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Tirania do Mérito, de Michael Sandel: mundo dividido entre os especialistas benevolentes que sabem o que é melhor e os ignorantes que devem obedecer
Tirania do Mérito, de Michael Sandel: mundo dividido entre os especialistas benevolentes que sabem o que é melhor e os ignorantes que devem obedecer| Foto: Reprodução

“Ninguém solta a mão de ninguém” foi o lema que, em 2018, mobilizou parte da oposição à eleição do presidente Jair Bolsonaro. Ao anúncio do começo da pandemia do coronavírus, em março de 2020, as mesmas redes pregavam: “estamos todos juntos nessa”. A essa altura do campeonato, com grandes economias combalidas pela crise e a discrepância entre os recursos da elite e dos trabalhadores, a Covid-19 escancarou que, se a conversa solidária nunca convenceu sequer aos seus próprios proponentes, quem dirá aos mais fracos que tão avidamente eles dizem defender? O que, afinal, aconteceu com o bem comum?

Do alto de seu palanque na Universidade de Harvard, onde leciona disciplinas concorridíssimas desde 1980, o filósofo americano Michael Sandel, autor do best-seller internacional “Justiça: O que é fazer a coisa certa” (Ed. Civilização Brasileira), oferece caminhos para a resposta, que jaz no coração do sonho americano de que se, se você tentar, pode chegar literalmente onde quiser: a meritocracia. Até aí, espera-se que a obra seja mais uma explicação óbvia de por que a maioria dos ricos já nasceu rico e a maioria dos pobres continuará pobre. Sandel, entretanto, entrega uma análise diferente: a nova ordem meritocrática resultou em um mundo dividido não apenas entre abastados e desvalidos, mas entre os inteligentes que merecem governar e os incapazes que devem obedecer.

Já nas primeiras páginas de “A Tirania do Mérito — O que aconteceu com o bem comum?” (Ed. Civilização Brasileira), entretanto, o leitor é apresentado ao fio condutor que torna o novo livro de Sandel equiparável aos sucessos prévios do autor: e se essa mesma esquerda progressista, que tanto se arvora defensora dos oprimidos, na verdade, desprezasse a classe trabalhadora? E se essa arrogância travestida de cuidado estivesse minando qualquer possibilidade de coesão social, o diálogo necessário para enfrentar a pior crise do século? E se a meritocracia ajudasse a explicar por que o abismo entre cientistas gabaritados, tecnólogos, “especialistas” disso ou daquilo, com longos currículos Lattes e importantes títulos acadêmicos, e o povo parece se tornar cada dia maior?

Da universidade ao topo do mundo

Partindo de uma longa análise sobre a história do mérito - desde os conflitos religiosos entre católicos e protestantes envolvendo a salvação “pelas obras ou pela graça” ao surgimento da teologia da prosperidade -, Sandel chega ao que considera a chave para a grande corrida meritocrática que se transformou o mundo globalizado: as grandes universidades. Perturbado pela concentração do conhecimento exclusivamente nas mãos da aristocracia, em 1940, James Bryant Conant, reitor da Universidade de Harvard, decidiu, segundo um biógrafo, “destituir a elite estadunidense antidemocrática existente e substituí-la por uma nova, formada por pessoas inteligentes e bem treinadas (...), vindas de todas as camadas e de todos os contextos”.

Nascia assim o rigorosíssimo processo de seleção de Harvard, copiado pelas instituições que hoje compõem a Ivy League. Daí para frente, diz Sandel, o mundo seria dos “vencedores”, qualquer um capaz de dar o sangue pelo sonho americano. O autor recorda, aliás, que, embora o discurso meritocrático seja uma “pecha” da direita, dado que entre seus mais ferrenhos defensores estiveram o ex-presidente Ronald Reagan e a premiê britânica Margaret Thatcher; líderes do Partido Democrata, nos Estados Unidos, e do Partido Trabalhista, do Reino Unido, também o encamparam ao longo das últimas décadas. Ainda que prometessem equalizar as oportunidades, Tony Blair, Bill Clinton, John Kennedy e, principalmente, Barack Obama, levaram às últimas consequências a ideia de que, resolvidas as disparidades de ingresso (seja por condição econômica, sexo ou raça), o mérito pessoal é tudo o que importa, e a credencial universitária seria sua melhor régua.

