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O cientista político Shivam Shankar Singh ajudou na campanha política do partido indiano BJP.
O cientista político Shivam Shankar Singh ajudou na campanha política do partido indiano BJP.| Foto: Divulgação/Instagram

Aos 27 anos, a experiência que o cientista político Shivam Shankar Singh possui em seu currículo é equiparável – ao menos, em intensidade – a de marqueteiros e consultores políticos tarimbados. Em 2014, Singh acompanhou de dentro do partido Bharatiya Janata (BJP, a tradução aproximada seria “partido do povo indiano”) a ascensão ao cargo de primeiro-ministro da Índia do ex-governador do estado de Gujarat, Narendra Modi, em uma campanha inédita para o país, amplamente impulsionada pelas redes sociais.

“Eu acompanhava todos os relatórios, tuítes e posts de Facebook sobre as novas tecnologias da política e me tornei membro de vários grupos de WhatsApp que discutiam estratégias para as próximas eleições”, lembra o analista, então estudante da Universidade de Michigan, Ann Arbor.

A Índia, vale lembrar, é o país com maior número de usuários do Facebook e do WhatsApp com, respectivamente, 241 milhões e 400 milhões de inscritos.

Foi o uso massivo destas ferramentas, aliadas a técnicas avançadas de coleta e análise de dados, que levou Singh a se filiar ao BJP e, posteriormente, voltar dos Estados Unidos para trabalhar como consultor da legenda.

Singh também foi convencido de que Modi, já inocentado pela Suprema Corte da Índia da acusação de ter sido cúmplice de atos violentos em protestos, representaria uma renovação para o país, naufragado em escândalos de corrupção da United Progressive Alliance (UPA).

“O apelo de um líder enérgico, que levaria a Índia a um papel de liderança no século XXI, e ainda curando o mal da corrupção e do nepotismo que empesteou nossa política por décadas, era tão poderoso que eu entrei para o partido”, narra Singh.

E destaca também que: “foi só em 2016, ao trabalhar com os chefes da campanha, que eu entendi como um culto à personalidade é criado e como uma campanha eficaz transforma um político em um semideus e salvador”.

Às vésperas do início da campanha que culminaria na reeleição de Modi, as mesmas tecnologias – ou melhor: o mau uso delas – levaram Shivam Shankar Singh a se desfiliar do BJP.

Em um texto que angariou milhares de curtidas e correu o país inteiro (até chegar a figurões do partido), Singh acusa o BJP de abusar das famosas fake-news para favorecer a narrativa de que o primeiro-ministro seria a única salvação possível contra a ameaça muçulmana, além de fortalecer discursos ultranacionalistas e classificar seus críticos – ainda que não fossem opositores – como “anti-hindus” ou “anti-Índia”.

“Há algumas notícias falsas anti-BJP também, mas as pró-BJP e anti-oposição as ultrapassam por quilômetros em número e alcance. Parte disso é feito pela torcida, mas muito vem do partido. Muitas vezes é odioso e polarizador, o que o torna ainda pior. Os portais de notícias online apoiados por este governo estão prejudicando a sociedade mais do que sabemos”, escreve Singh.

Ele está afastado do partido desde 2018, quando publicou o relato viral “Why I Am Resigning From the BJP” [Por que estou saindo do BJP].

Singh afirma ter presenciado disparos em massa de notícias falsas ou distorcidas para grupos de WhatsApp gigantescos, formados por meio de bases de dados que agrupavam usuários em perfis ideológicos considerando sua classe social, nível de estudo, religião e casta.

Conta também que viu apoiadores do partido serem contratados para defender a causa nacionalista em grandes veículos de imprensa em debates arranjados para aumentar a polarização. “Nos bastidores, a maioria desses agitadores é menos maluca do que parece”, diz o consultor.

Toda as experiências de Shivam Shankar Singh dentro do BJP estão condensadas em seu livro “How To Win An Indian Election” [Como Vencer uma Eleição Indiana, em tradução livre].

