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O candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) foi atingido por uma facada durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG), no último dia 6 de setembro | Fábio Motta/Estadão Conteúdo
O candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) foi atingido por uma facada durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG), no último dia 6 de setembro| Foto: Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Facas e canivetes estão entre os maiores personagens das eleições brasileiras de 2018. No dia 6 de setembro, o candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) foi atingido por uma facada durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG). Horas depois do encerramento da votação do primeiro turno, na madrugada de 8 outubro, o mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, eleitor do PT, recebeu 12 facadas nas costas e perdeu a vida depois de discussão sobre política em Salvador (BA) — o assassino nega que a motivação tenha sido política. Horas depois, em Porto Alegre (RS), uma jovem de 19 anos foi supostamente atacada por homens que usaram canivetes para marcar sua barriga com uma suástica — ela não seguirá com a ação.

Além dos desentendimentos sobre política, os ataques contra minorias parecem ter aumentado. A Organização das Nações Unidas (ONU) se manifestou sobre o assunto. Ravina Shamdasani, porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, declarou por meio de nota: “O discurso violento e inflamado durante essas eleições, particularmente contra LGBTI, mulheres, afrodescendentes e pessoas com diferentes visões políticas, é profundamente preocupante”. Por sua vez, Raquel Dodge, procuradora-geral da República, editou instrução aos procuradores regionais eleitorais a fim de combater episódios de ódio e de notícias falsas.

Nas redes sociais, a virulência dos debates sobre política está disseminada. E a agressividade saltou do ambiente virtual e chegou às ruas. É possível que a polarização provocada por disputas ideológicas esteja provocando uma situação de violência generalizada?

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Exemplo extremo

Muitos países, em diferentes momentos da história, já foram rachados ao meio em resultado de polaridade política exacerbada. Foi o caso, em especial, dos Estados Unidos, entre os anos 1960 e meados da década de 1970. O país foi atravessado por incidentes violentos, da parte de conservadores e de liberais: manifestações contra a Guerra do Vietnã, revoltas nas universidades, atentados a bomba e tiroteios nas ruas entre policiais e integrantes dos Panteras Negras.

Os Panteras surgiram em 1966 para fornecer proteção armada para a comunidade negra de Oakland, na Califórnia. Dois anos depois, já mantinham sedes em dezenas de cidades americanas. Tornaram-se comuns incidentes como o ocorrido em 7 de abril de 1968, quando dois policiais e dois membros do grupo foram baleados em Oakland depois de um tiroteio. Em abril de 1969, 21 integrantes sediados em Nova York foram presos por tentar organizar um atentado a bomba.

Ataques utilizando explosivos, aliás, eram comuns naquele período. Apenas em um ano, 1970, foram realizados 476 atentados. Um dos muitos grupos terroristas internos que atuavam na época, o Wheater Underground Organization (WUO), assumiu a autoria de 25 ataques em 1975, mas o número de ações creditadas a eles, apenas naquele ano, chega a 45. O WUO chegou a detonar uma bomba dentro de um banheiro feminino do Pentágono.

Enquanto os Panteras Negras se inspiravam no Pequeno Livro Vermelho do líder comunista chinês Mao Tsé-Tung, milhares de americanos adquiriam outra obra, o Anarchist Cookbook (“Livro de Receitas Anarquista”). Tratava-se de um manual publicado em 1971 por um jovem de 19 anos, William Powell. O livro ensinava a construir bombas e a transformar revólveres comuns em lançadores de granadas. Seu autor se arrependeu da obra, mas ela saiu de seu controle e ganhou dezenas de reedições e ampliações.

Pacificação temporária

O país acabou pacificado, em parte porque, em 1975, finalmente chegou ao fim a Guerra do Vietnã, uma das principais causas de revolta de vários dos grupos – não por acaso, o WUO se desfez rapidamente, poucos meses após o fim do conflito na Ásia. Mas, principalmente, por causa da ação da polícia, que mapeou os grupos, prendeu seus principais líderes e desenvolveu estratégias de combate ao terrorismo. Foi nesta época que os Estados Unidos desenvolveram suas estratégias de combate a ataques internos que reduziu drasticamente o número de incidentes – desde 1978, os ataques, de diferentes portes, nunca mais passaram de 100 por ano; desde o ano 2000, são menos de 50.

