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Ciro Gomes processou Fernando Holiday por injúria racial, alegando que foi chamado de coronelista. Procede?
Ciro Gomes processou Fernando Holiday por injúria racial, alegando que foi chamado de coronelista. Procede?| Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A novidade de Ciro Gomes é processar Fernando Holiday por injúria racial, alegando que foi chamado de coronelista. Supostamente, o malvado Holiday fez isso só por ser ele nordestino, coitado. Precisa ser compensado com R$ 50.000,00.

As leis relativas a racismo no Brasil têm uma maleabilidade razoável. Afinal, a demarcação do que é raça, no Brasil, nunca teve aqueles contornos fixos e inamovíveis de países que praticaram racismo de Estado, como os Estados Unidos.

Nossa lei antirracista se traduz mais como uma lei que impede os indivíduos de serem maltratados em função de algo relativo ao seu nascimento, completamente alheio à sua vontade, como a cor da pele e a origem regional.

Assim como não temos nenhuma dificuldade em admitir que existe uma depreciação de negros, não é nada ousado dizer que nas regiões mais ricas do país os migrantes das regiões pobres são depreciados. Não é bonito ser arataca, paraíba, cabeça-chata, nem fazer baianada. Essa depreciação coletiva pode dar origem a discriminações injustas e a injúrias.

Às vezes, essas injúrias assumem um tom paternalista. Veja-se o caso de Fernando Holiday. Um branco está autorizado a ter as suas opiniões políticas: pode ser tão liberal quanto quiser; pode até atacar o movimento negro e ser contra as cotas raciais.

Mas, por Holiday ter mais melanina do que o autorizado, por ter o cabelo pixaim, por ter o nariz largo, um certo coronel branco, cuja família manda no sertão desde os tempos da escravidão, se sente à vontade para chamá-lo de capitão do mato. Se Fernando Holiday fosse um branco com o nariz dinamarquês de Caco Antibes e madeixas sedosas, podia falar o que quisesse sem sair do seu lugar de fala.

Como ainda é um lei formulada dentro do liberalismo político, ela não especifica a cor de quem é vítima, nem a origem regional de quem é a vítima.

Se uma dessas adoráveis criaturas do movimento negro resolver que uma dada pessoa branca tem que ser maltratada em função da cor de sua pele, ou que sua opinião deve ser ridicularizada em função de suas origens biológicas, também poderá ser acusada de racismo.

E se um certo coronel resolver que todos os seus críticos sulistas são nazistas, pelo mero fato de serem sulistas, também poderá ser acusado de racismo. Afinal, sulistas são indivíduos e merecem ser julgados individualmente, em vez de serem considerados nazistas em função do seu local de nascimento.

O abuso da lei

Acho que podemos estabelecer isso: existe um preconceito contra sulistas, tidos como nazistas por causa das colônias alemãs. Esse preconceito remonta à Era Vargas, e não tenho a menor ideia do quão difundido é.

O próprio cenário da Era Vargas já é útil para mostrar como as coisas nunca são tão simples quanto pretendem militantes, pois as colônias alemãs do Sul eram, sim, um foco de apoio ao nazismo na II Guerra, e Vargas foi, sim, um tirano que perseguiu indiscriminadamente todo e qualquer falante de alemão, mesmo que fosse judeu.

Diante dessa complexidade, imaginemos agora que aquele senhor flagrado com suástica na piscina em Santa Catarina, ao ser chamado de nazista, processasse todo mundo, alegando que estava sendo chamado de nazista pelo mero fato de ser sulista. Aí, obviamente, seria um abuso, e só um juiz parcial daria ganho de causa.

Afinal, ainda que ele porventura não seja nazista e apenas ache a suástica nazista uma coisa bonita para decorar a piscina, existe uma razão muito óbvia para alguém proferir esse xingamento, e essa razão não é o seu local de nascimento.

Agora vamos ao líder vice-preferido da esquerda, Ciro Gomes. Um dos significados de coronel, segundo o meu Aurélio de 1995, é “chefe político, em geral proprietário de terra, do interior do país.” Isso se aplica a Ciro Gomes? Sim, ele é um chefe político de Sobral, no sertão do Ceará.

Vejamos o meu Houaiss de 2001: “indivíduo, geralmente proprietário rural, ocasionalmente um comerciante, burocrata ou profissional liberal do interior do país, que controla o poder econômico, político e social da região”; e manda conferir o verbete “coronelismo”, ausente no meu Aurélio. Ei-lo: “prática de cunho político-social, própria do meio rural e das pequenas cidades do interior, que floresceu durante a Primeira República (1889-1930) e que configura uma forma de mandonismo em que uma elite, encarnada emblematicamente pelo proprietário rural, controla os meios de produção, detendo o poder econômico, social e político local.”

Por fim, “coronelista” é definido como quem pratica ou defende o coronelismo. Se Ciro Gomes digitar “clã Ferreira Gomes” no Google, encontrará até artigo acadêmico em dossiê sobre oligarquias nordestinas. Vai processar pesquisador também, ou isso é coisa de direita obscurantista?

É factível que alguém fique desconfortável com o sucesso de um nordestino em posição de poder e o xingue de coronel? É. Mas se existe algum político famoso no Brasil que merece esse nome, é Ciro Gomes. No Houaiss tem até uma acepção pejorativa do termo, que significa “indivíduo poderoso e influente politicamente entre os integrantes de grupo, organização, partido etc.”, e cita coronelismo acadêmico como exemplo.

A escolha da conotação pejorativa foi toda por conta de Ciro Gomes. Se eu fosse ele, em vez de tentar negar que sou coronel, tentaria mostrar o que fiz de bom. Sua pupila, Tábata Amaral, defende que a permanência política de um mesmo grupo no poder em Sobral causou a melhoria a educação de lá.

De minha parte, creio que o melhor argumento pró coronelismo é passear pelo centro histórico de Salvador e depois tentar (tentar!) visitar o centro histórico de São Paulo, ou percorrer todos por locais musicados por Tom Zé. Junto dos cracudos plantados pela esquerda, e da farra dos professores-sindicalistas que não educam, o coronelismo de Sobral é uma beleza!

Por que até coronel acha coronel uma má coisa?

É compreensível que um político se sinta mal ao ser chamado de coronel, e só pense na acepção pejorativa. Afinal, coronéis têm fama de grossos e autoritários. Ouvimos “coronel”, e logo pensamos no autoritário intragável que manda prender jornalista assim, na cara dura, porque fez uma pergunta desagradável a sua majestade.

Talvez pensemos que um coronel tenha tanta dificuldade até em saber o que é democracia, que não saiba distinguir o regime político do Brasil e dos Estados Unidos do regime político em vigência na Venezuela. Que xingue até oposição democrática de lá, alvo de prisões políticas e tortura, chamando-a de nazistas, fascistas e vendilhões da pátria.

Talvez alguém mais criativo, sob os efeitos de ácido lisérgico, imaginasse um coronel numa retroescavadeira atropelando manifestantes, mas aí seria demais. Alguém com imaginação mais modesta imaginaria um coronel metendo processo maluco em opositor político. Isso é coisa de coronel, também.

Pois muito bem, coronel é coisa ruim mesmo, então faz sentido se sentir ofendido e meter processo maluco pra ver se cola.

Ou não. Talvez isso tudo seja coronelfobia internalizada.

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