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Despretensioso, “Dezessete”, exibido pela Netflix, é uma ode ao cultivo das virtudes, mesmo nos terrenos mais improváveis.
Despretensioso, “Dezessete”, exibido pela Netflix, é uma ode ao cultivo das virtudes, mesmo nos terrenos mais improváveis.| Foto: Reprodução/ Netflix

Um jovem sem rumo na vida, um adolescente com autismo e uma idosa moribunda viajam pela Espanha em um motorhome antigo em busca de um cachorro sem dono. Em poucas linhas, este é o ponto de partida de “Dezessete”, produção do diretor espanhol Daniel Sánchez Arévalo disponível na Netflix. Mas, de um mote pouco inspirador, emerge uma história comovente de aprendizado e amadurecimento.

O protagonista do filme é Héctor, que, aos 17 anos, acaba sendo detido pela sétima vez depois de roubar um aquecedor para entregar a sua avó (aparentemente, o sistema penal espanhol é tão pouco rigoroso quanto o brasileiro). Enquanto cumpre seu tempo atrás das grades, ele foge duas dezenas de vezes (a segurança nos centros socioeducativos também parece não ser o forte da Espanha), mas se deixa capturar. O que ele quer é apenas passar mais tempo na solitária.

O comportamento antissocial do garoto só melhora quando, prestes a completar 18 anos, ele conhece Ovelha, um cachorro que vive em um abrigo para animais abandonados e que, como parte de um programa de ressocialização com animais, visita os jovens infratores regularmente. Mas um dia o cachorro não aparece: fora adotado. O garoto se descontrola. Héctor foge da cadeia juvenil e convence o irmão mais velho, Ismael (que vive em um motorhome velho desde que terminou com a namorada), a ir buscar o animal - não sem antes resgatar a avó do lar para idosos onde ela vive. Na jornada, os dois rapazes acabam se aproximando e desenvolvendo uma relação que, se começa com certo grau cinismo (a frequência de palavrões chega a incomodar), evolui gradualmente.

O enredo deixa lacunas propositais. O garoto tem evidentes sinais de autismo - a inteligência elevada, a dificuldade de relacionamentos e a incapacidade de compreender ironias - mas o filme não se preocupa em oferecer um diagnóstico. Além disso, nada se sabe sobre os pais dos dois rapazes. O foco é a jornada de Héctor e Ismael, numa espécie de releitura de Dom Quixote e Sancho Pança.

Em segundo plano, o espectador é levado a uma Espanha envelhecida que ainda tenta encontrar o seu lugar depois de uma brutal crise econômica. O desemprego, maior do que o brasileiro, é quatro vezes o da Alemanha, e o PIB per capita ainda não voltou ao nível pré-crise de 2008. Uma idosa no fim de sua vida, um adulto fracassado e um jovem desajustado são, de alguma forma, um retrato da Espanha de hoje.

Também não por acaso, o núcleo familiar pouco convencional não tem casa. O adolescente vive nos centros de abrigo, a avó no lar para idosos e o irmão mais velho em um motorhome, onde todos se reúnem para a pequena aventura - nem mesmo o cachorro Ovelha parece ter o seu lugar no mundo. Ao passarem pela vila de seus antepassados, os rapazes descobrem que a família já não é bem-vinda por lá. O corpo do avô, morto há mais de 75 anos, foi removido de sua tumba por falta de pagamento. Sobrara apenas o relógio de pulso, como a atestar que a única coisa permanente é a própria passagem do tempo.

Em meio a este cenário árido, entretanto, a mensagem do filme se mostra aos poucos e despretensiosamente. O amor fraternal, o cuidado com a avó idosa, a jornada de um garoto problemático rumo ao amadurecimento e a transformação do irmão boca-suja em uma figura paterna constituem, no fim de tudo, uma ode ao cultivo das virtudes, mesmo nos terrenos mais improváveis.

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