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Conheça a história de Benard Nathanson: o médico abortista que se transformou em militante pró-vida
Conheça a história de Benard Nathanson: o médico abortista que se transformou em militante pró-vida| Foto: EFE

Na década de 1970, o médico ginecologista e obstetra Bernard Nathanson, um conhecido militante da legalização do aborto nos Estados Unidos às vésperas do caso Roe vs. Wade, com mais de 60 mil interrupções de gestações no currículo – inclusive o de seu próprio filho – protagonizou as manchetes americanas com uma mudança radical e inesperada ao se transformar em um dos maiores ativistas pró-vida que já existiu.

Tudo começou quando Nathanson, que, por sua experiência e militância, chegou a receber o título de “rei do aborto”, publicou um artigo modesto na New England Journal of Medicine, um ano após a decisão da Suprema Corte que cravou a descriminalização da prática em todo o país, afirmando que já não tinha “muitas dúvidas de que a vida humana existe dentro do útero já desde os primeiros momentos da gestação”. Subitamente, todos os convites para congressos importantes e aparições na mídia desapareceram, ainda que o médico estivesse apenas começando sua jornada de conversão - que, antes de ser religiosa, foi amparada pela ciência.

Bernard Nathanson morreu aos 84 anos, vítima de um câncer, em 2011, quinze anos depois de ser batizado no catolicismo. Mais de uma década após sua morte, a medicina já avançou o suficiente para demonstrar que até mesmo os conhecimentos do “ex-rei do aborto” acerca das condições do feto dentro do útero eram superficiais, tornando o debate sobre a interrupção da gestação ainda mais urgente (à época, por exemplo, pouco se sabia a respeito da dor fetal). Ainda assim, seu relato permanece impactante. Publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1996, o livro “A Mão de Deus” foi traduzido para o português pela editora Quadrante em 2020. Leia, abaixo, alguns trechos da obra:

Na época em que eu dirigi a clínica, trabalhava ao mesmo tempo como ginecologista e obstetra, fazendo partos e viajando por todo o país a fim de pressionar legislaturas e políticos a afrouxarem suas leis (ainda não havia o caso Roe vs. Wade). Eu era muito ocupado. Quase nunca via minha família. Tinha um filho pequeno e uma esposa, mas nunca estava em casa. Arrependo-me amargamente daqueles anos, entre outras coisas porque não vi meu filho crescer. Lamento imensamente por isso, e minha ausência culminou em sérios problemas com ele. Eu era também um pária na profissão médica. Era conhecido como o rei do aborto.

Meus artigos sobre a prática, avidamente recebidos pela imprensa progressista (e até mesmo pela imprensa médica progressista), não me tornavam popular com muitos de minha profissão. O movimento em meu consultório diminuiu porque os médicos não me encaminhavam pacientes (agora que sou pró-vida, estou novamente exilado pelo meio médico: ninguém fala comigo). No fim de 1972, sentia-me exausto e queria sair da clínica. Pedi demissão.

Quando deixei a clínica e tornei-me chefe do serviço de obstetrícia do St. Luke’s Hospital, tive pela primeira vez em anos um pouco de tempo e espaço para pensar. Estou certo de que não foi coincidência – a mão de Deus estava ali presente – que estivéssemos, naquela mesma época, adotando uma maravilhosa técnica no hospital: o ultrassom, que pela primeira vez abria uma janela para o útero. Começamos também a observar o coração fetal com monitores cardíacos. Pela primeira vez, me vi pensando sobre o que de fato estávamos fazendo na clínica. O ultrassom abria um novo mundo. Podíamos agora realmente ver o feto humano, medi-lo, observá-lo, assisti-lo, estabelecer uma verdadeira ligação com ele e amá-lo. Comecei a fazer isso.

Um estudo do New England Journal of Medicine apresentou evidências do quão potente é essa tecnologia. Há cerca de dez anos, um artigo ali publicado registrou que, de dez mulheres que foram a uma clínica de abortos e viram-se expostas a fotos do feto antes do procedimento, apenas uma foi adiante. Nove deixaram a clínica grávidas, tamanha a força da ligação que ali se forma. Percebi que eu mesmo vinha formando laços com os nascituros.

Embora continuasse a realizá-lo pelo que me pareciam ser razões médicas justificadas, já não tinha certeza de que o aborto sob demanda fosse certo. Em 1974, sentei-me e escrevi um artigo para o New England Journal of Medicine. Não era um artigo pró-vida, mas nele expressei minhas dúvidas e medos quanto ao que vinha fazendo. Afirmei claramente que supervisionara mais de 60 mil mortes e disse que o feto é uma vida. Expressei que trata-se de uma classe especial de vida, mas que é vida ainda assim e, por isso, devemos ter reverência por ela.

