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Detalhe da capa do livro “Pequeno Manual Antirracista”, da ativista Djamila Ribeiro
Detalhe da capa do livro “Pequeno Manual Antirracista”, da ativista Djamila Ribeiro| Foto: Divulgação

Ler o "Pequeno Manual Antirracista" de Djamila Ribeiro deveria ser aflitivo para quem tenha os conhecimentos de um bom aluno do ensino médio. É, de fato, lastimável que alguém com esse nível de cultura ganhe status de intelectual, e que os eruditos em geral se deixem intimidar pelo pedigree de mulher negra. Para facilitar a crítica e a compreensão geral de racialistas, fiz o "Manual de história burra" aqui neste jornal.

O manual de Djamila não deveria se chamar “manual”, mas sim ordens. Pois, excetuada a Introdução, as seções do livro são somente ordens: “Informe-se sobre o racismo”, “Enxergue a negritude”, “Reconheça os privilégios da branquitude”, “Perceba o racismo internalizado em você”, “Apoie políticas educacionais afirmativas”, “Transforme seu ambiente de trabalho”, “Leia autores negros”, “Questione a cultura que você consome”, “Conheça seus desejos e afetos”, “Combata a violência racial” e “Sejamos todos antirracistas”.

Bobagens da Introdução

A Introdução é a parte do livro onde ela tenta com mais precisão falar de História do Brasil. Já no primeiro parágrafo, entrega o desconhecimento: “Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de onde essas pessoas foram tiradas à força. […] Também me contaram que a princesa Isabel havia sido sua grande redentora. […] O que não me contaram é que o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, em Alagoas, perdurou por mais de um século, e que se organizaram vários levantes como forma de resistência à escravidão, como a Revolta dos Malês e a Revolta da Chibata.”

Assim será no livro todo: as experiências pessoais dela são fonte de autoridade -- nunca é explicado quem é essa terceira pessoa do plural que fez essas maldades --, e há uma incapacidade de enxergar complexidade nos fenômenos históricos, preferindo antes rotulá-los como brancos ou negros.

Todos os eventos citados fazem parte do currículo escolar. A Abolição de fato costuma receber uma descrição muito pobre. Não é verdade que a Princesa Isabel fez tudo sozinha. André Rebouças (que ela nem deve saber quem é) foi personagem chave nos bastidores. Por outro lado, tornar Zumbi e os malês o campeões da luta contra a escravidão é uma falsificação histórica, uma vez que eles não eram abolicionistas.

A Revolta da Chibata, ocorrida após a escravidão, não pode ser rotulada como luta racial, uma vez que era uma pauta de militares (de todas as cores) contra castigos corporais. O Marechal Rondon, que não é branco nem negro, aplicava o “processo do Conde de Lippe” (como chamava as chibatadas) nos subordinados, e chegou até mesmo a causar a morte de um, quando o bambu perfurou o pulmão. Isso consta na sua nova biografia, por Larry Rohter. A tradição de surrar com vara fora introduzida por um militar prussiano (o Conde de Lippe) em Portugal, cujo exército fora encarregado de treinar. A prática afligiu lombos lusitanos antes atravessar o Atlântico e enfrentar, no Rio de Janeiro, o motim liderado pelo valente marinheiro João Cândido, brasileiro negro do Rio Grande do Sul.

Em seguida, trata das questões agrária e educacional como se fossem calcadas na raça. A Constituição de 1824 de fato assegurava o direito ao ensino primário para todos os cidadãos (brancos ou não). Esse direito era letra morta. Em 1890, 82,6% dos brasileiros eram analfabetos. A massificação da escola pública ocorreria somente no regime militar. Por muito tempo, a alfabetização dos brasileiros foi feita em casa, em ensino privado.

Não havia nenhum recorte racial nisso: Machado de Assis, mulato nascido em 1839, aprendeu a ler e escrever. Cruz e Souza, preto,  filho biológico de escravos, nasceu em 1861. Thales de Azevedo, formado em medicina em 1927, teve um professor negro na Faculdade de Medicina da Bahia, criada em 1808. Alfabetização era para poucos. E o Brasil, bem ou mal, tinha uma mobilidade social que permitia coexistência descendentes de africanos no Baile da Ilha Fiscal e na senzala. É difícil crer que 82,6% da população fossem negros e analfabetos, e 17,4% fossem brancos e alfabetizados.