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Catarina Gewehr, professora de psicologia social da Universidade Regional de Blumenau, considera que o caso brasileiro atual é grave e pode dar origem a outro tipo de ação agressiva, diferente do registrado nos Estados Unidos – com mais agressões físicas e verbais, menos explosões. “Desse embate, por certo, se nada for feito por ambos os candidatos no sentido de parar com este fluxo de agressividade continuada, uma tragédia social se aponta no horizonte. O terrorismo, não ao estilo do que a Europa ou os Estados Unidos experimentam, é uma possibilidade”, diz ela, para quem existe “uma lógica de terror que vem governando a vida das pessoas nos ônibus, no comércio, no metrô, nas calçadas e instituições de nossas cidades”.

Se a violência aumentar, não será suficiente prometer soluções simplistas, como simplesmente aumentar o número de cadeias, diz o sociólogo Marcos César Alvarez, pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo. “É um problema complexo, que demanda soluções que estejam dentro do espectro da democracia”. 

No caso dos Estados Unidos, a reação se deu sem abrir mão da garantia de liberdade de expressão democrática, mas combinada com atuação policial firme contra quem agisse contra a lei. Para agir com firmeza, foi necessário criar novos padrões de investigação. “Pela primeira vez em sua história, o FBI iria conduzir investigações sob um guarda-chuva de regras bem definidas, que tiveram um efeito imediato sobre suas operações e trouxe uma mudança fundamental sobre a abordagem do órgão sobre a segurança interna”, afirma um relatório da consultoria CNA, que analisa o período.

A França também atravessou um período turbulento em 1968. A partir de 6 de maio, quando 20 mil pessoas foram às ruas de Paris para realizar uma passeata que terminou em confronto aberto com a polícia, a capital foi tomada por barricadas. Trabalhadores ocupavam mais de 50 fábricas, de dezenas de cidades, enquanto o exército ocupava as maiores universidades. Ao fim do mês, o presidente Charles de Gaulle fugiu com a família para uma base francesa instalada em Baden-Baden, na Alemanha. Foi um exílio de poucas horas, mas que deixou os franceses com a sensação de que o presidente não iria voltar. Depois ele acabou retornando para a França e convocando eleições legislativas. 

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De Gaulle duraria mais um ano apenas no poder – renunciaria em abril de 1969, mas antes garantiu a continuidade com seu sucessor, Georges Pompidou, que ficou na presidência até 1974. A situação foi controlada e os líderes do movimento de 1968 conseguiriam eleger um presidente em 1981, quando François Miterrand chegou ao poder. Ou seja: a situação de conflito foi minimizada na medida em que o grupo opositor foi ouvido e alcançou espaço dentro da própria estrutura democrática do país.

Na década de 2010, a tensão política parece ter voltado, agora com o uso intensivo da internet. Na Alemanha, durante as eleições para o Parlamento de 2017, ativistas de extrema direita, ligados ao grupo Reconquista Germânica, agiram nas redes sociais, com perfis falsos, para intimidar candidatos adversários e seus eleitores. O grupo também atua em manifestações físicas do grupo Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente.

Além disso, em países menos desenvolvidos, os episódios de violência durante eleições são corriqueiros. É o caso de vários países africanos, como Angola, Zimbábue, Congo e Nigéria, mas também do México e de Ucrânia, Índia e Timor Leste. No caso dos mexicanos, os números apontam para a influência crescente do narcotráfico na política do país: nos meses que antecederam o pleito de 2012, haviam morrido nove políticos e um candidato. Em 2018, foram 136 políticos assassinados, sendo 28 pré-candidatos e 20 candidatos.

