Aos 41 anos, o humorista Danilo Gentili é um colecionador de polêmicas, desafetos artísticos e políticos, prêmios de humor e pontos de audiência. Há seis anos à frente do programa The Noite, no SBT, Gentili permanece um crítico ferrenho do politicamente correto e, nesta segunda-feira, foi anunciado vencedor do Prêmio Ibest, que condecora as melhores iniciativas do universo digital brasileiro.
Natural de Santo André, o paulista fez carreira no stand-up comedy ao lado de figuras como Fábio Porchat e Dani Calabresa, de quem ouviu em primeira mão os relatos escabrosos sobre os abusos cometidos pelo humorista Marcius Melhem, escândalo revelado pela revista Piauí. O acusado esteve entre os que, no ano passado, defenderam o decreto que pediu a prisão de Gentili, por conta de uma piada sobre a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). Por telefone, Danilo falou à Gazeta do Povo sobre o caso Melhem e sobre o humor em tempos de sinalização de virtude.
Você publicou no seu Twitter que já sabia sobre os casos de assédio sexual praticados pelo humorista Marcius Melhem. A reportagem da revista Piauí o surpreendeu?
Não porque eu já conhecia todos os detalhes. No final do ano passado, a [Dani] Calabresa me chamou para jantar e me contou tudo. Nós já conversávamos a respeito por WhatsApp, ela me contava como estava sendo boicotada. Mas quando fomos jantar ela me relatou tudo o que está na reportagem.
Você tinha conhecimento de outros casos?
O que a Dani me relatava é que havia muitas outras vítimas. Você vê que a história toda veio à tona quando acabou o núcleo do humor da Globo. Depois que o Marcius Melhem perdeu poder, apareceu um monte de gente relatando coisas que a Calabresa já dizia enquanto estava lá. Acho-a muito corajosa por isso. Ela não esperou o poder do Marcius diminuir para fazer a denúncia. Mas prefiro não falar muito sobre esse caso porque ele não é meu. Fico zoando na internet o que veio a público, mas a protagonista é a Calabresa, não posso tomar isso dela. Sou só um amigo com quem ela conversou.
Na internet, Melhem e você sempre trocaram farpas. De onde veio isso?
Eu vi o Marcius pouquíssimas vezes. Eu o conheci em um festival de humor de Curitiba, o Risorama, e relato essa história em um vídeo do meu canal [no vídeo em questão, Gentili conta que Melhem o ouviu contar uma piada que usaria no show e, na mesma noite, se antecipou ao colega, subiu ao palco e fez a mesma brincadeira].
Aquela foi a primeira vez que o vi e tive uma má impressão dele, porque roubou minha piada em uma noite em que ele nem ia se apresentar. Tenho muitos amigos aí que falavam que ele não é flor que se cheire. Eu mantinha certa distância. Até que fui condenado à prisão e ele aparece engrossando o coro do linchamento, justificando a censura da Maria do Rosário. Eu nunca entendi isso, sabe? Como que artista e comediante endossa censura, se já já ela pode respingar em você
Mas houve artistas mais à esquerda que o defenderam na ocasião, não?
Houve, sim. Mas uma coisa que percebo é que essas defesas dependem muito do grau de engajamento que esses artistas têm diretamente com os agentes censores. Como o Marcius Melhem de fato é um militante do PSOL, tem ligação com o Marcelo Freixo e é da turminha do Leblon, eles não têm problema em se contradizer e defender valores que vão contra a categoria deles. A prioridade é defender a agenda política com a qual estão engajados.
Por isso, quando é decretada a minha prisão por causa de uma piada, o Caetano Veloso e a Paula Lavigne endossam. Para qualquer pessoa do mundo real isso parece um absurdo. Esse não é o cara que cantava que é proibido proibir? Não é o cara que lutava contra a censura na ditadura? Acontece que ele tem uma prioridade, que é defender a agenda política na qual eles são engajados. Como foi o PT quem me censurou, eles precisam aprovar. Essa foi a grande armadilha na qual o Marcius Melhem caiu: em vez de fazer humor, começou a querer mostrar que era engajado, que iria mudar o humor. Esse pessoal sempre acaba caindo em contradição.
Um dos principais argumentos de defesa do politicamente correto é que as piadas voltadas a certos grupos identitários que sempre foram alvo de chacota reforçam estereótipos e contribuem para que essas pessoas continuem a ser maltratadas. O humor não deveria se preocupar com isso?
Você assiste “Psicose” e diz “olha, é um assassinato aqui”? Acha que isso vai estimular uma pessoa a sair esfaqueando mulher no banho? Como você vai contar a história da Alemanha nazista sem mostrar o antissemitismo? O abominável é permitido na ficção e a piada é uma obra de ficção. Ainda que curta, ela é uma obra literária: tem uma estrutura própria que é fácil de identificar. Ela tem um set up, tem um punch, um conceito.