Longe de se converter em melhorias concretas para a vida dos trabalhadores, o resultado desta equação é o novo “nós contra eles”: um mundo dividido entre os especialistas benevolentes que sabem o que é melhor e os ignorantes que devem obedecer. Sandel aponta que a semelhança entre as equipes de Kennedy e de Obama, que “compartilhavam da Ivy League e de certa arrogância e distanciamento em relação à vida diária da maioria dos estadunidenses”. Os membros desta casta, diz o autor, embora condenem o racismo e o sexismo, “não se arrependem dos comportamentos negativos direcionados a pessoas com menor formação educacional”.

Não à toa, em 2016, a então candidata democrata Hillary Clinton disse que metade dos apoiadores de Donald Trump são “um bando de deploráveis”. Destituídos de qualquer dignidade por parte dos que juram advogar pelos oprimidos que, na prática, culpam os pobres pela própria condição de ignorância, resta aos “perdedores” o ressentimento.

A nova aristocracia

É difícil ler “A Tirania do Mérito” sem lembrar do professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, Patrick J. Deneen, autor de “Por que o liberalismo fracassou?”. Há um mês, Deneen escreveu sua própria crítica à obra de Sandel, afirmando que, embora faça críticas cruciais à esquerda progressista em seu diagnóstico da arrogância meritocrática, o filósofo peca ao não reconhecer, por exemplo, o papel que as políticas de identidade têm na manutenção deste status quo, fomentando uma diversidade aparente mas, na prática, ajudando a descolar líderes potenciais de suas comunidades locais, e sem nunca contribuir, de fato, para a promoção da dignidade para todos.

Esta é, segundo Deneen, a consequência palpável do liberalismo que perverte o sentido original da liberdade: ser livre dos próprios vícios em nome do bem comum, não fazer o que bem entender. "Cada vez mais os estudantes de hoje entram na faculdade unicamente pensando em sua aplicação ‘prática’, o que significa dizer em sua relevância direta para suas aplicações econômicas e técnicas, completamente inconscientes da existência de um modo mais amplo de compreender a palavra ‘prático’, que inclui a maneira como a pessoa vive como cônjuge, pai, vizinho, cidadão e ser humano". escreve Deneen.

Há que se lembrar também que o livro de Sandel foi lançado em setembro de 2020, o que faz pensar como o autor interpretaria a eleição do presidente Joe Biden à luz de suas teorias. Para o público brasileiro, é preciso reconhecer mais algumas limitações: apesar de ser possível traçar um paralelo entre as circunstâncias, o autor não fala sobre a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Também é difícil transpor o diagnóstico da corrida educacional americana com as universidades brasileiras, que são efetivamente públicas e já contam com sistemas de cotas sociais e raciais. Mesmo assim, pesquisas indicam que, na prática, os mais pobres continuam a pagar pela educação dos mais ricos.

Apesar das faltas, Michael Sandel guarda o mérito de esmiuçar um problema contemporâneo que raramente chega ao mercado de forma tão didática. A solução proposta pelo autor ao final da obra passa longe de desmoralizar o ensino superior ou o conhecimento científico: além de outras medidas passíveis de debates no campo econômico, Sandel propõe a democratização não apenas das oportunidades, mas da dignidade do trabalho; tanto na forma de políticas públicas que sinalizem o valor do trabalho quanto na inserção das classes mais baixas no debate cívico - não como “coitados” que requerem orientação e cuidados paternais da casta, mas como indivíduos dotados de consciência, liberdade e, não raramente, sabedoria da vida comum.

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