Violência generalizada

As eleições brasileiras de 2018 ainda não terminaram, e é difícil quantificar o total de casos de violência decorrente do clima tenso provocado pelas eleições. Existem alguns esforços de contabilizar os incidentes, como o Mapa da Violência Eleitoral 2018, que já registrou mais de cem episódios de violência. Além disso, o programador Alvaro Justen criou um site para reunir reportagens sobre incidentes. Até agora, ele já localizou mais de 50 casos.

Um indício do aumento da agressividade está no número de casos de agressões a jornalistas: até agora, foram 128 em 2018, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Ao longo do ano inteiro de 2017, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), foram 99 casos de violência contra profissionais da imprensa. No ano eleitoral de 2016, haviam sido 161 incidentes; em 2015, 137; em 2014, também ano eleitoral, foram 129.

Além da quantidade de casos, aconteceram neste ano incidentes que destoam da trajetória política recente do país. É o caso do ataque a tiros contra a caravana de um pré-candidato – como a que aconteceu em março, quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda não havia sido preso e se apresentava como concorrente. E também da facada contra Bolsonaro. Desde a redemocratização, em 1985, nada parecido havia acontecido.

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Antes, num passado mais remoto, já haviam sido alvo de atentados o presidente Prudente de Moraes, em 1897; o senador José Gomes Pinheiro Machado, em 1915; o candidato a vice-presidente João Pessoa, em 1930; o senador pelo Acre José Kairala, em 1963; e o candidato à presidência Arthur da Costa e Silva, em 1966. Desses cinco, morreram três: José Kairala (alvejado por Arnon de Melo, pai de Fernando Collor de Melo, dentro do Senado Federal em Brasília), Pinheiro Machado e João Pessoa – ele foi vítima de crime passional, mas o caso acabou sendo explorado pela candidatura a presidência de Getúlio Vargas.

Por outro lado, os ataques a lideranças de nível municipal se mostram muito mais corriqueiros – apenas nos últimos 20 meses, foram assassinados os prefeitos de Candeias de Jamari (RO), Francisco Vicente de Souza; de Breu Branco (PA), Diego Kolling; e de Tucuruí (PA), Jones William; além dos vereadores Marielle Franco, do Rio de Janeiro, Alexandro Pereira de Silva, de Santa Helena de Minas (MG), Ademir Carlos Patel, de Brunópolis (SC) e Jailton Martins de Carvalho, de Carira (SE), entre outros.

Tempestade perfeita

A situação pode descambar num cenário de violência gratuita após as eleições? O sociólogo Marcos César Alvarez lembra que o país já é bastante violento: são quase 60 mil assassinatos todos os anos. “Temos uma sociedade violenta, basta observar as taxas de homicídio, a violência no trânsito, a violência doméstica, violência estatal, o crime organizado. Mas esta eleição deixa possibilidades muito preocupantes no horizonte. Existe um contexto de acirramento de conflitos, com muitos candidatos fazendo discursos contra os direitos humanos”.

Para o pesquisador, o acirramento de conflitos é resultado do que ele chama de “tempestade perfeita”: “A crise econômica, a crise política, o impeachment da presidente Dilma, a operação Lava Jato e os movimentos nas ruas desde 2013 deslocaram vários temas da cultura política. No Brasil hoje existe uma percepção muito grande de insegurança, 60% das pessoas não se sentem seguras ao andar em seu bairro à noite. Se você junta isso à falta de confiança na política e nas instituições, esse é um quadro extremamente preocupante”.

Será que é necessário que surja um líder moderado e pacificador, como foram Nelson Mandela para a África do Sul e Mahatma Gandhi para a Índia? Daniel Pinheiro, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na Esfera Pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, responde que a esperança de que surja uma figura capaz de resolver problemas graves é resultado da falta de educação política vigente no país. “O brasileiro tem na sua cultura o mito do herói. Na época do mensalão, queria Joaquim Barbosa para presidente. Na Lava Jato, pediu por Sergio Moro. É preciso substituir esse conceito e entender que aceitar as diferenças é normal”.