Em entrevista à Gazeta do Povo, o autor explica os bastidores das campanhas vitoriosas que participou pelo partido e compartilha suas preocupações com a política indiana e internacional.

Gazeta do Povo - O livro foi escrito antes da reeleição de Narendra Modi, em 2019. Suas previsões, afinal, estavam corretas?

Shivam Shankar Singh - A maioria delas, sim. Minha principal teoria era que o BJP apelaria ainda mais para o emocional dos eleitores, dado que os resultados econômicos estavam indo muito mal.

Então houve um ataque terrorista na Índia, o governo retaliou contra o Paquistão e aproveitou para reforçar a ideia de que nós temos um primeiro-ministro forte, e ninguém preencheria essa posição. O fracasso da economia, o aumento da pobreza, etc. foram ofuscados pela defesa da segurança nacional.

O partido usou as mesmas estratégias digitais do passado?

Sim. A diferença é que, quando tudo começou, em 2014, o uso do Facebook era mais intenso. Desde 2017, esse protagonismo passou para o WhatsApp.

E por que a predileção pelo WhatsApp? 

Porque muita gente não usa nenhum outro aplicativo, além do WhatsApp. É o maior meio de comunicação em vários países, e você pode usá-lo para uma operação chamada microtargeting: reunir pessoas em grupos de acordo com suas preferências.

Como isso é feito, na prática?

Com a lista de eleitores de uma determinada região, o partido pode, através de bases de dados simples, dividi-los por religião, casta e classe – acessando, por exemplo, um histórico de compras ou o mero acesso à internet – e conectar essas pessoas formando perfis.

Depois, é só bombardeá-los com mensagens diferentes. Se você está em um grupo mais pobre, a mensagem será sobre empoderamento financeiro. Se você é rico, recebe mensagens sobre como terá os impostos reduzidos, e assim por diante.

Os grupos de WhatsApp, então, já nascem com “viés de confirmação”?

Sim, definitivamente. Quando você é “sorteado” para entrar em um desses grupos, é bem provável que tenha alguma disposição para concordar com o que será enviado ali. E se, por acaso, você questionar, será atacado pelos trolls. Vão pegar pesado até que você saia sozinho.

E é assim que as bolhas são criadas, onde as pessoas entram com algumas crenças em comum e terminam acreditando em teorias à la QAnon (teoria da conspiração que detalha um suposto plano secreto contra o presidente Donald Trump) e seus apoiadores. Há um efeito psicológico também: ao participar de um grupo destinado a debater ou trocar informações sobre política, as pessoas se sentem privilegiadas.

Como, afinal, são criadas as fake news?

É importante entender que as notícias falsas não nascem, de fato, como notícias falsas. Elas podem começar com uma hipótese. O primeiro raciocínio da campanha é: “que tipo de mensagem pode se converter em votos a nosso favor?”.

No caso da campanha de Donald Trump, por exemplo, verifica-se um forte sentimento anti-China. Então, você cria diferentes hipóteses – “e se a China tivesse criado o vírus?”, por exemplo – e mensagens muito parecidas, que são enviadas como teste para diversos grupos. Em uma, você fala sobre o processo de criação em um laboratório de Wuhan. Em outra, sobre como a China quer que a economia do mundo entre em colapso. E, aos poucos, vê qual delas funciona melhor.

Uma das principais mensagens que o BJP espalhou por aqui foi como os muçulmanos vão tomar o país inteiro, e que eles são mais violentos do que os outros povos. Acontece que a mensagem de que os muçulmanos vão superar a população hindu, de acordo com os dados demográficos, está longe de ser verdade.

Pegavam também cenas de violência da Síria ou do Afeganistão mostrando muçulmanos em atos violentos – mas os vídeos eram antigos ou protagonizados por pessoas aleatórias, que não necessariamente eram muçulmanas.

Como essas notícias se espalham tão rápido?

