Quem viveu a época da Cortina de Ferro imposta pela União Soviética e testemunhou o seu colapso do comunismo no Leste Europeu, logo depois da queda do Muro de Berlim, certamente se lembra da remota Albânia. O país talvez tenha sido a mais misteriosa destas ditaduras socialistas, a mais bem-escondida pela Cortina, e cujo “supremo líder”, Enver Hoxha, já causava estranheza aos ocidentais pela peculiar grafia de seu nome (pronuncia-se “Hôdja”, a propósito).
Para se ter uma ideia, em 1984 a Albânia era o terceiro país mais pobre do mundo, e Tirana a capital mais pobre da Europa. No país inteiro existiam somente 1.265 carros. Em compensação, seu litoral tinha centenas de milhares de bunkers que, com a queda do regime comunista, passaram a ser usados para armazenar comida para animais, como casas para moradores de rua, para encontros amorosos e até como banheiros.
País sem comunismo
O mais curioso é que, até a década de 1920, a Albânia era o único país dos Bálcãs sem um partido comunista. Foi preciso que seguidores de um bispo ortodoxo se reunissem na União Soviética para que surgisse o primeiro Partido Comunista da Albânia. O bispo era Fan Noli, então primeiro-ministro do país, obrigado a se exilar depois de um golpe de Estado que o sentenciou à morte. Com apoio e financiamento, claro, da Internacional Comunista, o partido nasceu.
Disputas internas, algo tão comum aos partidos de esquerda da época, no entanto, impediram a existência do partido em território albanês, bem como sua atuação lá. Na Segunda Guerra, mais especificamente em 1941, quando a Alemanha nazista invadiu a União Soviética, o ditador iugoslavo Josip Broz Tito, temendo pelos rumos de seu vizinho ao sul, decidiu enviar dois emissários de seu próprio partido comunista para abrir lá uma “filial”.
Na época, a Albânia era uma monarquia ocupada militarmente pela Itália fascista e cujo rei, Zog, vinha tentando implementar um tanto quanto autoritariamente reformas para tirar o país de sua condição socioeconômica praticamente feudal. Hoxha foi escolhido pelos comunistas como o representante dos muçulmanos da cidade de Korça, uma espécie de “capital cultural” do país.
Burguês de alma comunista
Como todo bom líder socialista, Hoxha estava longe de ser um herói proletário. Filho de um comerciante de roupas de família tradicional muçulmana, ele recebeu o mesmo nome de um paxá turco, célebre líder revolucionário do Império Otomano, do qual a Albânia fez parte por séculos e que legou uma herança islâmica forte até hoje. Ele estudou no Liceu Francês da sua cidade natal e, segundo algumas fontes, na Escola Técnica Americana da capital, Tirana, antes de ganhar uma bolsa para estudar Biologia na Universidade de Montpellier, na França. Depois de uma temporada em Bruxelas, onde trabalhou na embaixada local, Hoxha voltou para sua terra natal, onde passou a viver dando aulas.
A invasão da Albânia pelas tropas de Mussolini mudou os rumos da vida do futuro ditador. Hoxha foi demitido de seu posto depois de se recusar a fazer parte do Partido Fascista Albanês e abriu uma tabacaria em Tirana. O lugar passou a servir como quartel-general da célula comunista. Foi lá que ele recebeu os emissários de Tito. Hohxa, então, tornou-se um dos líderes do Comitê Central do Partidão local e comissário político do Exército de Liberação Nacional, escrevendo um célebre texto convocando os camponeses a lutar contra o fascismo.
Com a rendição dos italianos aos Aliados, vieram as tropas alemães, que foram expulsas em 1944, depois de batalhas sangrentas em que os iugoslavos tiveram um papel crucial. Mas essa lua-de-mel com Tito estava fadada a durar pouco, porque o ditador vizinho não só se recusou a ceder o Kosovo para o projeto da Grande Albânia idealizado por Hoxha e seus camaradas, como queria que a própria Albânia fosse absorvida pela Iugoslávia. Em 22 de outubro, um governo provisório foi decretado, tendo Hoxha como primeiro-ministro. O novo governo instaurou rapidamente um tribunal para julgar os “inimigos do povo”.