Naquele mesmo artigo, levantei muitas questões indiretas sobre por que médicos que juravam preservar a vida realizavam abortos. Fiz perguntas, mas dei poucas ou nenhuma resposta. Teci a seguinte afirmação: “Já não há, na minha cabeça, muitas dúvidas de que a vida humana existe dentro do útero já desde os primeiros momentos da gestação, não obstante os consideráveis debates no passado acerca da natureza da vida intrauterina”.

Esta é uma afirmação que hoje, vinte anos depois, deve ser corrigida por causa das novas informações que temos sobre a genética e das tecnologias de reprodução assistida. Se estivesse escrevendo hoje, teria de dizer que a vida humana começa ainda antes, com o complexo processo da fertilização – um milagre da química, da física e da biologia molecular que ocorre dentro da tuba uterina. Quando o óvulo fecundado, dividindo-se e começando a organizar-se, entra no útero, a vida já está em ação há pelo menos três dias. (...)

A reação àquele artigo, pelo que me disseram no New England Journal of Medicine, foi a maior que já tiveram – até hoje1. Eles receberam um dilúvio de respostas e, é claro, não se deram ao trabalho de abrir as cartas – enviaram todas para mim. O carteiro me entregou enormes sacos de cartas. Não se tratava de correspondência de fãs. Vinham de médicos que, quatro anos antes, haviam me censurado por ser um abortista, mas que tinham mudado de ideia agora que o aborto havia crescido e eles estavam ganhando dinheiro a torto e a direito. Fui soterrado de ofensas, ameaças e telefonemas. Recebi ameaças contra a minha vida e a de minha família. Pensei comigo mesmo: “Bem, realmente pus o dedo na ferida. Tenho de pensar sobre isso”.

Continuei a realizar abortos ao longo de 1976. Fazia abortos e partos, mas cada vez mais sentia que a tensão moral aumentava e tornava-se insuportável. (...) Em meados dos anos 1970, num andar eu colocava solução hipertônica numa gestante de 23 semanas enquanto, no outro, havia outra gestante de 23 semanas em trabalho de parto, cujo bebê eu tentaria salvar. As enfermeiras viam-se presas ao mesmo problema, ao mesmo dilema moral. O que estávamos fazendo ali: salvando bebês ou matando-os?

Finalmente restringi os abortos que fazia àqueles que a meu ver deveriam ser realizados por razões graves. Isso foi no final dos anos 1970. Incluí entre esses motivos graves o estupro e o incesto. Durante o período, escrevi um livro chamado Aborting America. Nele, listei várias condições clínicas que poderiam justificar o aborto. Pratiquei dois ou três abortos em 1978, e então em 1979 fiz o meu último. Havia chegado à conclusão de que não havia motivo para abortos em situação nenhuma; a pessoa no útero é um ser humano vivo, e não podíamos continuar declarando guerra aos mais indefesos dos seres humanos. (...)

Quando, no início dos anos 1970, o ultrassom me pôs diante da visão do embrião no útero, simplesmente perdi minha fé no aborto sob demanda. Não lutei para conservar minhas velhas convicções. Essa mudança foi, a seu modo, uma conversão limpa e cirúrgica. Sou, por natureza, uma pessoa que avalia os dados conflitantes, pesa os argumentos opostos com grande cuidado, toma uma decisão e, então, age de acordo com ela sem olhar para trás.

Por volta de 1984, no entanto, havia começado a levantar mais perguntas sobre o aborto: o que de fato acontece nele? Já havia feito vários, mas o aborto é um procedimento às cegas. O médico não vê o que está fazendo. Ele insere um instrumento no útero, liga um motor, um aspirador é acionado e suga algo; no fim, resta um montículo de carne num coletor de gaze. Eu queria saber o que acontecia, e por isso, em 1984, disse a um amigo que fazia quinze, ou talvez vinte, abortos por dia: “Ouça, Jay, faça-me um favor. No próximo sábado, quando estiver fazendo todos esses abortos, coloque um aparelho de ultrassom na mãe e grave para mim”.

