R$ 8,7 trilhões), disse que iria excluir fabricantes e vendedores de armas de seu novo fundo de investimentos. Seu presidente e CEO, Larry Fink, é considerado o responsável pela popularização do ESG, ao pressionar as empresas nas quais investe a cumprir uma agenda agressiva de mudança climática e diversidade em suas operações.

A BlackRock, aliás, já vinha sendo boicotada  para certos serviços pelos estados de Virgínia Ocidental e Arkansas, devido à sua postura climática, segundo informou o tesoureiro republicano da Virgínia Ocidental, Riley Moore, e reportagens de veículos do Arkansas. “Eles estão usando o poder de seu capital para empurrar suas ideias e ideologias para o resto de nós”, afirmou Moore.

Depois de declarar que suas relações comerciais com fabricantes de armas "caíram significativamente e são bastante limitadas", o JPMorgan se viu obrigado a voltar atrás da decisão, diante da nova legislação do Texas. Somente em 2020, o estado vendeu mais de US$ 58 bilhões em títulos, sendo atualmente o segundo maior mercado de títulos dos Estados Unidos, atrás apenas da Califórnia.

Entre 2015 e 2020, o banco subscreveu 138 acordos de títulos texanos, o que gerou quase US$ 80 milhões em taxas para o JPMorgan, segundo a Bloomberg. Permanecer impedido de fazer negócios com o Texas implica, portanto, um impacto financeiro que a instituição não parece disposta a encarar. Em 13 de maio, o banco enviou uma carta ao procurador-geral do Texas, declarando que a política do banco não discrimina ou impede de fazer negócios com entidades ou associações de armas de fogo e acrescentando que “essas relações comerciais são importantes e valiosas”.

A rede americana de notícias CBS afirma que teve acesso a mais de 80 cartas semelhantes enviadas ao procurador-geral do Texas. E, de acordo com o jornal New York Times, o próprio Citigroup já havia apresentado uma carta nos mesmos termos em outubro do ano passado.

Pressão incompatível com a democracia 

Escrevendo sobre o assunto para o The Guardian, Robert Reich, ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton, critica a posição do Texas, mas admite que uma das importantes lições do episódio é: “não dê atenção às afirmações de grandes bancos ou quaisquer outras grandes corporações sobre suas ‘responsabilidades sociais’ para com suas comunidades. Quando a responsabilidade social corporativa exige o sacrifício de lucros, ela desaparece magicamente – mesmo quando envolve o financiamento de fabricantes de armas”.

O Texas foi pioneiro na proibição de negócios do estado com empresas anti-armas, mas pelo menos outros oito - Arizona, Kansas, Kentucky, Missouri, Ohio, Oklahoma, Dakota do Sul e Virgínia Ocidental - estão considerando legislações semelhantes, segundo a National Shooting Sports Foundation, associação comercial da indústria de armas de fogo, que tem prestado consultoria a legisladores sobre o tema.

Entre os críticos desse tipo de legislação, os argumentos vão desde um possível conflito com o precedente da Suprema Corte em relação ao discurso corporativo (com base na decisão histórica de 2009, que proibiu o governo de restringir as contribuições corporativas a campanhas políticas, eles alegam que essas medidas infringiriam os direitos das empresas ao discurso político) até um suposto apoio paradoxal de conservadores em um intervencionismo do governo no livre mercado.

“A noção de que o que esses bancos estão fazendo é meramente o livre mercado em ação é uma distorção da verdade. Essas restrições são uma tentativa de usar o poder dos bancos para contornar o processo legal e político normal. Para o Congresso ficar parado e deixar os banqueiros neutralizarem a Segunda Emenda [que protege o direito da população e dos policiais à legítima defesa, por meio de porte e posse de armas] seria um abandono do dever, não uma defesa do livre mercado”, opina o colunista Jonathan Tobin, na revista conservadora norte-americana National Review.

Ele alerta que, quando empréstimos ou investimentos “socialmente responsáveis” passam a ditar que as empresas parem de vender algum produto ou reduzam as vendas a certos compradores, é sinal de que os bancos estão assumindo um poder que não lhes foi dado por meio do voto. Ou seja, as restrições aos direitos de empresas e consumidores são incompatíveis com a democracia.

“Aqueles que querem banir as armas devem defender a causa honestamente, buscando revogar a Segunda Emenda, em vez de alavancar seu controle por alguns bancos importantes. O mercado livre funciona quando os consumidores, não banqueiros ou empresas de cartão de crédito, decidem o que compram. Os republicanos devem deixar claro ao setor financeiro que protegerão esse direito”, reforça Tobin.

O risco desse tipo de ativismo, completa Vivek Ramaswamy, empresário e autor conservador, é “um pequeno grupo de elites corporativas eficazes” começar a “decidir o que é certo para a sociedade em geral”.

Nesse contexto, têm surgido grupos conservadores, como o Free Enterprise Project, um “programa de educação e ativismo de acionistas”, que diz estar tentando salvar a América corporativa da militância progressista. Segundo o jornal inglês Financial Times, em apenas dois meses deste ano, um desses grupos conservadores persuadiu um tribunal da Califórnia a derrubar duas leis estaduais impondo cotas de diversidade nos conselhos das empresas.

Mais riscos que benefícios 

O posicionamento corporativo em questões politicamente divisivas é “uma proposta mais arriscada do que muitas pessoas imaginam”, garante Vanessa Burbano, professora da Columbia Business School, que conduziu um estudo sobre a temática.

Ela analisou as reações dos funcionários em empresas que, em 2017, tomaram posição sobre quais banheiros as pessoas transgênero poderiam usar. As descobertas apontam que, além de desmotivar funcionários que discordavam deles, CEOs que se posicionaram sobre o assunto também não motivaram significativamente os funcionários que concordavam com eles. “Minha pesquisa sugere que a reação é maior do que o benefício”, ressalta.

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