Costumo comparar também com o UFC. Se eu sair na rua e der uma porrada na cara de alguém, isso é abominável. Se entro num ringue e ali há um monte de pessoas que pagaram para ver aquilo porque gostam, a coisa não deixa de ser violenta, mas o contexto é outro.
Culpar o comediante pelo preconceito é como culpar o Alfred Hitchcock por homicídio, ou culpar o Vanderlei Silva porque um espectador de UFC entrou numa briga. O problema é a descontextualização que se faz. Não quero viver em um mundo onde a piada é a mesma coisa que a vida real. Isso não é saudável.
O pessoal progressista fala tanto em progredir e eu acho que isso é uma regressão gigantesca porque, para mim, essa divisão é muito clara. Na comédia a gente ri, na vida real a gente respeita. As pessoas que tentam forjar que a piada equivale à vida real estão causando uma confusão. Acho até que o Marcius Melhem serve de exemplo aqui, porque é o cara que mais fez discurso bonitinho, que segurou cartaz de “não mereço ser estuprada” e dizia que fazia humor antimachista. Quem não separa o humor da vida real pode acabar fazendo m**** de verdade.
Atualmente, essa postura é predominante no humor?
Não frequento mais os camarins de stand-up, que são minha raiz, porque o The Noite me toma muito tempo. Quando eu frequentava, as coisas eram diferentes. Essa histeria ascendeu de uma maneira muito rápida. Poucos anos atrás, nos bastidores, a coisa mais normal do mundo era estar eu, um cara pobre de Santo André, o Diogo Portugal, que veio de Curitiba e tinha uma situação melhor, a Nanny People, uma drag queen, o Bruno Motta que é gay, o Robson Nunes que é negro, a Cris Paiva que era mulher, todos rindo juntos.
Não havia problematização alguma da parte de um ou de outro e todo mundo se respeitava. Só estávamos preocupados em fazer as pessoas rirem. Quando começa a entrar a militância no humor sinto que azeda, começa a entrar um ressentimento e um clima no qual as pessoas estão mais preocupadas em mostrar suas virtudes do que realmente ajudar quem precisa. Daí acabam falando umas coisas óbvias tipo “racismo é feio, hein?”. Sim, racismo é feio e quem me ensinou isso foi meu pai. “Não podemos desrespeitar as mulheres nem forçá-las a fazer nada”. Sim, isso está no Código Penal. Qualquer presidiário considera que o crime do estuprador é mais hediondo do que um assalto a banco.
Não é possível fazer um humor menos ofensivo?
Não existe humor criado em laboratório. O humor é uma extensão da natureza humana. Você não pode domar a natureza em laboratório e dizer “agora todo mundo é do bem”. Todas as vezes que alguém tentou fazer isso terminou em paredão. Esse negócio que o Marcius Melhem falava de fazer um humor do bem, fazer um humor que não ofende, é uma grande bobagem.
Veja Aristófanes, o pai da comédia: zoava o grego e o estrangeiro, o político e o civil, o homem e a mulher, o escravo e o livre, o rico e o pobre, ele mesmo e a figura de poder acima dele. Não à toa foi morto. O pessoal fala muito de socialismo, mas o humor é a coisa mais socialista que existe: ele distribui igualmente as misérias humanas. Tá aqui, ó. Todos são iguais perante o humor. Todo mundo é risível.
A segunda coisa da natureza humana à qual o humor diz respeito são os pontos de tensão, e o engraçado é que esses caras colocam holofote nos assuntos que eles mesmos determinam que não se pode falar. Se alguém diz que é tabu mexer com isso, a natureza do humor vai naturalmente apontar para lá. Perceba: ninguém mais faz piada de freira e de padre, porque é piada velha. Há cinquenta anos todo mundo fazia essa piada no buchicho. Agora é cafona.
Assim como ninguém liga mais para piada de português, mas talvez no Império fosse tabu. Se alguém diz “esse tema está proibido”, é exatamente aí que os comediantes vão mirar – ou, ao menos, os que estão buscando o riso. É isso que quem tem uma agenda não entende.
Alguma vez você já achou que foi longe demais com uma piada?
Muitas vezes. Mas isso é normal para quem trabalha com criatividade. Outro dia vi o Oliver Stone dizendo que Alexandre, O Grande foi um exagero da carreira dele, que não devia ter feito. A grande contribuição que o stand up comedy trouxe foi forçar o comediante a fazer as próprias piadas. Quando você cria, está fadado a falhar. Você só sabe que a piada deu certo quando alguém dá risada. Como você vai saber se não testar? A alternativa seria voltar às piadas prontas, esquematizadas, de antigamente. Embora eu ache que hoje até um assediador ficaria escandalizado com as piadas do Costinha.
Você pode contar uma piada da qual se arrependeu?
Acho que errei quando meu público não dá risada, e tenho um caso da semana passada. Fiz um show no qual testei um texto novo e a premissa do set de piadas que fiz era a seguinte: acho engraçado os atores da Globo que dizem que são contra a gordofobia. Fui brincar por causa daquelas meninas que dizem “vai ter gorda na praia”. E eu penso “mas nas praias que eu ia o que mais tinha era gorda”.