A Constituição de 1824 reza que todo cidadão tem direito à educação, mas, como era comum na época, a participação política exigia requisitos censitários. Djamila joga tudo num balaio só: “É importante lembrar que, apesar de a Constituição do Império de 1824 determinar que a educação era um direito de todos os cidadãos, a escola estava vetada para pessoas negras escravizadas. A cidadania se estendia a portugueses e aos nascidos em solo brasileiro, inclusive a negros libertos. Mas esses direitos estavam condicionados a posses e rendimentos, justamente para dificultar aos libertos o acesso à educação.” Ela não entendeu o que é um direito político.

Em seguida, afirma que a Lei de Terras de 1850 foi feita para dar terras aos brancos, como se a vida de todo imigrante fosse fácil. O fato de a terra supostamente se transformar em mercadoria também é considerado algo horrível no livro.

Caso houvesse alguma curiosidade sobre o grande ciclo migratório, poderia aprender sobre a complexidade desse fenômeno. Em Italianos e Gaúchos, Thales de Azevedo aponta a diversidade dos estados brasileiros. Ainda no período imperial, havia no governo gaúcho quem quisesse dar terras apenas a raças superiores, e não a brasileiros de qualquer cor. O projeto não foi adiante.

A Prússia, recebendo muitas notícias de maus tratos dos seus súditos por aqui, proibiu a emigração para todo o Império do Brasil, mas depois restringiu-a a São Paulo -- onde os patrões acabavam de perder os seus escravos e não sabiam direito o que era um trabalhador livre.

A falta de alemães terminou por implicar, em São Paulo, maior migração de italianos. Por que estes se submetiam ao trabalho em condições precárias sob patrões terríveis? Porque passavam fome na Itália, padeciam de pelagra, e, por mais que poupassem, não era possível comprar terras, porque lá a terra não era mercadoria e vigia um sistema de origem feudal. Falar só mal do Brasil e da “branquitude” implica esquecer o sonho que o nosso país representou na Itália para os republicanos, como Garibaldi.

Por fim, a introdução dá a esdrúxula condição em que o leitor se achará: ele é racista, é impossível não ser racista (porque o racismo é “estrutural”), mas ele deve ser um antirracista.

Sem fazer piada, pode-se dizer que é o livro dos racistas antirracistas. “Mesmo que uma pessoa pudesse se afirmar como não racista (o que é difícil, ou mesmo impossível, já que se trata de uma estrutura social enraizada), isso não seria suficiente”, diz ela, para concluir dois parágrafos depois que “o antirracismo é uma luta de todas e todos”.

Seções “Informe-se” e “Enxergue”

Na primeira seção, o livro repete a tese de Florestan Fernandes sem afirmar que é dele, a saber: que Gilberto Freyre é satanás porque prega que vivemos numa democracia racial, pois na verdade o Brasil é no mínimo tão ruim quanto os EUA, porque tem um racismo velado.

Freyre nunca sequer usou a expressão “democracia racial” em sua vasta obra; e, se eu fosse escolher algum povo difamado por ele, ficaria com os indígenas. Freyre foca nos índios picando o pênis com peçonha para ficarem inchados, atribuindo a isso uma falta de vigor sexual. Ao menos o livro reconhece que Freyre fez muito bem em defender que a miscigenação não produzia degenerados.

Aprendemos ainda que sambista não é sujeito, é objeto: “Meu irmão mais velho tocou trompete por muitos anos, fazendo inclusive parte da Sinfônica de Cubatão, na Baixada Santista. Toda vez que dizia ser músico, perguntavam se ele tocava pandeiro ou outro instrumento relacionado ao samba. Não teria problema se ele tocasse, a questão é pensar que homens negros só podem ocupar esse lugar. Simone de Beauvoir afirmava que não há crime maior do que destituir um ser humano de sua própria humanidade, reduzindo-o à condição de objeto.” Ainda que fosse verdade que todo músico negro fosse sambista, isso não significaria que os negros foram transformados em objetos, porque sambista não é objeto. Pelo contrário: o samba é uma das grandes realizações musicais da humanidade. Se um sambista de traços orientais passasse sempre por músico de k-pop, aí sim, eu entenderia a choradeira.

O universo estético do samba não é indissociável dos negros, que começaram esse estilo musical com suas umbigadas no Recôncavo baiano? É. Mas, para Djamila, a estética brasileira é branca e os negros são excluídos. A coisa só teria melhorado na década de 40 do presente século, quando Abdias do Nascimento criou o Teatro Experimental Negro. Nada de samba, que samba é coisa de pobre. Abdias é um intelectual. Intelectual é chique, por isso conta.

