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Os críticos de “Coringa” ignoraram a mensagem central da história: a loucura tem início com o colapso da família
Os críticos de “Coringa” ignoraram a mensagem central da história: a loucura tem início com o colapso da família.| Foto: Divulgação

Estabelecendo o recorde de bilheteria para um lançamento em outubro, o filme Coringa é um fenômeno mundial. Antes e desde seu lançamento, a discussão em torno do filme se atém a uma dúvida: o retrato de um homem branco e sem amor atacando a sociedade pode contaminar a vida real, gerando imitadores, ou esse medo é um exagero da cultura “woke”. Grandes críticos chamaram o filme de “vazio”, “nebuloso” e “ruim”, dizendo até que o filme “o deixa entorpecido”. Mas os críticos ignoraram o que me parece a mensagem central da história: a loucura tem início com o colapso da família.

Coringa começa com Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, um palhaço de festinhas e aspirante a comediante, e Robert De Niro como Murray Franklin, o apresentador de um programa de entrevistas. Marcada pela interpretação digna de Oscar de Phoenix, a história se passa na Gotham do começo dos anos 1980. Os espaços apertados, as ruas cheias de lixo e ratos e os assaltos aleatórios lembram a Nova York da década de 1970 — imortalizada em filmes como Taxi Driver — e criar uma sensação generalizada de medo. “Sou só eu ou a cidade toda está ficando louca?”, pergunta Arthur ao seu terapeuta.

Arthur enfrenta uma série de momentos infelizes, incluindo a perda do emprego, a incapacidade de encontrar uma nova carreira, a covardia amorosa, várias brigas, o declínio da saúde mental e a terapia cancelada. A perda da sanidade e a busca pela violência podem, então, ser vistas como a história de um homem se vingando de uma sociedade cuja indiferença deu origem ao vilão. Mas embora muitas causas estejam em ação, o mergulho de Arthur na loucura é basicamente uma história sobre o colapso da família.

(A partir de agora, este texto contém spoilers).

Gotham como a sala de espelhos da nossa sociedade

No começo do filme fica claro que o Arthur de meia-idade vive com a mãe, Penny, e cuida dela. O dinheiro é pouco e o trabalho de Arthur como palhaço está por um fio. Penny incomoda Arthur todos os dias, perguntando se o correio entregou alguma carte de Thomas Wayne. Ex-funcionária da Wayne Enterprises, ela insiste que Wayne é um cavalheiro que responderá as cartas que ela lhe manda pedindo dinheiro. Mas nenhuma resposta chega. Assim, Arthur passa as noites assistindo ao programa de Murray Franklin com a mãe. Ele se imagina convidado para o programa e Murray o acolhendo como filho.

A Gotham de Coringa é uma terra arrasada social e fisicamente que nos parece bem conhecida, uma espécie de sala de espelhos da nossa sociedade. É um lugar onde o capital social é tão baixo que as pessoas não se importam de verem outra ser assaltada e espancada por adolescentes em plena luz do dia, onde as pessoas não sabem nem o nome dos vizinhos, onde elas ficam presas em seus apartamentos dia e noite, sem amigos, família nem mesmo conhecidos de verdade aos quais recorrer em tempos de dificuldade. Gotham é um lugar onde o casamento está em declínio acelerado. Como no nosso tempo, parece que em Gotham as mães solteiras formam a maioria absoluta das unidades familiares. Famílias de elite, como os Wayne, se casam e permanecem casadas, e operários como Arthur e a mãe solteira com a qual ele fantasia e que mora no mesmo andar são solteiros ou divorciados, tendo filhos como vítimas.

Como Scott Yenor disse, uma das grandes realizações da sociologia foi notar que “não há dúvida” de que o declínio do casamento está conectado a vários males sociais. Sabemos que filhos de lares intactos se saem muito melhores do que filhos de pais solteiros ou coabitações em vários aspectos, incluindo notas na escola, delinquência, taxas de encarceramento, renda e mobilidade social, probabilidade de serem vítimas de violência doméstica e saúde física e psicológica. O filme explora sobretudo as três últimas consequências do lar sem pai de Arthur.

Claro que o filme é uma obra de ficção e as salas de espelhos exaltam as características negativas. Portanto, não estou sugerindo que a situação ruim de Arthur seja típica de lares de pais solteiros, que o divórcio e a separação não se justificam nunca ou que não pode haver coisas boas nesses lares. A questão é que é muito provável que a história de Arthur fosse totalmente diferente se ele tivesse crescimento num lar intacto, e a lições a se tirar disso.

A automutilação dos lares sem pais

Arthur é magro e luta contra a doença mental. Um de seus sintomas é a incapacidade de controlar ataques aleatórios de risada que confundem, assustam e enojam seus colegas e os passageiros de um ônibus. Um desses ataques faz com que um trio de marginais de terno o espanque no metrô e leva às primeiras mortes de Arthur e à necessidade de ele se esconder. As mortes catalisam uma série de eventos nos quais Arthur descobre as cartas da mãe pedindo ajuda a Thomas Wayne — cartas nas quais ela faz referência a Arthur como produto de um caso.

