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Criança não namora
Criança não namora| Foto: BigStock

Raras são as ocasiões nas quais internautas de diferentes espectros ideológicos se dão as mãos no campo de batalha das redes sociais. Questões que envolvem a proteção à infância estão entre as que, por vezes, conseguem se esquivar do cabo de guerra da polarização.

A última segunda-feira (27), quando um rapaz maior de idade assumiu publicamente o namoro com uma menina de 13 anos, com a qual dividia um canal com mais de 1,3 milhão de seguidores no Tik Tok, foi um desses episódios que deixou a internet em polvorosa e que, entre críticas justas e os excessos de praxe, serviu para levantar discussões relevantes para pais, professores e influenciadores que lidam com o universo infanto-juvenil.

A conta que reunia as postagens da dupla foi derrubada pela plataforma após a repercussão negativa do caso. No final do dia, os dois voltaram atrás e, horas após a divulgação do vídeo - uma cena na qual o casal trocava um “selinho”, com as mães aplaudindo ao fundo -, afirmaram que tudo não passou de uma brincadeira.

Quer a explicação seja verdadeira ou não, o caso do casal tiktoker serve de exemplo para que se reflita acerca da idade a partir da qual uma criança ou adolescente está apto para se envolver em uma relação amorosa. Oficialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) marcam o início da adolescência precisamente aos 12 anos. Entretanto, para as especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, há mais fatores a serem levados em conta.

“É claro que essas marcas - 12 anos para o começo da adolescência e 18 para a fase adulta - não são estanques, não acontecem de um dia para o outro. Há uma transição que envolve o desenvolvimento físico e psíquico”, explica Cátula Pelisoli, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Até os 14 anos, a maioria dos adolescentes ainda está transitando entre as vivências da infância, o corpo está apresentando os primeiros sinais de puberdade e uma possível gestação nessa fase têm riscos altíssimos”.

Há, ainda, o aspecto psicológico. “Um bebê de seis meses é incapaz de caminhar não apenas porque não possui a força física necessária para isso, mas porque não alcançou a maturidade cognitiva que lhe faz ter interesse nos objetos e, portanto, o desejo de alcançá-los. Faço esta comparação para explicar que o desenvolvimento físico não é o suficiente para sustentar determinadas atitudes”, explica Adriana Melchiades neuropsicóloga e pós-doutoranda em Ciências do Comportamento.

Segundo a especialista, foi o biólogo e psicólogo Jean Piaget quem propôs que a habilidade de desenvolver raciocínio abstrato começa a ser desenvolvida pela criança a partir dos 12 anos. “O raciocínio abstrato é justamente o que permite que o adolescente entenda a diferença de uma amizade e um compromisso amoroso, desenvolva flexibilidade e, ao mesmo tempo, individualidade”, descreve a psicóloga.

A capacidade de refletir de forma “teórica”, por assim dizer, é também a base da formação moral e crítica, essencial para que o adolescente possa assumir um relacionamento sério. Melchiades lembra que o raciocínio abstrato ajuda no desenvolvimento da empatia e da criação de limites. “Aos 12 anos a criança está dando os primeiros passos nessa formação. O ideal é que os relacionamentos amorosos - mesmo que com o consentimento dos pais - comecem um pouquinho mais para frente”, explica.

Além disso, o namoro precoce tende a comprometer uma série de atividades com as quais o adolescente deveria estar engajado. “Nos primeiros anos da adolescência, é esperado um afastamento natural da família e um estreitamento das amizades. É nessa fase que as meninas criam estes laços, por exemplo. Se há um relacionamento amoroso, a tendência é que este ganhe espaço, e a administração destes interesses é algo que a criança e o adolescente ainda não sabem fazer”, avalia Pelisoli.

“Outras atividades e investimentos ficam prejudicados e a principal ‘vítima’ é a educação. Vejo isso na prática quando trabalho com adultos que viveram o que se entende por ‘casamento infantil’, antes dos 18 anos. É quase onipresente o abandono da escola e o desenvolvimento de uma dependência financeira do parceiro, repercussões que podem perdurar pelo resto da vida’, explica a especialista.

Exposição nas redes

O caso dos tiktokers também traz à luz a discussão sobre a exposição de crianças e adolescentes ao ambiente hostil das redes sociais. “Um dos grandes desafios do crescimento é o processo de diferenciação: aprender quem sou eu e quem é o outro. Ao apresentar a noção de que o próximo pensa, sente e pode chegar a conclusões diferentes, a adolescência se coloca como um desafio gigantesco nesse sentido. Não à toa, jovens nessa fase costumam andar em bando”, explica Melchiades.

E, para que noções de indivíduo e coletivo, valores morais e visões de mundo sejam adequadamente apreendidos, é necessário ter parâmetro - algo que não existe no universo virtual, onde comportamentos são mensurados e avaliados à base de curtidas. “Até que ponto uma criança de 11 ou 12 anos consegue se diferenciar das outras, principalmente quando quem me curte, curte tantos outros?”, questiona a especialista.

Daí a importância da vigilância dos pais na construção desta relação do adolescente com o universo virtual e sua própria intimidade. “Permitir que o país inteiro opine sobre a vida de uma família - cujas nuances e particularidades só os membros conhecem - é a melhor forma de proteger os envolvidos?”, pergunta Melchiades.

Paternidade consciente

Criança não namora - este é um ponto passivo entre pedagogos, psicólogos e pais conscientes. Mas é fato também que, dada a multiplicidade de exemplos e a “liberdade” oferecida pelas redes, não é incomum que, entre adolescentes recém-saídos da infância, apareça o assunto “namoradinhos”. E aí, como ficam os pais?

“A primeira coisa que deve ser entendida é que jovens precisam de modelos amadurecidos. Muitas vezes, pais que não estabelecem seu espaço de parentalidade se enfiam nas vidas dos filhos como se fossem amiguinhos da terceira série, querendo mostrar que são gente boa”, alerta Adriana Melchíades.

Embora difícil de ser aplicada, a receita para o equilíbrio é amplamente conhecida: a tríade transparência, autoridade e afeto. “Todo mundo sabe que proibir sem justificativa não adianta nada, mas os pais têm o direito de se opor a relacionamentos inadequados. O meio termo é criar uma rede de proteção e confiança, onde os adolescentes tenham limites e liberdade para expor o que estão vivendo”, explica.

A psicóloga alerta também para o cuidado que se deve ter com os termos que designam um relacionamento. “Quando uma criança novinha tem um namoradinho, é importante que os pais expliquem que se trata de um amigo. Quando se perde o valor do conceito, o namorado vira alguém com quem você troca alguns carinhos sem compromisso até quem mora junto e não se casou. O que é um ‘namorinho’, afinal? São palavras que geram expectativas diferentes e é essencial que o adolescente e os responsáveis saibam o que é esperado da relação”.

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