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Pessoa mostra réplica de feto durante protesto em defesa da vida. Na Flórida, jovens com menos de 18 anos precisarão de autorização dos pais para fazer um aborto
Pessoa mostra réplica de feto durante protesto em defesa da vida.| Foto: JOAQUIN SARMIENTO / AFP

A pandemia do novo coronavírus colocou em evidência a classe médica. A corrida por um tratamento eficaz ou por uma vacina, a sugestão do emprego de quarentenas ou lockdowns para diminuir o contágio, os temores de uma sobrecarga nos diversos postos de saúde, tudo isso contribuiu para que a medicina fosse o assunto principal das manchetes e conversas de família e amigos.

Entrevistamos o dr. Hélio Angotti Neto, médico graduado em 2003 pela UFES, oftalmologista, doutor pela USP e autor de diversos livros na área de filosofia da medicina e bioética, como A morte da medicina, Bioética: vida, valor e verdade e Arte médica – de Hipócrates a Cristo. Ele também é diretor editorial da revista médica Mirabilia Medicinae.

Atualmente o doutor trabalha no Ministério da Saúde como diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde e é membro suplente da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. É professor da Uninove e atende no Hospital Oftalmológico de Brasília.

Dr. Hélio é um ferrenho defensor da vida desde a concepção e trabalha por um aprimoramento da ética médica.

Gazeta do Povo - Apesar de ganhar os holofotes, por conta da pandemia, como uma defensora da vida, a OMS continuou a apoiar o aborto durante a crise, considerando-o inclusive como um serviço essencial. Por que esse paradoxo? Existe algo de errado com a concepção que a organização faz em relação ao termo “saúde” que difere do que as pessoas comumente entendem?

Dr. Hélio Angotti Neto - Explicar as razões disso é algo quase impossível. Há diferentes razões e diferentes grupos fazendo lobby. O que é evidente e facilmente verificável são os fatos e as narrativas que demonstram a existência dessa aparente contradição. Há uma grosseira manipulação de expressões como saúde e direito, de forma que a tentativa de legalizar o assassinato da própria prole, de nossos filhos, torna-se um direito reprodutivo e saúde reprodutiva. É manipulação semântica de baixíssima qualidade, mas que convence pessoas despreparadas em termos filosóficos.

Que se considere saudável, digno ou justo matar fetos indefesos é sinal claro de que há sim uma postura controversa em relação à vida humana e a sua dignidade. Como há grande elasticidade no uso de expressões como dignidade, saúde e vida, elas podem ser utilizadas praticamente para justificar qualquer opção voluntarista, por mais louca ou cruel que seja. Combater esse mau uso da linguagem requer educação de excelência. Daí o leitor já pode imaginar a enrascada em que nos encontramos.

Gazeta do Povo - Em seu livro ‘A morte da medicina’, você analisa longamente a questão do aborto. Por que o aborto está cada vez mais ganhando (ou procurando ganhar) legitimidade nas últimas décadas? Não deveria ser mais ou menos evidente que a vida no ventre da mulher é a mesma que aparecerá no dia do nascimento?

Dr. Hélio Angotti Neto - Sim, é evidente que a vida no ventre da mulher é a mesma no dia do nascimento, assim como a vida de um feto e de um adolescente é a mesma em essência à vida de um idoso décadas depois, com diferentes qualidade e limitações. É evidente de muitas formas, incluindo a científica!

Mas, como disse antes, é fato que há um lobby e é evidente que este envolve uma indústria bilionária com todas as suas ramificações políticas, científicas  – ou pseudocientíficas – e culturais. Daí a notoriedade dessa discussão: pressão movida por interesses amparados por bilhões e bilhões de dólares.

Na época contemporânea, esse grande movimento que engloba abortismo, eugenia e eutanásia, chamado por muitos de Cultura da Morte, começou com os movimentos eugenistas na América do Norte e, na sequência, na ideologia nazista. Estava intrinsecamente ligado a noções de purificação e controle de natalidade no odioso contexto racista que engolia a ciência da época. Em décadas recentes, esse lobby reconquistou muito da força perdida na segunda metade do século XX por causa dos horrores da Segunda Guerra Mundial e do Julgamento de Nuremberg.

Gazeta do Povo - Outra questão que começa a aparecer é a eutanásia. Você saberia dizer quem começou com essa ideia? Que ideia está por trás de encerrar uma vida porque ela não teria nenhuma "função"?

Dr. Hélio Angotti Neto - A eutanásia e o suicídio assistido são ideias muito antigas, presentes em certos elementos da sociedade desde tempos pré-cristãos, assim como o aborto e o infanticídio. Mas o ressurgimento dessas ideias veio junto com o abortismo escancarado do início do século XX. É a Cultura da Morte, de fato.

Muitos são os agentes envolvidos na defesa dessa Cultura, pelas mais diferentes razões, assim como ocorre com o abortismo.