Naturalmente, Arthur invade um evento de caridade e confronta Wayne no banheiro. Ele insiste que é filho do milionário e que não quer ajuda, e sim apenas um abraço. Mas falta a Wayne a noblesse oblige. Ele nega bruscamente ser o pai de Arthur, diz que Penny era uma psicótica louca que foi internada num hospício e termina a conversa dando um soco na cara de Arthur. Isso faz com que Arthur roube o prontuário da mãe do hospício e descubra a verdade sobre si: ele foi adotado e sua mãe mentalmente perturbada era negligente e o deixava amarrado ao radiador durante dias, permitindo ainda que ele fosse abusado por seus namorados a ponto de sofrer danos cerebrais.

Mas a verdade sobre a origem de Arthur fica em suspenso depois que Arthur encontra uma foto da mãe quando jovem, com um bilhete escrito no verso: “Adoro o seu sorriso - TW”. Se o bilionário Wayne usou seu dinheiro para esconder o caso com uma história de adoção ou se a mentalmente perturbada Penny inventou um mundo de fantasia na qual ela é a amante de Wayne é um mistério.

Ainda assim, as provas talvez sugiram que Wayne é mesmo pai de Arthur e que o caso talvez tenha ocorrido antes de ele se casar com Martha. Se isso for verdade, o filme ressalta os argumentos defendidos por Janet Yellen e George Akerloff sobre os efeitos da tecnologia e a queda nos casamentos por obrigação desde os anos 1960. Os métodos contraceptivos e o aborto libertaram mulheres como Penny, permitindo que elas separassem o sexo da procriação. Homens como Wayne pensavam que, se as mulheres tinham essas opções, por que eles deveriam se sacrificar e casar? O casamento e as obrigações parentais pareciam ter se tornado “escolhas do pai”, o que só ganha relevância em casos de origem socioeconômica assimétrica.

A sugestão instigante é a de que, se homens virtuosos exercessem sua escolha social com honra e sacrifício, haveria menos Coringas no mundo.

Como argumentou David Blankenhorn, os pais formam quatro pilares para o desenvolvimento infantil: segurança física, recursos materiais, contribuem para a formação da identidade da criança e dão o cuidado diário de que a criança precisa. Na história de Arthur Fleck, a falta do pai levou diretamente à violência física e os danos cerebrais, diminuiu sua capacidade de ganhar um salário digno e prejudicou gravemente sua psique, tanto que durante anos ele acreditou que não existia de fato – uma forma exagerada de automutilação que David Popenoe documentou.

A verdade é que Gotham é um lugar de capital social em queda. Pode-se dizer que este é o problema real. Onde estão os vizinhos, amigos, familiares e companheiros de igreja ou clube para ajudar Arthur? Além da mãe e de um punhado de palhaços, Arthur só tinha suas fantasias quanto a Murray e Wayne. Mas a queda do capital social é um complemento do colapso da família, porque a célula familiar constitui os elos de uma rede social viva. Como demonstrou recentemente Tim Carney, as cidades norte-americanas de maior capital social, como Chevy Chase ou Salt Lake City, são lugares com as mais altas taxas de casamentos intactos.

Outra verdade é a de que Gotham deixou Arthur na pior. Por causa dos problemas financeiros da cidade, falta dinheiro para pagar pela terapia de Arthur. Mas esse problema é menor diante do problema do fracasso da família e do tecido social. Primeiro, porque (para o bem ou para o mal), o lado prático da igualdade democrática e do governo da maioria determina que os orçamentos sejam sujeitos a negociações e ao toma-lá-dá-cá. Depois, porque mesmo nas melhores circunstâncias financeiras, o governo democrático – seja ele local, estadual ou federal – não pode fazer mais do que dar apoio a famílias numa sociedade ordeira.

A perda de emprego e a incapacidade de comprar medicamentos coincide com um vídeo que Murray Franklin exibe de Arthur fracassando em seu número de standup comedy, cheio de piadas horríveis e estranhos ataques de riso. Quando Franklin ri de Arthur, isso finalmente o lança na loucura violenta.

Em resumo, e mesmo levando em conta outros fatores, é principalmente a desintegração da família e a proliferação de lares sem pais que dão origem ao Coringa. Arthur percebe que sua última figura paterna duradoura (em sua psique ensandecida) o rejeita quando Murray o convida para ir ao programa só para rir ainda mais dele. O limite entre o horror e a comédia — simbolizado pela maquiagem do Coringa, embora os dois gêneros explorem o absurdo — vêm à tona.

No ato final, o conflito entre a figura paterna fantasiosa e o filho gira em torno do absurdo das mortes do Coringa e da questão se elas são uma comédia ou tragédia, hilárias ou horríveis. A violência posterior faz com que a cortina desça sobre a sala de espelhos, deixando-nos sozinhos para reconhecermos os efeitos do colapso da família na sociedade. O filme parece sugerir que o declínio dos lares intactos é um absurdo horroroso — e que, se não resolvermos isso, seremos motivo de piada.

Kody W. Cooper é professor de Ciências Políticas na Universidade do Tennessee.

© 2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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