Deve ser terrível viver em um lugar onde é preciso decidir entre a desobediência civil e a submissão a um tirano.
Antígona que o diga.
Ela é a personagem central de uma tragédia grega que leva seu nome e foi escrita por Sófocles há mais de 2.400 anos. Nela, o tema central é a tensão entre um decreto do rei e o senso de justiça da protagonista.
Antígona perdeu dois irmãos, Etéocles e Polinice, em combate. O rei Creonte permitiu ao primeiro um enterro convencional, mas não assegurou o mesmo privilégio ao segundo. Polinice, que era um adversário de Creonte, não teria direito a um túmulo. “Declaro que fica terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou de lamentar sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves e cães, e se transforme em objeto de horror”, anunciou o soberbo Creonte.
Quem desobedecesse ao rei corria o risco de ser apedrejado.
“Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!”, exclamou Antígona, que era noiva de Hémon, filho do próprio Creonte.
A noção de que um rei não tinha direito a algo era nova.
O rei não pode tudo
Na Antiguidade, e em boa parte do que veio depois, os reis eram onipotentes e tinham poder de vida e morte sobre os cidadãos.
Mas Antígona afirma que existe algo maior do que os decretos reais: ela apela às "leis divinas". Sua irmã Ismênia titubeia: "Não as desprezo; mas não tenho forças para agir contra as leis da cidade".
Antígona enterra o corpo de Polinice mesmo assim. Ela é presa e levada para ser interrogada por Creonte. Ao rei, ela admite que sabia do édito do rei.“E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?”, ele pergunta.
Antígona responde: “Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis”.
Nas próximas cenas, Creonte resiste às admoestações do filho, do pai e de Tirésias, um adivinho, que afirma: “Tu não tens o direito de o fazer; nem tu, nem qualquer divindade celeste! É uma inaudita violência, a que praticaste!”, ele clama. O rei se mantém irredutível.
O drama de Antígona é tão relevante que acabou mencionada por Cícero, cinco séculos depois, em uma obra sobre a legitimidade das leis.
Ainda hoje, a questão central da obra é tema de debate entre filósofos, cientistas políticos e juristas: em quais circunstâncias é legítimo desobedecer ao poder do Estado?
Nem toda decisão judicial é legítima
Assim que o ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão do X (antigo Twitter) em todo o Brasil, acompanhada pela proibição do uso de VPNs, parlamentares como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Marcel Van Hattem (NOVO-RS) desafiaram abertamente a determinação imposta por Moraes.
Por outro lado, houve quem adotasse um tom fatalista: "Decisão judicial se cumpre", repetiam.
Mas nenhum deles explicou qual é a fundamentação para que se cumpra uma decisão ilegítima ou imoral.
Pela legislação da Alemanha nazista, perseguir judeus era legal — e, para alguns, compulsório. Isso não significa que o Holocausto foi legítimo.
Depois de Antígona, pensadores têm debatido esse tema por séculos. A maior parte deles reconhece que a lei aprovada por legisladores ou reis só se fundamenta se não contrariar uma lei mais profunda: a lei natural, que pode ser encontrada por qualquer pessoa que faça bom uso da razão. A noção moderna de direitos humanos surge dessa concepção.
Sócrates: morto por discordar do governante da vez
O marco inicial da Filosofia é o relato de Sócrates diante dos seus executores: instado a abandonar a defesa da verdade em nome do poder político, ele preferiu a sentença de morte. "Sócrates, conforme narrado por Platão, foi um dos primeiros grandes exemplos de que as leis humanas e o poder do Estado estão sob o julgamento de uma lei anterior, que é descoberta quando o ser humano se configura à medida divina do próprio homem", afirma Gustavo Adolfo Santos, doutor em Teoria Política e professor na Universidade Católica da América, em Washington.
Ele explica que, mais adiante, autores como Tomás de Aquino e John Locke desenvolveram essa ideia de forma mais elaborada.
“São Tomás ensinava que as leis injustas, contrárias à razão ou com algum vício de origem não são leis, mas ‘violências, pois, como diz Agostinho, não se considera lei o que não for justo’”, ele diz.