Seções “Reconheça” e “Perceba”

Em “Reconheça os privilégios da branquitude”, Djamila usa aquelas estatísticas que retratam a Amazônia como uma região predominantemente negra para dizer que a maioria da população brasileira não está representada nos currículos dos cursos que… bem, no mais das vezes tratam de coisas mundiais, de modo que os chineses é que teriam de reclamar da sua pouca presença em bibliografias. Os cursos de química que se virem na cota por nacionalidade para encaixar Marie Curie, nascida num país que não chega a 1% da população mundial.

No mais, aprendemos que “a branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos.” Que isso quer dizer? Nada de inteligível. Ou faz sentido dizer que “o conceito […] discute”? Não faz. São só palavras que intelectuais costumam usar, então basta jogar tudo num livro, fazer de conta que faz sentido, e chamar de racista quem disser que não faz.

De todo modo, o que a branquitude deve fazer é se tornar antirracista, mesmo que seja inevitavelmente racista, e vire racista antirracista, porque a culpa do racismo é dos brancos: “o racismo foi inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar por ele. Para além de se entender como privilegiado, o branco deve ter atitudes antirracistas. Não se trata de se sentir culpado por ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação. Dessa forma, se o primeiro passo é desnaturalizar o olhar condicionado pelo racismo, o segundo é criar espaços, sobretudo em lugares que pessoas negras não costumam acessar.” Muita gente faz as coisas movida por culpa. Então, trocando em miúdos, é para os brancos se sentirem culpados e ficarem concedendo ou exigindo cotas para tudo, para se redimirem da culpa coletiva.

Na seção seguinte, aprendemos que falar "negão" é racismo, porque ninguém fala brancão. (Não existe um equivalente negro de branquelo, logo…?) Na Bahia, ao menos, “negão” é quase pronome de tratamento entre amigos, e independe de cor. Acho difícil ela convencer os negões daqui, da Bahia, que não pode falar negão.

Seções “Apoie” e “Transforme”

A primeira destas manda apoiar cota racial pra tudo, em concursos públicos e iniciativa privada. Esta frase merece ser desmentida: “Na época em que o debate sobre ações afirmativas estava acalorado, um dos principais argumentos contrários à implementação de cotas raciais nas universidades era ‘as pessoas negras vão roubar a minha vaga’.”

Desconheço as companhias de Djamila e o seu material de leitura, mas quem não sofrer de amnésia há de se lembrar que a maior questão na imprensa era a classificação racial de indivíduos num país mestiço, e se não era imoral inventar um tribunal racial.

Quem estiver interessado nas argumentações contrárias às cotas, procure "Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo", organizado por cientistas sociais de universidades federais brasileiras. É um excelente registro das leis que vingaram e das que não vingaram (como uma ficha racial a acompanhar crianças desde a escola).

Ela informa também haver uma violência estrutural na academia brasileira. De minha parte, a única experiência violenta de que tive ciência em minha universidade foi quando militantes do PCO se organizaram para surrar olavetes que iam exibir um filme.

Na seção seguinte, intitulada “Transforme o seu ambiente de trabalho”, aprendemos que “a branquitude” conspirou ao longo da História para parecer que não é racista: “Historicamente, a branquitude desenvolveu métodos de manutenção do que seria politicamente correto em relação à pauta racial e à reserva de espaço para o ‘negro único’, o que é certamente uma de suas estratégias mais clássicas. Argumenta-se da seguinte forma: ‘Veja só, não somos racistas, temos o Fulano, que é negro, trabalhando em tal departamento e, inclusive, ele adora trabalhar aqui, não é mesmo, Fulano?’. E o Fulano, talvez para manter seu emprego, talvez por que aprendeu a reproduzir o discurso da empresa, concorda.”

Será que a branquitude faz reuniões anuais em salinhas da casa grande para discutir como oprimir os negros? Em seguida, há uma frase de raro bom-senso que é oportuno citar para lembrar depois: “pessoas negras não são todas iguais, e Fulano, por melhor que seja, não pode representar todos os negros.”

A maneira de transformar o local de trabalho é baixar o nível para receber negros, pois a medida antirracista é presumir que os negros sejam de baixo nível. Exigir inglês e diploma universitário é racismo. Se você estiver preocupado com a perspectiva de encher a sua empresa de, sei lá, programação de softwares para multinacionais, com peões batedores de lage, fique tranquilo: estudos apontam que “uma equipe diversificada aumenta seu potencial produtivo”. Por que uma empresa pediria inglês, afinal? Por causa do “pacto narcísico da branquitude -- expressão desenvolvida por Cida Bento em sua tese de doutorado, usada para definir como pessoas brancas anuem entre si para a manutenção de privilégios”. É dou-to-ra, viu? Eu também, então carteirada comigo não cola.