Minha premissa era que sempre que aparecem essas gordas de biquíni, surge um ator da Globo comentando “que linda, maravilhosa”. Mas só vejo essa turma com modelo, nunca vi nenhum deles com gorda. Escrevi umas vinte piadas sobre isso. De umas, cinco riram. Das outras, quinze não riram. Me arrependo de ter contado essas quinze. O que eu faço? Tento corrigir, com base nas outras que deram certo, ou jogo fora.
Em 2016, você foi condenado a indenizar a sra. Michele Rafaela Maximino, a “maior doadora de leite do Brasil”, por uma piada de 2013. Este ano, entrou com um recurso extraordinário no STF contra a sentença. Qual é a sua defesa do caso?
Esse caso eu perdi no dia em que noticiaram que eu chamei uma doadora de leite de vaca. Isso nunca aconteceu.
Na época, eu estava na Band e sempre instruí minha equipe de roteiristas a procurar piadas nas notícias, partindo do princípio que são informações públicas. Portanto, não estaríamos expondo nem invadindo a privacidade de ninguém. Sempre pedia que eles buscassem notícias em um site chamado Mundo Bizarro, de que eu gostava justamente por já trazer notícias naturalmente exageradas.
Deste site, saiu a notícia que minha equipe pegou para fazer piada: “Mulher brasileira tenta entrar no Guiness Book como a maior doadora de leite do mundo”. Havia também uma foto dela, que provavelmente ela mesma tinha fornecido. Aquilo já estava virando meme, e a notícia tinha um viés cômico, não dramático ou de filantropia.
Passaram-se muitos dias e apareceu uma notícia dizendo que Danilo Gentili chamou uma doadora de leite de vaca. Começou com a Carta Capital e depois vieram os blogs de esquerda - esses que viraram alvo da Lava Jato. Eu botava o trecho, mostrava o monólogo, mas não teve jeito. De uma hora para outra, a brasileira que queria entrar no Guiness virou uma filantropa pobre que estava com o leite seco porque eu tinha chamado de vaca e as pessoas na rua estavam chamando também.
Aí veio o julgamento. Por mais que se diga que não, a partir do momento que circula que chamei uma doadora de leite de vaca, surge uma imensa pressão para que eu seja condenado. Todos os argumentos que apresentei perdem o valor. E nem fui o primeiro a brincar.
Muita gente diz que a ascensão de Jair Bolsonaro se deu muito por conta dos programas de humor que lhe deram espaço. Não acha que devia ter pegado mais pesado com o Bolsonaro candidato?
Não acho que o Bolsonaro cresceu por causa dos programas de humor. Na mesma leva que zoaram com ele, zoaram o Jean Wyllys (ex-deputado federal pelo PSOL). Era um momento que havia um Yin e Yang ali, duas figuras caricatas se digladiando. Sempre que eu ia lá pelo CQC, perguntava alguma coisa para o Bolsonaro e perguntava o mesmo para o Jean Wyllys. Você acha mesmo que foi um programa de humor que elegeu o Bolsonaro e não o fato de o PT ter quebrado o país? Que não foi a perseguição incessante da patrulha politicamente correta?
Quem melhor definiu esse cenário, para mim, foi o Eduardo Jorge, naquela entrevista clássica para o Roda Viva, na qual ele diz de quem Bolsonaro é obra [no vídeo, Jorge afirma que Bolsonaro é obra do Lula]. Concordo “1000%” com ele. A gente estava vendo patrulhamento do jornalismo, havia uma lista negra do PT que passou batido pela imprensa. Teve tudo isso. O único candidato esperto o suficiente para capitalizar em cima desse sentimento que grande parte dos brasileiros tinha foi o Bolsonaro.
E como é fazer humor com o bolsonarismo no poder?
Como é fazer humor com qualquer militância política. Se você for no meu Twitter, tem um vídeo fixado lá de antes de o Bolsonaro assumir. Falo que qualquer militância política é idiota e sempre serei contrário a isso. Se você olhar minha timeline, vai ver que sou alvo constante dos bolsonaristas. Tinha um monte de fake enchendo meu saco, pedindo minha cabeça, igualzinho tinha com o PT.
Na prática, faço o mesmo que fazia com o governo anterior. A diferença é que, quando faço piada com o atual governo, não tenho o patrulhamento mainstream doido pra me pegar na esquina. Há a patrulha da militância bolsonarista, não da mídia. Mas eu já tinha percebido isso quando o Temer assumiu e fiz um Halloween vestido de Michel com o Diguinho de Marcela. Alguém me perguntou qual era a diferença entre ele e a Dilma. E respondi que a diferença é que, se eu passasse um Halloween vestido de Dilma, eu seria machista. Como eu estava zoando a mulher do Temer, não tinha problema nenhum. Por isso digo que o politicamente correto não é sobre o que você diz, mas sobre quem você diz.
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