Ele o fez e, quando viu os filmes comigo num estúdio de edição, ficou tão afetado que nunca mais fez outro aborto. Embora eu já estivesse há cinco anos sem fazer um, fiquei sacudido até o fundo da alma pelo que vi. As gravações eram estarrecedoras. Algumas não eram de qualidade muito boa, mas selecionei a que era melhor e comecei a mostrá-la em encontros pró-vida pelo país.

Na época, eu estava falando em encontros assim em todo o país, e a reação à gravação foi tão intensa e dramática que acabei sendo abordado por um homem chamado Don Smith, que queria transformar minha gravação em filme. Concordei que aquela seria uma boa ideia. Foi assim que foi feito O grito silencioso, obra que iria provocar imenso furor. Ele foi exibido pela primeira vez em Fort Lauderdale, Flórida, em 3 de janeiro de 1985. A reação foi instantânea. Todos ficamos em pé de guerra, pois O grito silencioso representava uma enorme ameaça às forças do aborto e aumentava a intensidade da guerra (não se trata de um debate de fato: não debatemos uns com os outros, mas gritamos). Pela primeira vez, nós tínhamos a tecnologia, enquanto eles não tinham nada.

O grito silencioso mostrava um feto de doze semanas sendo despedaçado no útero por uma combinação de sucção e esmagamento. A imagem era tão forte que os abortistas lançaram mão de seus maiores nomes para denunciar a fita. (...) Com grande esperteza, desviaram o impacto do filme para um beco sem saída acadêmico: uma disputa sobre se o feto sente ou não sente dor durante o aborto. O gancho para o debate veio de um comentário do então presidente Ronald Reagan a respeito da dor que o feto sentiria (na verdade, o vídeo nunca mencionou o tema da dor fetal, e a mudança de foco da brutalidade nele exibida para essa discussão bastante insípida sobre a capacidade do feto de sentir dor foi uma estratégia notavelmente astuta do grupo adversário). (...)

Será que alguém que sente pouca ou nenhuma dor (um paciente sob anestesia, uma vítima de câncer submetida a uma rizotomia dorsal, um inválido crônico em uso de analgésicos potentes) teve sua pessoalidade diminuída?

No entanto, o beco sem saída da dor fetal não foi a única tática dos abortistas quando lançado O grito silencioso. Eles insistiam em dizer que o vídeo havia sido manipulado. Vários editoriais nos acusaram disso. Por fim, enviamos a fita para a Escócia, aos cuidados do dr. Ian Donald, o homem que inventara o ultrassom e que era então bastante idoso. Disse ao dr. Donald que queríamos sua opinião honesta: a fita havia sido manipulada? Disse-lhe que o New York Times publicara vários editoriais dizendo que era falsa.

Donald assistiu à fita e disse que era absolutamente genuína. Fez sobre isso uma declaração juramentada (que ainda tenho comigo). Perguntei também ao dr. Jay Kellinson, responsável pelo aborto, se o filme havia sido manipulado. "Não", respondeu. "Foi exatamente como vocês estão vendo". Apesar de todas as controvérsias, creio que O grito silencioso foi uma ferramenta poderosa. Não foi capaz de mudar a mentalidade dos legisladores, mas penso – e digo-o humildemente – que salvou a vida de alguns bebês. Ao menos espero que sim.

No momento em que escrevo isto, sou professor visitante do Centro de Pesquisa em Ética Médica da Universidade de Vanderbilt, onde estou realizando um mestrado em bioética, e ainda não estou satisfeito com as respostas banais e pouco edificantes a questões que me consomem. Já me perguntaram muitas vezes, durante minhas incontáveis palestras pelo mundo: “Doutor, se o senhor sabia que no útero havia um ser humano em crescimento, um bebê indefeso, e se sabia que o estava matando com as próprias mãos ou chefiando residentes treinados que o faziam, como, sendo um médico com um mínimo de consciência e ética, pôde aprovar esse ofício por todos esses anos?”. (...)

Há outra maneira de diferenciar o certo do errado. “Bem-aventurados os que não viram e creram”. No entanto, não tínhamos isso. Sem o valor desconcertante de uma evidência empírica irresistível, e sem o impacto emocional direto que talvez não possa ser produzido senão pela visão de um bebê humano, nenhum de nós tinha a sólida estrutura interior de uma força espiritual capaz de recordar-nos da enormidade do mal que estávamos perpetrando.

Foi neste ponto que eu, tendo sido confrontado com essa revolução empírica, com essa quantidade cada vez maior de dados novos, comecei o doloroso processo de mudar minha opinião quanto à aceitabilidade do aborto. Havia finalmente aceitado a mudança de paradigma.

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