Antes de enviar qualquer mensagem, os partidos precisam criar ecossistemas online. É como funcionavam os comícios e a distribuição de material de campanha de antigamente: você tinha que ter pessoas nas ruas, ações a nível estadual e municipal, agentes em várias esferas. As redes sociais funcionam parecido: é necessário ter uma estrutura organizada.

Na Índia, os partidos criaram um monte de páginas de Facebook que não são oficialmente ligadas ao partido. Coisas como “nós apoiamos o hinduísmo” ou, a maior delas, “nós apoiamos Narendra Modi”. Criaram também vários grupos de WhatsApp descentralizados, com centenas de integrantes, interligados pelas lideranças do partido.

Isso foi metodicamente preparado ao longo de vários anos. O BJP levou pelo menos quatro anos e meio para construir esta rede, entre 2014 (quando já contava com a do Facebook) e 2018.

A maioria dessas páginas e grupos não é sequer declaradamente política. Algumas delas se disfarçam como canais de notícia ou conteúdo divertido. E aí, perto das eleições, tornam-se ativistas.

Qual é o impacto dos memes na política? 

O que há de especial nos memes é seu potencial para viralizar – e muitos deles nascem de forma orgânica a partir de opiniões. Uma mensagem muito séria acaba repercutindo apenas entre apoiadores da causa, ao passo que uma piadinha tem mais chance de ir para fora. E, como o intuito é fazer humor, ninguém espera evidências.

Um meme não muda a opinião de ninguém, mas eles fazem parte do projeto de larga escala de bombardear as pessoas com uma mesma narrativa. Se você é diariamente exposto a memes com imigrantes, por exemplo, eventualmente eles vão causar algum impacto.

Uma pesquisa mencionada pelo matemático Adam Kucharski em seu livro “As regras do contágio” mostra que as pessoas não têm acesso a tantas fake news como se acredita e que, portanto, elas não teriam tanta importância em uma eleição. Qual é sua opinião a respeito?

Primeiro, tudo depende de como você define “fake news”. As notícias falsas que pegam são atreladas a muitos elementos verdadeiros. O que há é uma informação, uma interpretação, que é tirada do contexto. Agora mesmo, vários países publicaram artigos mostrando como os chineses estão rastreando informações de políticos de diferentes países.

Em uma manchete que li, a China é responsável pelo feito. Em outra, uma empresa chinesa. Apenas uma palavra – China, chineses ou empresa chinesa – pode fazer muita diferença.

Outro aspecto importante é o tempo que as fake news levam para dar resultado. Leva pelo menos quatro ou cinco meses de contínuo bombardeamento de um mix de artigos, memes, notícias antigas, sensacionalistas e falsas em uma mesma direção para realmente haver uma mudança.

Fake news não servem para fazer a cabeça de alguém de uma hora para a outra e nem para atingir todo mundo, mas para criar um ambiente conflagrado.

A campanha do ex-presidente americano Barack Obama foi amplamente elogiada e estudada por conta do uso massivo das redes sociais. Por que ninguém viu como um problema? 

Porque até três ou quatro anos atrás ninguém realmente entendia o tipo de impacto que as redes sociais poderiam ter. Se você me fizesse a mesma pergunta naquela época, eu não seria capaz de responder. A campanha de Obama usou, sim, os métodos de microtargeting, mas não estava focada em instigar o medo ou fazer com que as pessoas lutassem umas contra as outras.

Então o que ele fazia era justo?

Não. Nunca é justo que um político tenha vantagem por enviar mais mensagens do que todo mundo, muito menos com base em dados pessoais, porque não é assim que uma democracia saudável funciona.

Mas é importante lembrar que o targeting, em si mesmo, não é necessariamente ruim. Todas as empresas que querem vender algo tentam mapear seus clientes. Todo mundo está tentando moldar sua opinião e influenciar determinada comunidade.

Outros partidos políticos não podem se valer das mesmas técnicas de microtargeting adotadas pelo BJP para reverter o jogo?

