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A diretora Petra Costa, indicada ao Oscar de melhor documentário pelo filme “Democracia em Vertigem”, na noite da premiação em Los Angeles, 9 de fevereiro de 2020
A diretora Petra Costa, indicada ao Oscar de melhor documentário pelo filme “Democracia em Vertigem”, na noite da premiação em Los Angeles, 9 de fevereiro de 2020| Foto: Reprodução / Instagram / Petra Costa

Não foi dessa vez. Apesar da intensa campanha de marketing e da torcida de milhões, Democracia em Vertigem, filme da cineasta Petra Costa que concorria na categoria Melhor Documentário, não conseguiu trazer a estatueta dourada para o Brasil. O prêmio da categoria foi para Indústria Americana.

E aqui seria muito fácil dar vazão à schadenfreude e tripudiar da derrota, ressaltando os muitos erros factuais do documentário e os problemas estéticos e éticos já explorados em tantos textos de tantas vozes. Além de fácil, porém, seria preguiçoso e intelectualmente desonesto. Porque a indicação de Democracia em Vertigem foi, sim, importante – e não apenas no aspecto ufanista cafona daqueles que almejavam, finalmente, um Oscar para o Brasil.

Pós-verdade

Independentemente da derrota, Democracia em Vertigem é um marco. Porque, com seu filme, Petra Costa conseguiu dar sobrevida à narrativa de que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi um golpe perpetrado por poderosos malvadões que não queriam ver o pobre andando de avião e que não suportavam a ideia de ter uma mulher ocupando o cargo mais alto do Executivo.

Isso mesmo. Aquela narrativa da qual tantos debochavam e ainda debocham ganhou forma e conteúdo com Democracia em Vertigem, deixando claro para quem quiser enxergar que a ideia de um golpe é muito real para milhões de brasileiros. E, como uma ideia real, ainda que equivocada, ela precisa ser enfrentada no campo que lhe é devido, isto é, o campo das ideias. O "golpe" deixou de ser motivo de chacota ou sinal de delírio esquerdista para se transformar, infelizmente, numa explicação plausível. Graças a Democracia em Vertigem.

Prova disso é a própria expectativa diante da premiação, com os dois lados dessa contenda política se digladiando e tentando impor sua versão da verdade. Petra Costa tinha a vantagem – um produto cuja mera indicação ao Oscar significava uma chancela. O outro lado nessa dicotomia perversa que se tornou o debate político brasileiro tinha a seu favor os fatos – mas fatos, como sabemos, se tornaram uma commodity sem grande valor em tempos de fake news ou pós-verdade.

Para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas parece que prevaleceram os fatos sobre a narrativa exposta na voz melancólica de quem perde um ente querido. Parece. O mais provável, infelizmente, é que o Oscar tenha decidido premiar outros fatos enviesados e outras pós-verdades mais de seu agrado.

E é aí que está o lado bom, por assim dizer, da indicação e posterior derrota de Democracia em Vertigem no Oscar: elas levarão o restrito público consumidor de documentários a questionar todas as versões da verdade que porventura venham a encontrar em obras semelhantes de qualquer lugar do mundo.

E, com alguma sorte, perceberão que há muito tempo, desde Uma Verdade Inconveniente, de Davis Guggenheim e com o ex-candidato à Presidência dos EUA e queridinho dos ambientalistas Al Gore, boa parte do cinema documental serve a uma causa político-ideológica qualquer, e não à busca pela verdade.

E a alma do brasileiro?

A derrota de Democracia em Vertigem revela ainda o quanto o mundo das ideias e das artes, dessa abstração tão difícil de definir a que se dá o nome de “cultura”, está conflagrado. Se por um lado não há a tal “arte heroica e imperativa” de que falava Goebbels na voz do ex-secretário de cultura Roberto Alvim (e é bom que não haja!), por outro tampouco há uma arte de apaziguamento, fruição e contemplação – uma arte sem aspirações políticas de quaisquer tendências.

É significativo, sim, o fato de, depois de 16 anos sem produções brasileiras no Oscar, a indicação ter sido dada a um documentário, ainda que os mais indignados insistam na piada gasta de que o filme de Petra Costa é uma ficção. Isso revela o quanto a cultura brasileira (tanto seus agentes ativos quanto passivos) está apegada à história, ou melhor, a uma versão muito particular da história, da não-ficção, isto é, daquilo que não eleva e que está destinado a virar pó.

De uma forma um tanto quanto etérea, a expectativa que se criou em torno de uma possível vitória de Democracia em Vertigem acaba por tornar ainda mais doída a derrota dos filmes brasileiros de ficção que um dia concorreram a essa que é considerada a premiação mais importante do cinema. Independentemente das análises políticas e sociológicas que se possa fazer de O Quatrilho, Central do Brasil e Cidade de Deus, o fato é que a indicação de um documentário, e não de um filme de ficção, acaba por ressaltar o processo de desespiritualização da alma brasileira, por assim dizer.

Porque por mais enviesado que seja um filme como Central do Brasil, por exemplo, ele permite que o espectador enxergue o mundo por um prisma outro que não o materialismo histórico. A ficção estimula o riso e o choro e as reflexões metafísicas de sempre, enquanto o documentário só faz eclodir uma guerra de narrativas e fatos e números e institutos e siglas e todas essas coisas que compõem um cenário paradisíano no qual os tecnocratas se deleitam.

O respeito do bom “vencedor”

Por fim, a derrota de Democracia em Vertigem (será que ouvi rojões?) serve de guia para que compreendamos o que se passa na cabeça do outro – que triste e equivocadamente aprendemos a identificar como inimigos.

Assistir ao filme com um olhar generoso é se deparar com a emocionante fragilidade de alguém, ou melhor, de milhões de alguéns que, desde a Ditadura, investiram toda uma vida nas muitas formas de marxismo. São pessoas, entre elas Petra Costa, para as quais Lula foi um líder – e jamais deixará de ser. São pessoas para as quais o PT fez tudo certo, exceto, talvez, ter cedido a pressões da velha oligarquia política brasileira em busca da governabilidade. São pessoas para as quais a vida só se justifica como uma batalha entre opressores e oprimidos.

E são, ainda que neguem, seres dotados de individualidade, cada qual com uma história que explica a adesão a essa visão de mundo. Para alguns foi a crença pura e simples na economia centralizada e no poder do Estado para moldar o homem perfeito. Para outros tudo começou com o desejo de impressionar aquela menina (aquela) com uma camiseta do Che Guevara. E há ainda aqueles que beberam de mamadeiras com a foice e martelo estampada, envoltos em uma manta vermelha, dormindo ao som da Internacional Comunista – são pessoas que nunca tiveram a oportunidade de escapar a esse cativeiro ideológico.

Para essas pessoas, a derrota de Democracia em Vertigem é mais do que uma derrota para o cinema nacional, como foi com O Quatrilho, Central do Brasil e Cidade de Deus. Porque elas verão na derrota a rejeição, diante de bilhões de espectadores, à sua visão de mundo – visão que elas consideram a mais justa, correta e até divina, ainda que a história diga o contrário.

E não só por isso, mas também porque deve haver um mínimo de honra em qualquer batalha no campo das ideias, Petra Costa e os milhões que acreditam na narrativa de Democracia em Vertigem merecem hoje o respeito de todo bom “vencedor”.

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