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Monumento de Washington, nos Estados Unidos | Divulgação
Monumento de Washington, nos Estados Unidos| Foto: Divulgação

Superpotências vêm e vão, mas é raro que uma se retire antes do tempo.

A presidência de Trump, com a demissão de amigos, reconsideração de inimigos e desdém pela liderança, está deixando um vazio no centro do lugar que chamamos de Ocidente. 

Eu sei que falar de Ocidente parece um pouco imperialista. Mas em frente da poderosa e autoritária China, da paranoica Rússia e do indeterminável Estado Islâmico, defender os valores da liberdade e igualdade pode ser a causa do nosso tempo. Essas são aspirações universais que encontraram sua expressão máxima na tradição política ocidental e agora estão em crise.  

É a turbulência do Ocidente que deveria nos preocupar mais. O presidente Trump vai sair do poder, de uma maneira ou de outra. Mas os planos de sucessão vão ser bem mais caóticos.  

Esse transtorno é relatado em dois livros de jornalistas britânicos provenientes de publicações conhecidas por promover a liberdade individual e de mercado. Em "The Fate of the West" (O destino do Ocidente, em tradução livre), do ex-editor do Economist Bill Emmott, e "The Retreat of Western Liberalism" (O recuo do liberalismo ocidental, também em tradução livre), do colunista do Financial Times Edward Luce, os desafios do Ocidente são apresentados em detalhes — e eles virão principalmente de dentro. A diminuição do crescimento econômico, o aumento da desigualdade, a divisão de aliados e a crescente desconfiança das elites estão desgastando a legitimidade e o poder do Ocidente, dando espaço para nacionalismos grosseiros e egoístas. E isso está acontecendo quando a cooperação transnacional é mais necessária.  

"A ideia política mais bem sucedida do mundo"

O Ocidente é um conceito, não uma localização: os EUA, a Alemanha e o Japão, por exemplo, podem ser ocidentais de maneiras cruciais – culturas, moedas e pontos cardeais que se danem. O Ocidente, como escreve Emmott, é "a ideia política mais bem sucedida do mundo", uma ideia que combina abertura a novas oportunidades e uma procura constante pela igualdade de vozes, direitos e tratamentos. Essas duas características podem ser conflitantes, mas são essenciais. "Sem a abertura, o Ocidente não pode prosperar; mas sem igualdade, o Ocidente não duraria", afirma Emmott.  

Depois da Segunda Guerra Mundial, o Ocidente conseguiu diminuir os impulsos auto-destrutivos da Europa e, depois da Guerra Fria, parecia que o ideal ocidental da democracia liberal e mercados livres tinha derrotado todos. Era uma época de ouro. Mas era "extremamente arrogante acreditar que o resto do mundo seguiria nosso script passivamente", reflete Luce. "A crença na versão autoritária do destino nacional está preparando uma volta poderosa".  

Para Emmott, a crise financeira do começo de 2008 revelou finalmente uma putrefação interna, não só pela dor econômica que causou, mas também pelo "sentimento de traição e fracasso sistêmico que engendrou". O problema do Ocidente, ele debate, não é que alguns sejam ricos e alguns sejam pobres, mas que os que são deixados para trás não acreditam na justiça fundamental desse tipo de sociedade. O Ocidente "não depende da igualdade de salários ou riqueza ou algo perto disso", escreve Emmott. "Depende das pessoas considerarem as sociedades justas". 

Ressurreição do populismo

Essas sociedades cresceram injustas, ele sustenta, graças a tendência da democracia de se autoaprisionar – o abuso dos processos políticos para capturar benefícios e preferências para indústrias poderosas, principalmente do setor financeiro. Emmott credita ao Occupy a identificação desse culpado, ainda que o movimento não tenha feito muito para parar isso. 

Para Luce, a combinação entre a crescente desigualdade de salários, a mobilidade econômica evanescente e uma tecnocracia distante levaram ao momento atual de ressurreição do populismo. "A eleição do Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia são reafirmações da vontade popular", escreve. E os dois autores mostram a ascendência de Trump, em particular, com termos quase apocalípticos. "A democracia liberal ocidental… está lidando com seu maior problema desde a Segunda Guerra Mundial", argumenta Luce. "As melhores tradições liberais dos EUA sob ataque de seu próprio presidente". Emmott concorda que as propostas de Trump – empurrando o protecionismo, enfraquecendo alianças, fechando e imigração – ameaçam os valores do Ocidente.  

Uma visão mais longa e menos influenciada pelo atlanticismo, enfatizaria que a profundidade das desigualdades dos EUA, paralela à questões culturais e raciais, é muito anterior aos desafios do mundo pós Guerra Fria. As perturbações de hoje importam porque, mesmo que os EUA não sejam um sinônimo de Ocidente, “o Ocidente seria reduzido, ou até acabado, sem os EUA”, escreve Emmott. A agenda da administração Trump, “America first” (EUA primeiro), como interpretada pelo Secretário de Estado Rex Tillerson e pelos conselheiros da Casa Branca H.R. McMaster e Gary Cohn, quer dizer que as relações entre as políticas americanas e seus valores vão ser incidentais e que, ao invés de procurar cooperação com nações aliadas, Washington agora vê o mundo como uma horda de competidores isolados. É o tipo de realismo estreito e vulgar que vai barrar as tentativas de contraterrorismo, comércio e, como já vimos, mudança climática. 

