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Em "Coringa", a paleta de cores é tão importante quanto o roteiro e a interpretação de Joaquin Phoenix para compor o icônico personagem.
Em “Coringa”, a paleta de cores é tão importante quanto o roteiro e a interpretação de Joaquin Phoenix para compor o icônico personagem.| Foto: Divulgação

O cinema nasceu preto e branco e teve sua primeira revolução de linguagem com a chegada das cores. Desde figurino, iluminação, objetos cênicos e filtros de pós-produção, as famosas paletas de cores, aliadas ao roteiro, trilha e fotografia, são o que dão o tom da história e ajudam a transmitir as emoções dos personagens, sendo um recurso mais que vital para que diretores de cinema consigam fazer com que o público se conecte com a obra de uma maneira sensorial.

Dentro das opções das matizes de cores, a equipe de direção de arte e fotografia pode transitar entre a saturação (intensidade da cor) e o valor (escuridão ou luminosidade), conseguindo dessa forma trabalhar com um amplo espectro de cores que ajudam na construção narrativa para afetar o emocional e o psicológico do público de uma maneira quase que inconsciente.

Na recente obra cinematográfica Coringa, do diretor Todd Phillips, as cores são primordiais para entendermos o desenvolvimento psicológico do personagem Arthur Fleck até a sua transformação em Coringa, o épico príncipe do crime de Gotham City e arqui-inimigo de Bruce Wayne.

Atenção, a partir de agora esse texto contém spoilers. Então, se você ainda não assistiu ao filme, salve o link para ler mais tarde. 

Na cena de abertura, Arthur está se maquiando para ir à rua fazer propaganda na fachada de uma loja que está em falência. Ele é empregado no "Haha's", uma agência decadente de palhaços. Temos uma cena silenciosa que utiliza apenas a interpretação facial de Joaquin Phoenyx e as cores para nos situar sobre a vida infeliz do personagem.

As matizes das cores principais da personalidade do Coringa já são mostradas logo no início pela sua maquiagem e iluminação do cenário. O verde representando a solidão, a melancolia e o perigo, o azul representando a tristeza e a frieza, o amarelo representando a loucura e a vingança e ao mesmo tempo passando a sensação de calor e vividez; e, por fim, o vermelho, representando a violência, a intensidade e o poder. Essas são as matizes que se repetem em diferentes intensidades até a última cena do longa-metragem.

O verde e o amarelo usados na iluminação da primeira cena passam a impressão de um ambiente sombrio pelo baixo valor de luminosidade. É um cenário escuro. Parece que Arthur se sente solitário e incomodado ali sentado na frente do espelho, isolado dos colegas que conversam ao fundo. Ele tenta forçar uma expressão de felicidade e acaba derramando uma lágrima que escorre pela maquiagem azul, marcando seu rosto. O azul é a cor que representa sua tristeza, usada principalmente sob seus olhos.

Arthur é um homem miserável e isso fica claro em seu figurino surrado, repetitivo e com cores apagadas, mas é interessante perceber que, mesmo quando os tons pastéis mais opacos são usados com a intenção de transmitir a falta de vividez do personagem, eles ainda preservam as matizes mais amareladas e esverdeadas nas roupas.

Ele repete os tons pastéis em diversos momentos e em cenas de frustração e decepção. Essas cores, aliadas à interpretação corporal do ator, dão a impressão de que ele está apenas existindo nesse mundo, que lhe falta alegria e vontade de viver. Um elemento constante em seu figurino é uma jaqueta de tom pastel amarelada, que passa a impressão de roupa "encardida". Esse elemento também é uma referência ao figurino do personagem Travis Bickle no início do filme Taxi Driver, do diretor Martin Scorsese.

Em uma das sequências mais espetaculares de Coringa, composta por três atos, Arthur reage pela primeira vez a um espancamento que estava sofrendo dentro do metrô após ser demitido. O elemento principal de seu figurino é um colete amarelo, uma mensagem semiótica nos dizendo que a loucura está presente em seu corpo. A iluminação mais uma vez é focada na melancolia e na solidão do tom esverdeado, com algumas quedas de luzes para causar a sensação de perigo, de que algo ruim está prestes a acontecer.

E acontece. Arthur comete seu primeiro assassinato triplo atirando em seus agressores. No ato seguinte, já fora do metrô, ele corre pelas ruas vazias e temos uma iluminação saturada no amarelo, nos passando o desespero e insanidade que tomam conta do personagem naquele momento. Encontrando refúgio em um banheiro qualquer, Arthur se esconde e a partir daí temos uma iluminação super saturada no verde, combinada com o amarelo ao fundo, para uma das cenas mais marcantes e perturbadoras do filme. Isolado do mundo e completamente anestesiado com o que acabou de fazer, Arthur dança com o sangue das suas vítimas em seu corpo pela primeira vez e termina se encarando no espelho com os braços estendidos. Ele experimenta pela primeira vez a sensação de poder.