É preciso também coibir a violência racial no local de trabalho. O exemplo de violência racial dado por ela é o de um funcionário que ganhou o concurso de fantasia da empresa vestido de negão do WhatsApp. Não consta que a parte comprida da fantasia tenha atingido ninguém. O funcionário e aqueles que ousaram defendê-lo foram demitidos após linchamento moral promovido por pessoas como Djamila.

Por fim, é preciso deixar registrado que emprego não-acadêmico é subemprego: “A situação é ainda mais grave para mulheres negras, que são muitas vezes destinadas ao subemprego: quantas físicas, biólogas, juízas, sociólogas etc. estamos perdendo?” Por isso mesmo, é preciso contratar uma doutora dessas para ser censora paga e ficar enchendo o saco da empresa, prestando “consultoria de diversidade”.

Seções “Leia” e “Questione”

A primeira destas seções se chama “Leia autores negros”, e manda ler só autores negros que pensam igual a ela e só escrevem sobre coisa de raça, embora ela tenha dito logo acima que os negros não são todos iguais. É importante ler negros porque um português branco doutor disse que é epistemicídio os negros não terem a sua própria ciência -- e você aí achando que era antirracista por crer que a Ciência é um patrimônio universal da humanidade.

De acordo com o livro, esse epistemicídio apagou a produção intelectual de negros. Quem apaga a produção de um Theodoro Sampaio (que o livro não menciona) é o movimento negro. Alguém como ele é inimaginável dentro desse esquema simplório: ele conquistou todo respeito no Império mesmo sendo filho de uma escrava com um padre, comprou a liberdade dos irmãos, e seus interesses abrangiam desde a geologia até a gramática tupi. A sacada de que os paulistas falavam tupi foi dele, que percebeu que os topônimos dos locais conquistados pelos bandeirantes não eram de línguas faladas pelos índios dos locais. Mas, no que depender do livro, o idioma tupi nem existe, porque no Brasil só tem preto e branco.

Eu poderia reclamar de que a lista racial de autores que ela manda ler não incluir o gigante Thomas Sowell, mas o que esperar de uma lista brasileira que ignora Machado de Assis?

No mais, o livro aqui repete que tem que ter cota no currículo porque negros são maioria da população brasileira segundo a estatística que faz a Amazônia ser predominantemente negra (não é).

A última seção é “Questione a cultura”. É nesta que ela atribui a Gilberto Braga a invenção da escrava Isaura branca, como mencionei no outro texto. Trata também de apropriação cultural. Djamila se empenha em negar que militantes tenham maltratado uma branca que usava um turbante para cobrir a careca da quimioterapia, e autoriza o uso de turbante, com restrições. O que importa é que se tenha consideração pela cultura que produziu aquilo, de modo que os militantes negros deveriam estar proibidos de comer beiju de tapioca (dos índios) com manteiga (dos europeus) até pararem de usar caboclos pra inflar dados na Amazônia. Consta que um Polzonoff chora toda vez que um strogonoff é comido sem respeito pela cultura eslava.

Seções “Conheça” e “Combata”

Na seção que manda conhecer os afetos, o livro lamenta porque as mulheres negras supostamente não arranjam marido. Culpa do racismo estrutural. Falar “nega” é racismo também. De novo fala de Freyre, que é malvado por sexualizar as negras.

Na seção que manda combater a violência racial, as estatísticas que enchem a Amazônia de negões (e negas) são usadas pra dizer que no Brasil só morre preto. Isso me lembra a lapidar frase do Atlas da Violência de 2016, que, comentando as mortes em Alagoas, sai-se com esta: “justo na terra de Zumbi dos Palmares, para cada não negro assassinado, outros 10,6 negros eram mortos, em 2014.” Me admira que ninguém tenha proposto uma quota de assassinatos de brancos para resolver esse problema terrível. O mapa da violência seguinte, depois de Temer despetizar a coisa, passou a falar de facção de narcotráfico como causa (óbvia ululante) de violência. Como Djamila Ribeiro é a ex-secretária de direitos humanos do ex-prefeito Haddad, é vão procurar o narcotráfico como causa de violência. A culpa das mortes todas é do Estado, que é racista, e faz uma coisa terrível com os negros: prende! Então a violência se explica por racismo, e as prisões também.

É isso. Depois do livro, vem uma listinha promocional de autores da cor certa para ler. Assim a Companhia das Letras consegue fazer o macérrimo (ao dicionário) texto de Djamila render um livro de mais de cem páginas. Isso, e o formato diminuto do livro.

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