A ideia de encerrar uma vida por falta de “função” na sociedade já foi defendida por muitos “intelectuais”, como o socialista fabiano George Bernard Shaw e diversos outros ligados a ideias chamadas de darwinismo social.

Novas ideologias – na verdade velhas loucuras com novas máscaras, como o Transumanismo –, reforçam o anseio pela reforma da humanidade extirpando de nossa convivência aqueles que um dia já foram chamados de “comedores inúteis”. E nessa onda embarcaram também grandes corporações que lucram pesado com procedimentos abortivos e pesquisas.

Por trás dessas ideias pavorosas estão algumas linhagens de pensamento que misturam materialismo, hedonismo, utilitarismo e voluntarismo. Seria uma grande mistura da perda do elemento transcendental da existência humana com o irracionalismo voluntarista. É difícil ter certeza de para onde isso nos levará, mas exemplos como o comunismo e o nazismo já cobraram sua conta em centenas de milhões de vítimas inocentes, mesmo em tempos de pretensa paz.

Gazeta do Povo - A medicina ganhou o topo das manchetes por conta da pandemia de coronavírus, sobrepujando até outras questões sociais como a economia. Você acredita que foi dada uma importância exagerada à medicina em detrimento de outras atividades?

Dr. Hélio Angotti Neto - A boa medicina preza diversos princípios e valores. Entre esses princípios encontram-se alguns já clássicos expostos pela bioética como o da beneficência, o da não-maleficência, o da autonomia e o da justiça. Se a medicina é bem pensada e bem executada, há uma busca pela ação responsável e prudente, que evita ao máximo prejudicar o paciente ou a sociedade. Nesse sentido, uma boa medicina prezará as demais atividades exercidas em sociedade como contexto concreto e necessário ao bom raciocínio clínico e epidemiológico. Não posso julgar se foi dada importância exagerada ou não à medicina, pois ainda estamos no meio de uma crise bastante complexa, mas posso dizer que uma boa medicina deve levar em conta os demais aspectos da sociedade.

Gazeta do Povo - A OMS é para muitos políticos, jornalistas e médicos o farol máximo quando se trata de questões sanitárias, contudo o que se viu desde o início da crise do coronavírus foi a organização batendo cabeça e dando declarações desastrosas até, como quando informou que o vírus não era transmissível entre humanos. Uma organização mundial é realmente o melhor meio de se criar diretrizes para a saúde? O que seria uma solução viável para a medicina hoje, um reforço de conselhos regionais de medicina? Ou uma fragmentação completa em que cada médico aplica o que lhe parece melhor?

Dr. Hélio Angotti Neto - Não há solução global única que dê conta da enorme riqueza de cenários existentes, e creio que até mesmo a OMS reconhece essa realidade. Mesmo dentro do Brasil, temos estados muito diferentes entre si em termos sanitários e sociais, com necessidades heterogêneas. Desconfio de soluções maravilhosas, panaceias, que tudo prometem resolver.

Ao mesmo tempo, não se pode permitir o caos e a irracionalidade quando se fala de terapia medicamentosa e protocolos. É preciso ter um padrão minimamente seguro e eficaz para estabelecer um procedimento capaz de gerar resultados positivos passíveis de aplicação pelos profissionais da saúde. Para isso, trabalha-se com evidências científicas e classificação do grau de qualidade dessas evidências. Por fim, medicina não é uma ciência, é uma arte. Como diria Edmund Pellegrino [1920-2013, bioético e acadêmico americano], a mais científica das humanidades e a mais humana das ciências.

Hoje, o médico pode aplicar o que lhe parecer melhor em termos de terapia, desde que o paciente concorde e que ele possa justificar sua conduta em termos científicos adequados com base no que há de mais atualizado. Essa autonomia profissional é relativizada pelo compromisso em oferecer algo de qualidade.

Gazeta do Povo - Você acredita que a responsabilidade individual dos médicos está sendo substituída por uma espécie de mentalidade burocrática, ou melhor, tecnocrática, em que apenas se seguem protocolos? Esses protocolos não estariam sendo elaborados longe demais dos casos concretos, onde realmente o médico atua?

Dr. Hélio Angotti Neto - Esse é um risco constante, com certeza, o de transformar um artista responsável em um burocrata impessoal.

Na busca por se estabelecer padrões de qualidade, suprime-se em parte a riqueza existencial de cada paciente único. Mas, por outro lado, a completa ausência de protocolos abriria margem para riscos inaceitáveis na medicina. É preciso navegar no estreito caminho que margeia a ciência sem negligenciar o fato de que cada paciente é um ser único na história da humanidade, especialíssimo e digno.

Em relação à produção dos protocolos, há várias associações de especialidades e esferas governamentais que trabalham na produção e validação desses protocolos. O que se pode afirmar é que há uma constante progressão nas ferramentas de aprimoramento desses protocolos, sempre em mutação conforme mudam os recursos de intervenção na saúde humana.

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