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Para o psicólogo Jordan Peterson, Frozen é menos uma obra de arte e mais uma peça de propaganda ideológica.
Para o psicólogo Jordan Peterson, Frozen é menos uma obra de arte e mais uma peça de propaganda ideológica.| Foto: Divulgação

Aconteceu de novo. No fim de semana, viralizou um vídeo da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves (mais um!), afirmando categoricamente que Elsa, a princesa do sucesso Frozen, é lésbica. O vídeo é de uma pregação realizada durante um evento para lideranças cristãs em 2018, em Divinópolis, Minas Gerais. E aí começam os problemas, porque em 2018 Damares Alves era tão-somente uma pregadora, não uma ministra de Estado.

O vídeo foi originalmente compartilhado por ninguém menos do que o líder do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados, Paulo Pimenta. O mesmo e excelentíssimo deputado que chamou a Polícia Federal de “a Gestapo do Moro”, que considera a ditadura Maduro na Venezuela legítima e que insiste em chamar o impeachment de Dilma Rousseff de golpe.

Quem também embarcou na onda antidamarista foi a ex-apresentadora Xuxa Meneghel. Xuxa, cujo extinto programa infantil ainda hoje serve de matéria-prima para um sem-número de análises semióticas da sexualização precoce da infância brasileira, chamou Damares Alves de ignorante para baixo. “Onde está o respeito pelo ser humano?”, pergunta Xuxa, num arroubo de xuxismo e ignorando o fato de Elsa ser uma personagem de ficção.

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A intenção por trás da divulgação do vídeo é clara: desmoralizar ainda mais a ministra e retratá-la primeiro como inimiga da comunidade LGBT e depois como uma pessoa dada a paranoias, daquelas que confundem ficção e realidade e veem doutrinação em tudo – até mesmo numa animação ingênua e fofa (apesar da música insuportável) como Frozen.

A análise que Damares Alves faz de Frozen pode ser apressada, pouco embasada e extremamente mal articulada. Mas a ministra não está sozinha em sua visão da Disney como uma empresa criadora não de obras de arte fofas e ingênuas, e sim de propaganda ideológica. Aliás, uma das companhias mais notórias de Damares Alves nessa suposta cruzada anti-Disney é o escritor esquerdista Ariel Dorfman. Nos anos 1970, Dorfman, juntamente com Armand Mattelart, popularizou a análise semiótica política com o best-seller Como Ler o Pato Donald. Para Dorfman & Mattelart, Carl Banks, o principal roteirista dos desenhos do Pato Donald, era um verdadeiro artífice da doutrinação capitalista das crianças do mundo inteiro. Ninguém chamou Dorfman de paranoico por causa disso. Pelo contrário, meus professores costumavam se referir a ele como “gênio”.

Especificamente na crítica a Frozen e sua princesa supostamente homoafetiva, Damares Alves está na companhia do psicólogo canadense Jordan Peterson, que considera a animação não uma obra de arte como A Bela Adormecida e O Rei Leão, e sim uma peça de propaganda como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Muito mais articulado do que a ministra-pregadora, Peterson faz um estudo jungiano de Elsa como arquétipo (não confundir com estereótipo, por favor) e conclui que, na animação, há um desequilíbrio intencional criado para expressar uma ideologia unidimensional, não uma mitologia com múltiplas interpretações.

Jordan Peterson não diz que Elsa é lésbica. Mas sugere que há na animação uma intenção clara de empoderar a princesa à custa do príncipe. Peterson vai além e diz que Frozen é um filme no qual, por motivos ideológicos completamente alheios à narrativa (daí o desequilíbrio), as mulheres não precisam dos homens. Por isso ele seria o “anti-Bela Adormecida”.

O que Paulo Pimenta, Xuxa e todos os que correm às redes sociais para atacar a fala de uma Damares Alves indivíduo, não ministra, ignoram é que a própria comunidade LGBT, quando do lançamento do trailer de Frozen 2, celebrou a possibilidade de Elsa ser de fato “a primeira princesa lésbica da Disney”. A própria codiretora e roteirista do filme, Jennifer Lee, deixou no ar a possibilidade de Elsa ter mesmo uma namoradinha.

Ou seja, Damares Alves não está “ficando louca”, “vendo chifre em cabeça de cavalo” ou “proibindo as crianças de assistirem aos filmes da Disney”, como tive o desprazer de ler nas redes sociais hoje pela manhã. Ela está tão-somente interpretando uma animação, isto é, uma obra de arte (por mais que Jordan Peterson não a considere) de acordo com os filtros religiosos e intelectuais de que dispõe. Que mal há nisso?

Damares Alves, eu, você e qualquer pessoa (ainda) somos completamente livres para questionarmos a sexualidade dos personagens de ficção. O que, por sinal, não é novidade nenhuma. Em meio ao eterno debate sobre Capitu ter ou não traído Bentinho no clássico Dom Casmurro, por exemplo, Millôr Fernandes preferiu analisar o triângulo amoroso sob um prisma diferente, dando um veredito inquestionável (para ele): Bentinho e Escobar é que tinham um caso de amor.

Ecoo aqui, não com a mesma indignação virtuosa, claro, a pergunta de Xuxa Meneghel: onde está o respeito pelo ser humano e sua liberdade de expressar uma opinião feita com bases morais e religiosas diferentes das nossas? E ao questionamento autoritário da ex-namorada de Pelé (“como permitem certas coisas?”) respondo: ainda somos livres.

Ainda.

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