Não existe nenhum outro poder para sustentar o Ocidente a não ser Washington? Os autores são céticos quanto a lideranças regionais e nacionais da Europa. Emmott lembra que processos internos da União Europeia “são estranhos e até incompreensíveis” para muitos do continente, enquanto Luce não está convencido que a chanceler alemã possa se tornar a chefe do mundo livre caso seja reeleita esse ano. “O espírito do internacionalismo ocidental está nos ombros dela”, ele afirma. “É pedir demais que uma líder de quatro mandatos alemã carregue essa tocha”.  

Os EUA são uma ideia a ser preservada

A influência dos EUA importa não porque Washington sempre sustentou os valores que professa, mas porque só professá-los já importa. “Mesmo quando se prova hipócrita, como na ‘guerra ao terror’ e durante boa parte da Guerra Fria, a ideia dos EUA se mostrou maior que suas falhas”, escreve Luce. “O elo entre os EUA que suportam o sistema em casa e os EUA que os promovem no exterior nunca se desfez, ainda que tenha sido manchado. Trump está invertendo esse elo. Quando mais desprezo ele tem com as tradições democráticas em casa, mais ele as ameaça no exterior”.  

Se o Ocidente é uma ideia, os EUA também são. E é uma ideia que deve ser preservada.

Esses não seriam livros de grandes pensamentos se não tivessem algumas recomendações políticas – ainda que as recomendações tenham tendências previsíveis e decepcionantes. Emmott, que vê nos grupos de lobby e interesses especiais agentes de um poder enraizado e da desigualdade, gostaria que os EUA se desfizessem de requisitos de licenciamento excessivamente profissionais, reforçassem a aplicação do antitruste, controlassem os grandes bancos, estimulassem os gastos com infraestrutura e instalassem taxas de herança para neutralizar concentrações de riqueza intergeracionais.  

Luce pede um “novo plano social” (mesmo os mais elegantes escritores britânicos não conseguem escapar de clichês políticos), com sistema de saúde universal, impostos com códigos mais simples, taxas de carbono, menos dinheiro na política e mais recolocação profissional para a classe média.  

Essas propostas, feitas para resolver os desafios domésticos apontados pelos autores, parecem necessárias, mas não vão além de consertos técnicos do que parece ser um problema do sistema. Afinal de contas, Luce e Emmott não prevêem um mundo pós-americano benigno onde poderes crescentes criam oportunidades econômicas para todos; eles têm uma visão mais spengleriana do declínio da civilização. A ironia da má administração do Trump confirma que, apesar dos problemas da era Pós-Guerra Fria – o hiperpoder americano, a guerra dos drones, a falta de limites – a sede por uma liderança americana continua forte. Quando Merkel declarou que a Europa deve agora por seu destino em suas próprias mãos, houve apreensão, não triunfo.  

Os EUA já decidiram há algum tempo que não seriam os policiais do mundo, mas ser um solitário amargo também não é a solução.

“O Trump deixou claro que a liderança global dos EUA é história. Mas o que vai entrar no seu lugar?”, se pergunta Luce. Ele tem pouca fé numa liderança chinesa e argumenta que a Rússia de Putin quer apenas promover a divisão entre rivais em potencial. Sem os EUA, ficaríamos em uma circunstância estranha: as nações que compartilham valores ocidentais não são fortes o suficiente para liderar, enquanto as que são fortes o suficiente não compartilham os valores do Ocidente. “Alguns temem que a China seja o próximo líder”, escreve Luce. “Mas é mais provável que o caos, não a China, seja o substituto dos EUA”.  

Fragilidade crescente

Será que uma nova liderança americana seria capaz de reparar a fragilidade crescente do Ocidente, especialmente se o Trump continuar desse jeito? “É reconfortante achar, como muitos acham, que o sistema americano vai simplesmente reverter para o que era antes do Trump”, alerta Luce. “Mas é provável que ele simplesmente aponte a culpa nas elites, nos estrangeiros, no islamismo, nas minorias e outros sabotadores. Assim que operam os populistas”.  

O perigo que Trump está infringindo nas normas da democracia americana, em noções básicas como a verdade, a confiança e discurso, é severo - e não é como se as coisas fossem um paraíso antes da campanha de 2016. Existe mais então com o que se preocupar do que a China, Rússia ou Coréia do Norte, aqueles “bárbaros… nos portões ocidentais”, como chama Emmott. O impacto do presidente americano na psyche ocidental vai permanecer de alguma forma, não importa o que acontecer depois - e lembre-se que o que acontecer em Washington pode não melhorar as coisas. “Imagine como as coisas estariam com um nacionalista branco competente e sofisticado na Casa Branca”, escreve Luce em seu último parágrafo, só para deixar o cenário tão depressivo quanto possível.  

A memória de Dean Acheson, vencedor do prêmio Pulitzer, “Present at the Creation” (’Presente na Criação’, em tradução livre), relata a origem das instituições e alianças que guiam a ordem pós Segunda Guerra Mundial. Esses autores sugerem que o começo de Acheson está chegando ao fim. Luce acredita que estamos “presentes na recriação” com Moscou e Beijing, uma “ruptura com o dito universalismo do Ocidente”. Emmott se preocupa: acha que estaremos “presentes na destruição”.  

Destruição soa muito definitivo, recriação é muito vago. É mais um repúdio. Afinal de contas, não me preocupo se a democracia é ou não a melhor forma de governo humano. Me preocupo que ela seja mas que ninguém se importe com isso.

Traduzido por: Gisele Eberspächer
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