Na obra de John Locke, o Estado existe sobretudo para proteger os direitos naturais dos cidadãos. Esses direitos antecedem a existência do Estado. “Nesse sentido, o Estado encontra seus limites exatamente nos direitos a que está destinado proteger, e o representante ou soberano que atenta contra esses direitos coloca-se numa situação de guerra com os cidadãos”, afirma Santos.
Locke foi um dos autores mais influentes entre os fundadores dos Estados Unidos, que até hoje mantém uma política de ampla liberdade de expressão.
O Ocidente tem uma longa linhagem de pensadores que justificaram o direito à desobediência civil. Mas esse princípio carrega em si um perigo: o de que a lei perca o efeito.
João Calvino, um dos líderes da Reforma Protestante, tinha uma visão cautelosa: para ele, só era legítimo desobedecer o governante quando ele tentasse obrigar os súditos a contrariar diretamente a lei de Deus. Fora isso, era preciso se submeter a quem estivesse no poder.
Nem todos os pensadores adotaram essa visão.
Thoreau: um entusiasta da desobediência civil
O americano Henry David Thoreau levou mais longe a noção de desobediência justa. Para ele, toda desobediência era justa. No século 19, Thoreau escreveu "Desobediência Civil", um livro no qual defende a primazia do indivíduo sobre o Estado. "O melhor governo é o que absolutamente não governa", ele argumentou.
Para ele, nem mesmo fato de a maioria das pessoas apoiar o governo não torna as ações estatais legítimas. "Não nasci para ser coagido. Respirarei à minha própria maneira. Vamos ver quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Só podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais elevada que a minha", Thoreau escreveu.
Thoreau não era uma anarquista, mas afirmava que a autoridade do governo só é legítima quando é consentida: "A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter (...) é ainda uma autoridade impura: para ser rigorosamente justa, ela deve ter a aprovação e o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre minha pessoa e meu patrimônio senão o direito que eu lhe concedo", argumentou.
Thoreau levava seus princípios a sério. Ele chegou a ser detido por não pagar impostos, e viveu por anos em meio à natureza, com um contato mínimo com a civilização.
De certa forma, as ideias dele sobreviveram em figuras como Rosa Parks, Mahatma Ghandi e Franz Jägerstätter, que se recusou a lutar pelo exército nazista.
Na Bíblia, submissão ao governo não é absoluta
Ao mesmo tempo em que ensina a submissão às autoridades, a Bíblia exalta figuras que desobedeceram ordens que contrariam a lei divina.
Vice-diretor técnico do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IDR), o advogado Gabriel de Almeida afirma que o ensinamento cristão de respeito às autoridades não é absoluto. "As Escrituras nos apontam exceções em que não devemos nos sujeitar às autoridades, nem às ordens dos governantes", diz Almeida.
Como exemplo, ele cita o relato do livro de Êxodo em que Joquebede coloca o bebê Moisés em um cesto no rio Nilo para escapar da determinação do faraó, que mandara exterminar os meninos israelitas.
Almeida diz que, embora a situação jurídica do X seja debatível, a decisão de Moraes violou os direitos de pessoas que não têm a ver com o processo e que tiveram o acesso à plataforma bloqueado por uma disputa que nada tem a ver com elas.
“Vejo a decisão como uma violação injusta de direitos fundamentais caros à democracia, como a liberdade de expressão, a aplicação inconstitucional de censura prévia e a dignidade da pessoa humana, a partir da supressão desses direitos fundamentais de maneira irrestrita e injustificada a toda a coletividade”, ele diz.
O fim trágico de um rei arrogante
Ao fim da tragédia "Antígona", o rei Creonte cede e aceita libertar a protagonista: "Eu próprio, que ordenei a prisão de Antígona, irei libertá-la! Agora, sim, eu creio que é bem melhor passar a vida obedecendo as leis que regem o mundo!”
Mas é tarde demais. Antes de receber a notícia, Antígona tira a própria vida — no que foi seguida por Hémon, seu noivo e filho de Creonte. Em choque, a rainha — esposa de Creonte também comete suicídio.
Sófocles usa o rei Creonte para ensinar uma lição: os decretos de reis, presidentes ou juízes não é onipotente e não têm o poder de apagar a lei natural.
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