São 9 horas da manhã da quarta-feira, 10 de julho. Quem desce a pé rumo à entrada principal do Congresso escuta, de longe, o que parece um pregador evangélico pentecostal.
Só depois de passar pela entrada principal do Congresso, conhecida como Chapelaria, é possível ver que na verdade se trata de uma missa.
Cerca de 50 pessoas participam da celebração, parte delas em pé. O funcionário da recepção tem dificuldades de escutar quem chega. O padre fala em línguas. A Banda dos Fuzileiros Navais passa ao lado, rumo a uma cerimônia qualquer no Senado.
O acesso à Câmara dos Deputados continua relativamente simples, apesar de algumas mudanças depois de 8 de janeiro de 2023. É preciso mostrar um documento de identidade e dizer aonde vai. Qualquer resposta vale: o funcionário não confere se há alguém esperando pelo visitante no gabinete 320, ou se há de fato um evento agendado para o Plenário 4 das comissões.
O visitante recebe um adesivo de identificação, passa pelo raio-x e está livre para circular pela Câmara (quase toda), à exceção do plenário e do adjacente Salão Verde.
De qualquer forma, não há muito a ver no Salão Verde por ora: apesar de o plenário ter sessão convocada para as 9h, o local está praticamente vazio (justiça seja feita, os deputados Pauderney Avelino, do Amazonas, e Ismael, de Santa Catarina, chegaram cedo).
O Salão Verde cheira ao pão de queijo produzido incessantemente no “cafezinho” da Câmara, que os deputados podem acessar a qualquer momento sem ter que deixar o plenário. O dia mais cheio da semana está prestes a começar.
Evento em “parceria institucional”
São 9h10. O primeiro item na agenda do dia, uma cerimônia para desejar boa sorte aos atletas olímpicos brasileiros, estava marcado para 8h30. Por enquanto, nada. O evento ganhou o nome de Rumo às Olimpíadas - Paris 2024, embora nenhum dos participantes de fato esteja se preparando para participar dos jogos.
Nada começa no horário na Câmara dos Deputados.
Quando o evento tem início, com 50 minutos de atraso, o primeiro a discursar é o deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP), presidente da Comissão de Esportes.
Antônio Carlos Rodrigues não está em um bom dia. Ele diz que o deputado Douglas Viegas (UNIÃO-SP) foi atleta olímpico. Não é verdade, e Viegas precisa corrigi-lo diante da plateia.
O deputado Douglas é um novato. Ele ficou conhecido na internet como o “Poderosíssimo Ninja”, e tem bordão próprio. “Nunca mexa”, diz ele, em tom desafiador.
Por vezes, o ato parecia mais uma divulgação da N Sports, empresa que vai transmitir os jogos e que, segundo o material da cerimônia, prestou “apoio institucional” à homenagem.
Antes da gafe, Rodrigues já havia se esquecido do nome do deputado Luiz Lima (PL-RJ) — este sim, ex-atleta olímpico. “Eu queria chamar os três atletas olímpicos que são deputado federal", ele diz, errando o plural. “O Maurício do Vôlei, o Douglas e o grande amigo nosso… Luiz Lima”. Luiz Lima está sem gravata. Nos últimos anos, alguns parlamentares passaram a tratar o adereço como opcional.
Embora a maioria dos deputados mantenha o traje completo, há variações.
Pompeo de Mattos (PDT-RS) só usa uma bombacha tipicamente gaúcha com um lenço vermelho ao pescoço. Gilvan da Federal (PL-ES) veste terno e gravata, mas invariavelmente carrega uma bandeira do Brasil sobre os ombros. Tiririca (PL-SP) parece se esforçar em busca das combinações mais esdrúxulas entre paletó, calça, camisa e gravata. E tênis.
Vídeos com logomarca de empresa
Agora quem fala é o deputado Delegado Da Cunha (PP-SP). Ele foi atleta de judô (não olímpico, embora Antônio Carlos Rodrigues tenha dito que sim).