Hohxa <3 Stalin
O rompimento com a Iugoslávia trouxe a Albânia para a esfera soviética e, em 1947, Hoxha brilhou ao se encontrar com seu grande ídolo, Stalin. “Em 14 de julho de 1947 cheguei em Moscou como chefe da primeira delegação oficial do Governo da República Popular da Albânia e do Partido Comunista da Albânia numa visita amistosa à União Soviética. A alegria de meus camaradas e eu (...) era indescritível. Desde que tomamos contato com a teoria marxista-leninista, sempre sonhamos, noite e dia, em conhecê-lo. (...) O dia de meu primeiro encontro com Josef Vissarionovitch Stalin será inesquecível", escreveu ele anos mais tarde.
Quando finalmente o sonho se realizou, Hohxa registrou: "Foi 6 de julho de 1947, o terceiro dia de nossa estada em Moscou. Foi de cara um dia extraordinário: de manhã fomos ao Mausoléu do grande Lênin, onde inclinamos nossas cabeças em respeito profundo diante do corpo do líder brilhante da revolução, diante daquele homem cujo nome e cuja obra colossal estava gravada tão profundamente em nossas mentes e corações, e nos tinha iluminado no caminho glorioso de nossa busca por liberdade, revolução e socialismo. E foi neste mesmo dia, repleto de impressões e emoções indeléveis, que fomos recebidos pelo discípulo e fiel continuador das obras de Lênin (...). Depois de alguns minutos trocando os cumprimentos iniciais, nos sentimos não como se estivéssemos falando com o grande Stalin, mas sentados com um camarada que já conhecíamos e com quem já tínhamos falado muitas vezes. (...) Stalin fez algumas piadas e então começou a falar com afeição e grande respeito sobre nosso povo, sobre suas tradições militantes do passado e seu heroísmo durante a Guerra de Liberação Nacional”.
Foi a partir dessa conversa entre fã e ídolo que Hoxha passou a direcionar sua política pelos próximos anos. Ele procurou se livrar do que via como tradições primitivas de seu povo, tais como as rixas de sangue e conflitos entre clãs, e de problemas socioeconômicos como analfabetismo, opressão das mulheres e pobreza generalizada. Hohxa fez uma reforma agrária que destruiu a classe dos beys, aristocracia latifundiária herdada dos otomanos, distribuindo as terras para os camponeses. Além disso, ele nacionalizou bancos, indústrias e propriedades estrangeiras.
Idolatria e rompimento
Embora o nível de vida da população tenha atingido níveis inimagináveis antes da era comunista, o terror e perseguição impostos pelo regime de Hohxa atingiam níveis insuportáveis. Mas aí veio a morte de Stalin ,em 1953. Depois de decretar 14 dias de luto, mais do que na própria União Soviética, Hoxha reuniu a população da capital em frente a uma gigantesca estátua de Stalin, diante da qual todos, inclusive ele próprio, deveriam se ajoelhar e jurar fidelidade eterna e gratidão ao liberador a quem deviam tudo.
O sucessor de Stalin, Nikita Kruschtchev, via a Albânia com certo desdém. Assim, teve início um jogo duplo entre a União Soviética e o país dos Bálcãs. Durante uma visita à Albânia, Kruschtchev declarou que Hoxha deveria desistir de tentar modernizar e industrializar o país. Em vez disso, ele deveria desenvolver a agricultura, transformando a Albânia numa espécie de “pomar do socialismo”. Depois, ao visitar um sítio arqueológico, comentou que aquilo tudo poderia ser transformado numa base para submarinos soviéticos.
A política de desestalinização imposta pelo novo líder russo foi a gota d’água e Hoxha procurou por um novo farol em seu horizonte. Diante do racha crescente entre Pequim e Moscou, ele se aproximou da China maoísta, uma opção que desesperou até mesmo os membros mais leais de seu partido. Hoxha acreditava ver no radicalismo do Partido Comunismo Chinês a essência do marxismo-leninismo, que julgava ter visto se perder primeiro na Iugoslávia de Tito e depois na União Soviética de Khruschtchev.
