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Em sua luta exaustiva pela nunca alcançável justiça histórica, há quem tenha opinião até mesmo sobre suásticas inexistentes em pizzas também inexistentes.
Em sua luta exaustiva pela nunca alcançável justiça histórica, há quem tenha opinião até mesmo sobre suásticas inexistentes em pizzas também inexistentes.| Foto: Reprodução/ Twitter

Se o humor, sobretudo o stand-up comedy, é uma forma de psicanálise coletiva, e acredito que seja mesmo, Right Now, espetáculo de Aziz Ansari disponível na Netflix, é uma exposição contundente – e aqui e ali engraçada – das armadilhas do progressismo e também um diagnóstico de uma sociedade viciada em ter opinião sobre tudo.

Aziz começa o show falando do seu envolvimento no escândalo #MeToo, o que quase arruinou sua carreira. Por um ato falho, ele acaba quase por agradecer a moça que o acusou de assédio, dizendo que, se seu problema levou outros homens a repensarem o modo como tratavam as mulheres, então tinha sido um bom problema. Parece nobre da parte dele, eu entendo e concordo, não fosse pelo que o comediante diz em seguida.

Representante de uma minoria de 1,4 bilhão, Aziz, filho de indianos, zomba não exatamente do racismo, e sim do virtuosismo ideológico de uma maioria branca culpada. Para ele, todas as demonstrações recentes de respeito e afeto e tolerância em relação às minorias não passam de um joguinho no qual os brancos privilegiados marcam pontos sempre que se mostram virtuosos. Uma espécie de Candy Crush do progressismo – palavras dele, não minhas.

Adiante, Aziz mostra que muitos produtos culturais feitos há apenas dez anos contêm cenas repreensíveis pelo padrão de 2019. A gente ri, mas no fundo é triste. Piadas bobas, pensadas para serem piadas bobas, ganharam contornos de crimes sexuais repugnantes. Mas logo em seguida ele conclui, em mais um ato falho, que é assim mesmo e que muitas das coisas que fazemos hoje será inadmissível daqui a 50 anos.

Ou seja, para os progressistas e seu incansável exército de justiceiros sociais, não há nenhuma forma de reparação aceitável. Nem pedido de desculpas pelo que os antepassados fizeram, nem quotas nas universidades, nem programas de transferência de renda, nem o silêncio e expurgo dos que pensam diferente. Mesmo que a sociedade, daqui a 50 anos, encontrar um patamar de discurso uniforme e cuidadoso ao extremo, isso não será suficiente.

Essa é a parte mais engraçada do espetáculo, porque Aziz se utiliza de um recurso não exatamente novo ou ousado, mas muito eficiente: contar piadas racistas, homofóbicas, machistas e gordofóbicas apontando o racismo, homofobia, machismo e gordofobia daquelas palavras. As pessoas riem das piadas, não das críticas às piadas, mas neste ponto parece que comediante e platéia firmam um pacto hipócrita em nome do riso. Isto é, a plateia ri do que é politicamente incorreto (e realmente engraçado) e o comediante finge que acredita que eles estão fazendo um exame de consciência.

Em seu momento mais contundente, Right Now evoca a já mítica resiliência norte-americana e zomba do excesso de fiscalização por parte dos exércitos progressistas e conservadores. Uma pena que Aziz seja tão histriônico em seu discurso, porque o momento em que ele inventa um escândalo envolvendo uma pizza em forma de suástica e pede para que a plateia tome lado na discussão – que, vale lembrar, é sobre algo inventado! – é um primor de argumento contra a hiperpolitização do nosso tempo.

Depois, Aziz segue pelo caminho seguro das piadas politicamente incorretas menos controversas de todos os tempos, isto é, aquelas envolvendo pessoas com Alzheimer. Até porque é improvável que uma pessoa com Alzheimer vá se lembrar de ficar revoltado com esse tipo de piada.

Os cinco minutos finais do espetáculo, contudo, são melancolicamente belos e, quero crer, de uma sinceridade emocionante. Aziz, que quase teve a carreira jogada no lixo por causa da caça às bruxas do movimento #MeToo, confessa ter sido um ingrato ao longo de toda a vida e exalta a plateia a agradecer, agradecer de verdade, pelas pequenas bênçãos cotidianas que nos passam despercebidas, de tão privilegiados que hoje somos – a despeito do que dizem os eternos ressentidos.

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