O icônico hospital psiquiátrico que serve de prisão para os maiores vilões de Gothan City, o hospício Arkham, também segue as duas matizes mais recorrentes de Arthur Fleck em seu exterior e interior. Por fora, um cenário de cores frias, com um esverdeado puxando para o azul, o que cria uma sensação de frio e tristeza, com uma iluminação amarelada sutil. Já por dentro, temos um cenário completamente amarelo, desde suas paredes até objetos cênicos, o que combina perfeitamente com o fato de ser um manicômio, um local onde a loucura é intensa, constante e está por todos os lugares. A cor das paredes do interior de Arkham também conversa com o elemento principal do figurino de Arthur naquele momento, a jaqueta surrada de tom pastel.

Após uma sequência de descobertas traumáticas e assassinatos impulsivos, Arthur Fleck aceita sua loucura e abraça seu lado violento. Ele tinge o cabelo de verde, faz sua maquiagem típica de vermelho e azul e surge pela primeira vez com o figurino do Coringa: um terno vermelho vivo e intenso, o colete amarelo e uma camisa verde. O cenário da escadaria, palco de outra cena icônica do longa, ganha uma nova iluminação com a transformação de Arthur.

Antes víamos o personagem curvado para baixo, subindo aquelas escadas que pareciam cansativas, com expressões tristes em seu rosto como o tom azulado do ambiente. Depois, quando aceita sua violência, assistimos à descida coreografada do Coringa. Mais uma vez ele dança e desce a escadaria agora leve, vaidoso, confiante, sob um cenário bem iluminado e quente sob as matizes do verde e do amarelo.

Arthur Fleck sonhava desde criança em ser um comediante de stand-up. Ele é fascinado pelo humorista Murray Franklin, personagem de Robert De Niro que faz referência a outro filme de Martin Scorsese, O Rei da Comédia. Arthur tem Murray, durante a maior parte da história, como seu maior ídolo, chegando a ter alucinações de momentos paternais com ele, mas acaba virando chacota nacional no programa de que sempre quis participar.

Após uma cena de cores frias em que ele se isola dentro de uma geladeira em uma tentativa de suicídio, Arthur acaba recebendo uma ligação inesperada para participar do programa de Murray. As cenas seguintes dão a entender que sua intenção era cometer suicídio ao vivo no programa. Minutos antes de ser chamado para entrar no palco, Arthur assiste pelos bastidores à exibição de um vídeo em que ele tem uma crise nervosa muito constrangedora ao tentar apresentar o texto no que trabalhou por tanto tempo na esperança de conseguir se tornar finalmente um comediante de stand-up.

Nesse momento, vemos a depressão tomar conta do personagem pela luz saturada em azul que quase apaga as outras cores em seu rosto e corpo. Ao fundo temos um azul escuro junto com o amarelo que passa quase em degradê para o vermelho. Talvez tenha sido o primeiro momento em que o personagem percebe que não valeria a pena cometer suicídio, pois sua vida miserável, como ele mesmo diz depois para Murray, "não passa de uma comédia".

O segundo momento é durante a entrevista, quando ele lê uma anotação em seu caderno dizendo "só espero que minha morte faça mais sentido do que minha vida". Essas cenas marcam a frieza, a loucura e a violência do que acontece nos próximos minutos.

Quase no final, já reconhecido como "O Coringa", Arthur é aclamado pelos saqueadores, anarquistas, assaltantes e assassinos que tomaram as ruas de Gothan City em um motim contra o sistema. Ele é elevado como o símbolo daquele caos e mais uma vez dança. Arthur percebe que aquele é o público que tanto procurou para dar algum sentido à sua existência naquele mundo que o tratou tão mal. Ele usa o sangue em seu corpo, decorrente de um acidente de carro, como tinta para desenhar seu sorriso. Este talvez seja o momento mais aterrorizante do filme, a própria natureza do mal marcada com o sangue do personagem em vermelho vivo. Mais uma vez ele estende os braços em um gesto de poder enquanto a cidade pega fogo.

Na próxima vez que assistir a Coringa, fique atento à colorimetria da obra. Você vai se maravilhar ao perceber a quantidade de informações sobre a mente do personagem presente na iluminação, no figurino, nos cenários e poderá até entender melhor a transformação de Arthur em Coringa através de suas cores.

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