Da Cunha explica como começou no esporte.
"Arrumei uma confusão com um japonês e o japonês me chamou para a briga, mas tinha que ser no tatame na casa dele", lembra.
Ex-jogadora de basquete e atual Secretária Nacional de Esportes de Alto Rendimento, Iziane Marques passa boa parte do tempo ao celular enquanto outros participantes do evento discursam. Quando chega a vez dela, ela lê o próprio discurso no telefone.
Encerrado o evento, funcionários da N Sports se encarregam de levar, uma a uma, as autoridades para gravar um depoimento à frente de um painel com a marca da empresa.
Corredor da comissões
Maurício do Vôlei (2,07 m) quase bate a cabeça no teto quando caminha pelo corredor das comissões.
Nesta quarta-feira, quase todos os plenários estão fechados. Por causa da votação da Reforma Tributária, o presidente Arthur Lira (PP-AL) cancelou as reuniões de comissões. A exceção foi o grupo de trabalho pela reconstrução do Rio Grande do Sul.
Os plenários das comissões (16 ao todo) são praticamente idênticos. Alguns têm fotos de parlamentares importantes da história.
O plenário 10, por exemplo, exibe um retrato do sociólogo e ex-deputado Florestan Fernandes (1920-1995) logo acima da mesa onde fica o presidente da comissão. Na foto, Fernandes está curiosamente parecido com Woody Allen. Talvez seja a expressão facial, talvez sejam os óculos exageradamente grandes.
Padre Kelmon e roda de coco
São 14h30. No corredor que liga o Anexo II ao prédio principal da Câmara, Padre Kelmon — que disputou a Presidência da República em 2022 — tira fotos com admiradores.
Não é possível ouvir o que ele diz porque, a 20 metros dali, um evento intitulado "Meninas pelo direito a uma educação sem racismo e sexismo" sequestra as ondas sonoras.
As participantes vestem camisetas amarelas. Nas costas, é possível ler quem financia o ato: o Malala Fund e o Inesc, uma ONG financiada por organizações globais como a Open Society, de George Soros. “Vamos se embora que a gente aprende dançando coco", conclama a chefe do evento. Logo ela diz que “o futuro é ancestral”.
Outra mulher diz algo sobre “homens brancos de terno".
A coordenadora do evento encerra sua fala com um jogo de palavras. "Dias mulheres virão para todas nos. Axé”.
Em frente ao local onde as jovens agora fazem uma roda de dança (ancestral), há um painel com fotos de todas as deputadas federais eleitas na história.
A figura não está atualizada, e portanto não inclui Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP), que se identificam como mulheres transexuais.
A foto da ex-deputada Flordelis, que foi cassada e presa por ter mandato assassinar o marido, continua lá.
No andar debaixo, em um auditório quase vazio, vereadores participam de um seminário sobre gestão pública. O palestrante explicava o que são receitas e despesas diante de cadeiras vazias e uma dezena de pessoas sonolentas.
Em defesa dos invasores de terra
São 16h50. O único plenário de comissão ocupado sedia uma audiência pública presidida pelo deputado Glauber Braga (PSOL-RJ).
As cadeiras estão tomadas e há bandeiras da FLN (Frente Nacional de Luta Campo e Cidade). A FLN é uma dissidência ainda mais radical do MST. Os ativistas estão preocupados com um projeto de lei que aumentaria o rigor na punição a invasores de terras.
Além de integrantes da FLN, há pelo menos três indígenas na plateia. A cena é comum: proporcionalmente, há mais indígenas nos eventos da Câmara do que na população brasileira, onde eles são 0,8% do total.
"A gente devia estar criminalizando é quem matou 700 mil pessoas neste pais", em uma provável referência ao ex-presidente Jair Bolsonaro e à pandemia, diz um jovem chamado Manuel, que diz morar em uma ocupação em Minas Gerais.
Acima da mesa, o retrato do ex-governador de São Paulo Franco Montoro (1916-1999) parecia estupefato — como quem não acredita no que ouve. Logo abaixo, o busto do Barão de Rio Branco olhava para o lado oposto.
