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Há quem proponha a nacionalização dos mecanismos de busca e das redes sociais. Imaginamos como seria essa distopia estatista.
Há quem proponha a nacionalização dos mecanismos de busca e das redes sociais. Imaginamos como seria essa distopia estatista.| Foto: Pixabay

Brasileiro está assistindo a um filme. As Aventuras de Tom Jones, digamos, a adaptação britânica de 1963 para o romance clássico de Henry Fielding, publicado em 1749, com roteiro do dramaturgo John Osborne. Em algum momento do filme, encantado pela bela Susannah York, o Brasileiro acha por bem saber um pouco mais sobre a atriz. Que outros filmes ela fez? Está viva? Essas coisas normais que despertam nossa curiosidade ao longo de um filme.

Ele pega o celular todo afoito, mas lembra: por ideia de um burocrata qualquer, o Governo decidiu nacionalizar os mecanismos de busca, unificando-os na estatal Googlebras. Foram criadas as estatais Livro de Rostos e Piu, para que os cidadãos pudessem expressar livremente suas opiniões. Mas só de pensar nos trâmites burocráticos o Brasileiro desistiu de, naquele dia, dizer aos amigos não só que As Aventuras de Tom Jones é ótimo e Susannah York é linda como também que estava comendo um delicioso biscoito (ou bolacha) despertando aquela saudosa polêmica do início do século XXI.

Brasileiro termina de assistir ao filme e tenta dormir. Mas fracassa. Porque o rosto de Susannah York não sai de sua cabeça.

No dia seguinte, então, Brasileiro decide que não pode continuar vivendo sem ter mais informações a respeito da atriz inglesa de olhos azuis, pele branquíssima e lábios carnudos que personificou a sensualidade dos anos 1960. Ele toma um café Torrabras apressado com duas fatias de pão Panibras e bastante margarina Hidrogenadabras, veste sua calça Dins e uma camisa Naiqui e sai com seu velho carro Tucano até a sede da Googlebras.

Depois de uma hora no trânsito e mais meia hora procurando uma vaga no estacionamento da estatal, Brasileiro finalmente encontra um lugar onde deixar seu Tucano. Ele ergue os olhos e vê diante de si a imponente sede da empresa, a maior do país, com 15 milhões de funcionários, projetada pelo tetraneto de cinco anos de um importante arquiteto modernista e erguida pela Construbras, estatal que reuniu as maiores empreiteiras do país depois do Enorme Escândalo de Corrupção conhecido como Enormão.

A sede da Googlebras vivia sempre cercada por uma densa névoa, fruto da combinação da temperatura externa com o pinga-pinga de centenas de milhares de aparelhos de ar-condicionado que exigiam que a estatal tivesse em seu porão um minirreator nuclear, tecnologia Átomo V&A, 100% nacional, como convém. Brasileiro abriu seu guarda-chuvas com as cores nacionais e avançou névoa e estatal adentro.

As portas automáticas se abriram com um rangido e ele pensou em voltar. Mas era perigoso mudar de ideia. Alguém poderia interpelá-lo ali mesmo e perguntar o que ele queria pesquisar de tão perigoso, subversivo e imoral a ponto de, depois de alguns passos, sabiamente desistir. Em silêncio, ele permaneceu durante duas horas na fila, até ser orientado por uma Brasileira de olhar cansado a subir até o 133º andar, onde ficava o Departamento de Informações Cinematográficas do Século Vinte”.

Brasileiro obedeceu, mas foi de escada.

Demorou, mas chegou. Por sorte havia desfibriladores a cada 50 andares. Com a camisa queimada pelo uso incorreto, mas necessário e urgente, do aparelho, ele ganha o corredor do 133º andar, com suas dezenas de portas, cada qual com um departamento. Brasileiro pensa em desistir, Brasileiro vai desistir, Brasileiro dá meia-volta e desiste, mas um guarda o segura pelo braço e lhe diz que, uma vez no corredor do DICSV, é obrigatória a pesquisa. Brasileiro tenta inventar uma desculpa qualquer, diz que esqueceu o que pretendia pesquisar, que voltava amanhã, que isso e aquilo, mas o guarda não se convence e o ameaça de prisão.

Brasileiro, então, solta um suspiro o mais desolado, se lembra dos olhos muito azuis de Susannah York e pergunta onde poderia obter informações sobre a atriz. O guarda lhe entrega um exemplar do Guia de Subdepartamentos do Departamento de Informações Cinematográficas do Século Vinte. A versão digital, informa o guarda, está sendo elaborada pela Maçã do Brasil. Mas vai demorar pelo menos dez anos ainda.

Quando finalmente encontra o subdepartamento do subdepartamento do subdepartamento do subdepartamento desejado, Brasileiro bate na porta e vai entrando. Lá dentro, duas Brasileiras, ao vê-lo, sorriem e, solícitas, perguntam em uníssono no que podem ajudá-lo. Ao ver aqueles sorrisos, Brasileiro recupera imediatamente as esperanças. Ele se arrasta até uma cadeira, vai se sentando, respira fundo e diz a uma delas que quer saber tudo sobre Susannah York. Como se escreve?, perguntam as duas ao mesmo tempo. Brasileiro soletra pausadamente, dando ênfase aos dois enes. As duas digitam ao mesmo tempo, o tempo todo com aquele sorriso solícito no rosto.

Pronto, dizem as Brasileiras, como se fossem siamesas, e não apenas redundantes. Em silêncio, Brasileiro espera, mas não sabe direito o quê. O barulho de uma impressora Ahápê, talvez. Ou, na pior das hipóteses, instruções para que ele suba mais 50 andares. Nada. Quando Brasileiro faz menção de se manifestar, uma das duas, a da esquerda, lhe entrega um papel. A da direita diz que o dossiê está sendo preparado e que ele deve pagar o DARF e voltar em dois dias. E não se esqueça de um comprovante de residência, hein?, lembram as duas, mais uma vez em uníssono.

Brasileiro se levanta para voltar para casa. Ele consulta o relógio Casiobras digital. Cinco e meia da tarde. Respirando fundo, ele segue até o elevador, mas se lembra da Tragédia da Atlasbras e desiste. Para baixo todo santo ajuda, pensa ele, indo até as escadarias. Antes de começar a longa descida, contudo, ele tira o papel que as Brasileiras lhe deram do bolso para guardá-lo na carteira. Deus o livre de perder aquilo! Entre uma coisa e outra, ele espia o papel e lê “Susannah Iork”.

É quando, apesar do adiantado da hora, Brasileiro decide ir até o cartório mais próximo a fim de protocolar uma reclamação no Piu e no Livro de Rostos, mesmo sabendo que ela jamais seria aprovada nem lida.

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