Para ele, estas eleições são diferentes das anteriores em um aspecto: “Até 2014, existia uma diferença expressiva entre partidos, mas não entre ideias. Agora, o que está havendo é uma grande diferença de ideias, de conceitos a respeito de como gerenciar um país. As pessoas no Brasil não estão acostumadas a negociar, a lidar com o pensamento diferente”. As redes sociais, diz ele, expõem essa novidade. “Muita gente está saindo da caverna, da escuridão, e soltando todas suas ideias. Quando as pessoas fazem isso de forma exagerada, todos começam a gritar. Ninguém escuta mais, parece que não há limites”.

Comportamento primitivo

Para a professora Catarina Gewehr, essas eleições trouxeram à tona um comportamento típico de estádios de futebol. “A atual eleição revelou uma face pouco evidenciada, e por isso mesmo, assustadora, de nossa cultura: o quanto podemos nos comportar como horda. É um comportamento de pura resposta ao estímulo recebido. É um comportamento muito primitivo”.

Esse comportamento, diz a professora, é resultado de uma preferência por “construções de tempo rápido”. “Não há mais o tempo da paciência e da delicadeza requerido pela leitura de um texto complexo. Pensar deixou de ser uma necessidade. Tudo tem que ser pra agora, e ‘agora’ já se tornou ontem. Isso cria uma enorme frustração e a frustração é um disparador extremamente competente para a produção de comportamentos agressivos que tendem à violência”.

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Mas como as redes sociais chegaram às ruas? “Essa violência, resultado de um processo continuado de frustração, sai das redes sociais para as ruas em função do modo como as redes sociais produzem um sistema continuado de ameaças através das fake news, que funcionam como uma ameaça ao sistema de segurança do indivíduo”, ela explica. “E essa ameaça é continuada, é volumosa e imediata. O nível de respostas comportamentais está absolutamente reativo por conta da elevação do nível de estresse cognitivo-afetivo ao qual as pessoas estão sendo submetidas pelas redes sociais”.

O resultado, diz ela, é uma esquizofrenia eleitoral – “vamos às urnas coagidos”, diz ela, “como se a eleição fosse uma espécie de autorização para dissipar o outro”. E esse impacto deverá se mostrar profundo. “A ferida que a sociedade brasileira está sangrando requererá muito tempo para sua cicatrização”, ela afirma. “É preciso que as pessoas relembrem que não há construção humana sem diálogo, sem reconhecimento do direito inalienável de ser a pessoa que você é. Dissipar o indivíduo em nome da horda é concordar que a experiência humana fracassou, de modo irremediável, neste país”.

Soluções à vista

É possível reverter esse quadro. Outros países, em situação muito mais difícil, conseguiram. É o caso de Serra Leoa. O país africano foi devastado por uma guerra que durou de 1991 a 2002 e deixou um saldo de 50 mil mortos, num país que hoje tem apenas 7 milhões de habitantes. Em março deste ano, o país realizou eleições pacíficas, para eleger novos presidente, congressistas e líderes locais. Foi o quarto pleito consecutivo, desde 2002, e ocorreu sem maiores incidentes, apesar da vitória apertada de Julius Maada Bio, que venceu em segundo turno com 51,8% dos votos.

Entre os vizinhos do Brasil, o Uruguai oferece um exemplo positivo. O país passou por uma ditadura entre 1973 e 1985 para iniciar um período de paz e estabilidade política. Desde então, já realizou sete eleições presidenciais consecutivas, com transmissão de cargos pacífica para lideranças de diferentes grupos políticos.

É possível seguir esses exemplos, e também necessário. Como afirmou o filósofo Raymond Aron em seu livro Paz e Guerra entre as Nações, publicado em 1962, no auge da Guerra Fria, “Não seria digno deixarmo-nos abater pelas desgraças da nossa geração e pelos perigos do futuro próximo a ponto de abandonar toda esperança. Mas também não seria digno entregarmo-nos à utopia, deixando de ver as circunstâncias contraditórias da nossa condição”.

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