Poderiam. Acontece que o WhatsApp passou a bloquear a criação de grupos em cascata, o que foi um ótimo trabalho. O problema é que os grupos velhos continuaram, dando aos grupos que dominaram o mercado entre 2017 e 2018 uma imensa vantagem competitiva.

No livro, o senhor sugere que o WhatsApp deveria ter algum controle sobre os grupos. Mesmo que se trate de uma empresa privada, isso não pode descambar em censura ou perda de privacidade?

Não acho que deva haver controle de conteúdo e nem que se deva quebrar a criptografia das mensagens. Mas ninguém deveria ser autorizado a criar tantos grupos com contatos aleatórios e desconexos, e isso é possível de se identificar. Basta, agora, cuidar dos grupos criados antes de 2018.

Na sua opinião, qual é a melhor forma de combater as fake news? No Brasil, por exemplo, debate-se o controle de conteúdo às contas automatizadas. Qual é a fórmula mais adequada?

Contra os bots e ciborgues (contas humanas automatizadas), as redes sociais estão fazendo um trabalho razoável. Outro problema é a criação de contas anônimas, com identidades falsas, que são bem difíceis de controlar – inclusive, quando você vê uma série de comentários parecidos abaixo de postagens de marcas e políticos, saiba que são pessoas contratadas para escrever.

Ainda não temos uma boa solução para isso, tal como não temos para a distinção das notícias falsas das mal escritas, memes, artigos sensacionalistas etc.

Algo que é importante ser dito é que, pelo menos na Índia, grande parte das notícias falsas que chegam às pessoas vem da mídia tradicional – e este é um bom ponto de partida.

Não censurar ninguém, mas forçar os veículos a admitir os erros que cometeram, ao invés de só apagar tuítes. Eventualmente, as pessoas terão que aprender a construir confiabilidade sem usar estes recursos.

No livro, o senhor afirma que há notícias falsas nos “dois lados” ideológicos, mas é a direita quem detém a máquina. É justo creditar o crescimento da direita no mundo apenas às fake news, e não ao fracasso das narrativas e governos de esquerda? 

Definitivamente não. O maior componente da vitória da direita é o fracasso dos opositores nos anos anteriores. Eventualmente, este lado vai fazer tanta besteira que o outro lado vai ganhar força, e retornamos para o começo do ciclo – que sempre se repete com novas ferramentas.

Hoje, nós estamos culpando as pessoas que estão causando mais problemas do que o resto, mas a responsabilidade das fake news não é da direita. Trata-se de um problema crônico da Revolução Digital, um problema tecnológico que decorre do fato de que nós, humanos, vivemos ligados a um dispositivo móvel 24 horas por dia. A direita só adotou primeiro porque estava na oposição – e a oposição sempre faz o que estiver ao seu alcance.

Você se considera de direita? 

Honestamente, nunca me vi como alguém de direita. A razão pela qual eu entrei para o BJP e o apoiei foi por conta da agenda econômica – o que, bem, é mesmo uma parte da direita. Modi prometeu um monte de reformas e mudanças e, no texto que viralizou sobre minha saída, elogiei os avanços. O problema é que com a pauta econômica vem o preconceito religioso de castas, o ódio e o ultranacionalismo. O resultado é que a economia está entrando em colapso e ninguém sabe o que fazer a respeito.

Como sua saída do BJP foi recebida pelos seus antigos colegas? Virou anti-Índia ou comunista?

Não, ainda não sou anti-Índia e nem comunista (risos). Surpreendentemente, a maioria dos meus amigos concordou comigo e não ficou com raiva – mesmo gente de dentro. Muitos deles não podiam me apoiar publicamente porque investiram muito dinheiro e anos preciosos de suas vidas na política. Eles não podem criticar o partido ou seriam chutados.

Mas ali, no boca a boca, muita gente concordava comigo. O que, de novo, remete ao problema da tecnologia. A polarização que você vê nas redes e na televisão é algo que simplesmente não acontece em uma interação na vida real. Esta continua a ser a melhor arma para lutar contra o problema.

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