Conexão Pequim-Tirana
A aliança entre China e Albânia foi descrita pelo historiador irlandês Jon Halliday como “um dos fenômenos mais estranhos dos tempos modernos: (...) dois Estados de dimensões imensamente distintas, a milhares de quilômetros de distância, com quase nenhum laço cultural ou qualquer conhecimento a respeito da cultura do outro, aproximados por uma hostilidade mútua contra a União Soviética”. Mas essa hostilidade não se revelou suficientemente forte para evitar que esses laços fossem desatados. Com a morte de Mao Tse-Tung, a China rompeu de vez as relações comerciais com a Albânia, deixando novamente o país perdido em meio a um mundo onde os próprios países comunistas estavam cada vez mais perdidos.
Neste meio tempo, uma série de medidas controversas adotadas por Hoxha tinha feito com que o pequeno, mas significativo, avanço no nível de vida dos albaneses retrocedesse. Seguindo o exemplo da Revolução Cultural, o sistema educacional e todos os esforços intelectuais e culturais da nação foram direcionados para o socialismo e a pátria. Burocratas e funcionários de escritórios foram enviados para trabalhar no campo.
Mais repressão e ateísmo oficial
A repressão aumentou a níveis brutais com o poder cada vez maior dado à Sigurimi, a polícia secreta. Albaneses foram proibidos de viajar para o exterior. Um número cada vez maior de intelectuais, artistas, opositores políticos, ou apenas aqueles que expressassem uma mera discordância com o governo, começou a ser exilado, preso em campos de trabalho forçado ou executado, enquanto toda forma de manifestação religiosa foi banida. Uma das cantoras mais famosas do país foi presa e o chefe da TV estatal advertido por transgredir o regime.
A Albânia se tornou o primeiro país oficialmente ateu do mundo, algo anunciado com orgulho por Hoxha. Muitos albaneses esconderam e até enterraram artefatos religiosos, com medo de serem descobertos por agentes do governo. Nem o exército resistiu à paranoia de Hoxha, que declarou que, se necessário, o limparia “com uma vassoura de ferro”.
Com a saída do país do Pacto de Varsóvia, vieram os famosos bunkers. Alguns datam já da década de 1950, quando, com base na experiência da Segunda Guerra, em que a resistência albanesa conseguiu derrotar os alemães usando táticas de guerrilha, Hoxha decidiu construir algumas dessas estruturas de concreto para o caso de uma invasão. Conta-se inclusive que o protótipo delas só foi autorizado depois que o próprio Hoxha assistiu a um tanque disparar contra uma bunker com o engenheiro responsável dentro.
Paranoia, escassez e morte
Nessa época, tamanho era o sentimento de isolamento e paranoia que cercas com pontas afiadas foram instaladas por todo o território, como defesa contra paraquedistas de um hipotético inimigo. Hoxha chegou a alegar que os bunkers poderiam resistir a quatro explosões nucleares, algo que foi desmentido em 1999, durante a Guerra do Kosovo, quando um bombardeio da OTAN acabou por destruir acidentalmente um deles. Sobre isso, disse um soldado albanês estacionado perto de um dos bunkers: “Maldito Enver! Ele dizia que eles eram seguros!”
Mas tanto isolamento não tinha como durar, especialmente com a crise cada vez maior que tornava o país cravado no meio da Europa um dos casos mais terríveis de miséria no mundo. A Albânia toda foi tomada por filas para se obter produtos básicos, como pão e carne. A indústria era praticamente inexistente. Medicamentos precisavam ser contrabandeados, e o próprio Hoxha, cuja saúde era frágil desde um enfarte, em 1973, precisava que os agentes do serviço secreto trouxessem remédios da França. Com o passar do tempo, sua decadência física o forçou a escolher um sucessor. Hohxa optou por um leal companheiro de décadas, Ramiz Alia.
No dia 11 de abril de 1985, Hoxha finalmente morreu, depois de entrar em coma. Após uma breve tentativa dos médicos de reanimá-lo, a notícia foi dada a Alia, que estava esperando na sala ao lado, junto com o ministro do Interior, Hekuran Isai. “O Camarada Enver faleceu”, informou o médico. “Vida longa ao partido”, exclamou o ministro, acrescentando depois de uma breve pausa: “vida longa a você, Camarada Ramiz!” Ramiz Alia acabaria por ser o último líder do regime comunista da Albânia, que, respirando por aparelhos, continuou até 1991, quando as estátuas de Hoxha foram derrubadas e eleições finalmente trouxeram àquele país tão sofrido uma esperança democrática.
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