Voto a distância esvaziou turma do fundão
Até antes da pandemia, só era possível votar de dentro do plenário. Quem não votasse, perdia parte do salário. Por isso, durante as longas sessões de votação, parlamentares menos influentes formavam uma “turma do fundão”, mais dada a galhofas e conversas sobre futebol do que ao assunto em debate no dia. Jair Bolsonaro costumava fazer parte desse grupo.
Agora, com a possibilidade de voto remoto, muitos parlamentes preferem permanecer no gabinete, em reuniões e despachos, e ir ao plenário apenas quando tem um discurso a fazer — ou quando querem gravar vídeos para as redes sociais.
A mudança reduziu a superlotação do plenário, que só tem 396 assentos para 513 deputados. É que o prédio foi construído quando o Brasil tinha menos estados, e o tombamento arquitetônico não permite uma ampliação no número de cadeiras.
Gabinetes simplórios
Os deputados federais têm muitas benesses, mas ter um gabinete luxuoso não é uma delas. As salas são simples, muitas delas com um mobiliário típico dos anos 70. Os funcionários e os visitantes escutam enquanto o deputado fala ao telefone com prefeitos ou representantes de grupos de interesse. As divisórias são péssimas para isolar o som.
Atualmente, 428 dos 513 deputados têm seus gabinetes no Anexo IV. Cada um tem aproximadamente 45 metros quadrados. No Anexo III, o espaço é menor e não há banheiro próprio. A vantagem é a proximidade com o restante da Câmara. Os deputados do Anexo IV precisam passar por duas esteiras, como a de aeroportos, para percorrer o caminho até o prédio principal da Câmara.
Parte das esteiras está em reforma, o que aumenta o tempo de deslocamento.
Os deputados têm elevadores exclusivos no Anexo IV. Por alguma razão, quando eles chegam no subsolo e não há um elevador disponível, é preciso que eles peguem o telefone e façam contato com o ascensorista em vez de simplesmente apertarem um botão.
Logo antes, para quem segue rumo ao Anexo IV, há um busto de José Bonifácio, acompanhado por uma de suas frases mais conhecidas: “A sã política é filha da moral e da razão".
Em defesa das bacias hidrográficas
O movimento de vereadores, lobistas, curiosos e ativistas não para ao longo do dia. Terças e quartas-feiras são os dias mais cheios na Câmara dos Deputados.
Um rapaz fala ao telefone. Ele parece estar preocupado: “O cara pisou na bola comigo e engoliu o meu dinheiro. Quase que eu ia fazendo loucura com ele", diz ele, que usa um crachá. Uma estagiária passa ouvindo funk no fone de ouvido.
Um grupo de jovens bem-vestidos se prepara para uma reunião do estágio-visita, em que estudantes são convidados a passar alguns dias conhecendo a Câmara dos Deputados. O franzino deputado Amom Mandel (CIDADANIA-AM), de 23 anos, passa pelo corredor e se mistura, por um instante, com o grupo. Ele poderia facilmente ser confundido com um dos estudantes.
São 6 da tarde. O plenário continua debatendo a reforma tributária.
No Plenário 10 das comissões, meia-dúzia de deputados, todos de partidos à esquerda, participa do lançamento da Frente Parlamentar em Defesa das Bacias Hidrográficas.
A equipe preparou um banner, colocado logo atrás da mesa diretora. O objeto cobre parcialmente a foto de Florestan Fernandes. Os olhos e os óculos enormes continuam visíveis, logo acima do banner. A cena tem sua graça.
A sessão do plenário terminou às 21h46. A essa altura, muitos deputados já haviam ido para casa. Os que restam agora caminham lentamente para a Chapelaria. Padres, índios, vereadores e lobistas já haviam saído.
Com todos os seus defeitos, a Câmara dos Deputados continua sendo o espaço mais democrático — talvez o único — da capital federal.
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