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Terapia relatada pelo psiquiatra Italo Marsili levanta questões morais e médicas sobre a contenção de danos no caso dessa parafilia.
Terapia relatada pelo psiquiatra Italo Marsili levanta questões morais e médicas sobre a contenção de danos no caso dessa parafilia.| Foto: Reprodução/ Youtube

Durante uma live de internet transmitida no dia 8 de janeiro, o psiquiatra Italo Marsili foi entrevistado pela musa fitness Kim Zucatelli. Eles conversaram durante quase uma hora. O assunto era emagrecimento, mas o psiquiatra também abordou outros temas. Em dado momento, Marsili explicou a abordagem que, segundo ele, funcionou com um paciente pedófilo.

“Eu escolhia garotas de programa com ele, que pareciam crianças, mas não eram. Depois a gente foi progredindo, primeiro uma garota com peitão, depois com bundão. Até mudar o apetite sexual dele. É só apetite sexual. No final de seis meses, ele falou para mim, ‘rapaz, eu tenho tesão numas cavalas’. Ele conseguiu apagar a pornografia infantil que tinha no computador, o desejo por criança sumiu”.

No vídeo, Italo Marsili explicou melhor sua abordagem. “O sujeito era pedófilo. Era uma coisa que atormentava a cabeça dele. Já tinha tocado numa criança ou outra. Estava desesperado, queria se suicidar. Ele só tem desejo sexual por figuras infantis, então fiz com que ele de fato experimente o prazer sexual com uma figura infantil, que não seja criança. Existem mulheres que não têm peito, não têm bunda, têm cara de criança e têm 20, 30 anos. Eu sei que é imoral, mas é um ajuste de moralidade”.

Será que é possível lidar com pedofilia dessa forma? Fazer um “ajuste de moralidade”, optando pelo dano menor, em busca de uma maneira de o paciente lidar com o problema e recuperar uma vida sexual e psicológica saudável?

A teoria do mal menor

Dilema moral semelhante foi encarado – também com polêmica – em 2010, quando o papa Bento XVI lançou um livro, Luz do Mundo, em que ele admitia, em casos muito específicos, o uso de preservativos para se evitar um mal maior. Bento XVI reconhecia que prostitutas com aids demonstravam preocupação com seus clientes ao exigirem o uso de preservativos para evitar o contágio.

O argumento ecoava a teoria, defendida fazia anos por um especialista em ética, o padre Martin Rhonheimer. Para ele, desrespeitar um dogma da igreja (no caso, aceitando que pessoas fazem sexo antes do casamento e deveriam utilizar camisinhas) poderia representar um mal menor no sentido de salvar vidas de possíveis vítimas da aids.

Procurado pela reportagem, Rhonheimer respondeu que não se manifesta mais sobre o assunto. Mas, no auge da polêmica, ele concedeu uma entrevista em que resumia seu primeiro artigo sobre o tema: “Escrevi que as prostitutas, os homossexuais ou pessoas promíscuas que usam uma camisinha ao fazer sexo mostram pelo menos um senso de responsabilidade. Escrevi ainda que, como padre, eu não lhes diria que não usassem preservativos, mas, pelo contrário, ‘vou ajudá-los a viver uma vida sexual honrada e bem ordenada’, incentivando-os a abandonar completamente seu estilo de vida”.

O professor aproveitava para justificar o argumento oferecido pelo papa: “Ele simplesmente diz que, ao usar um preservativo, essas pessoas envolvidas em comportamentos imorais mostram pelo menos alguma preocupação com as graves consequências de seus atos, e isso torna o seu comportamento – embora ainda intrinsecamente mau – menos mau. Mas, acrescenta o Santo Padre, essa não é uma solução moral real, embora para essas pessoas possa ser simplesmente um primeiro passo para viver a sexualidade de uma forma mais humana”.

Seria possível aplicar esse mesmo raciocínio para o caso da pedofilia? Fazer sexo com prostitutas adultas não deixa de ser algo considerado intrinsecamente mau, mas seria menos mau do que atacar crianças, ou continuar a consumir pornografia infantil?

Para o professor de filosofia Carlos Ramalhete, a resposta é não. “Existem maneiras de lidar com a pedofilia, mas essa não é uma delas”. Para ele, a pedofilia consiste em uma desordem, “que precisa ser ordenada, e não substituída por outra desordem, que seria a busca por diferentes prostitutas”.

Para Ramalhete, “o único tratamento real que poderia haver seria uma tentativa de ordenação completa da sexualidade. Fugir do contato visual com crianças pré-púberes, evitar piscinas com crianças nadando, e ao mesmo tempo trabalhar a sexualidade dele junto com a esposa, para que ele coloque a pessoa que ele ama como objeto de desejo. É uma coisa que vai acontecendo aos poucos”. A pedofilia, diz ele, tem sua gênese numa associação: “a pessoa ligou o prazer sexual com o corpo infantil. Mesmo que sinta horror racional à ideia, continua ficando excitada diante da imagem de uma criança. O tratamento vai buscar dissociar essa relação”.

O que diz a ciência?

Do ponto de vista da psiquiatria, a técnica utilizada por Italo Marsili faz sentido? Procurada, a Associação Brasileira de Psiquiatria não se manifestou – aliás, Marsili tampouco aceitou conceder entrevista.

Mas o psiquiatra Danilo Baltieri tem uma opinião formada sobre o assunto: “Não existe nada na literatura científica que suporte a decisão de mandar um paciente pedófilo para um prostíbulo”. Baltieri é coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade (ABSex) da Faculdade de Medicina do ABC, instalada em Santo André (SP)

O ABSex é um centro de referência nacional para o tratamento das chamadas parafilias, nome dado aos comportamentos sexuais considerados inusuais, como pedofilia, zoofilia e necrofilia. Baltieri atua há mais de duas décadas com pacientes desse perfil. Já atendeu a mais de dois mil pedófilos na vida. O centro que ele dirige, o ABSex, recomenda, para os portadores do chamado transtorno pedofílico, o tratamento mais utilizado no mundo todo: terapias em grupo.

“Em grupo, é mais fácil um pedófilo mais evoluído na terapia confrontar um outro paciente. Ele tem mais credibilidade do que o terapeuta, que presumivelmente não é pedófilo”, afirma o especialista. Mas é possível também tratar o paciente em sessões individuais. “O objetivo da terapia é mudar o que chamamos de distorções cognitivas. Em geral, o pedófilo pensa que a criança é um ser sexual, que aprecia sexo com adultos”.

Para a psiquiatria, existem diferentes níveis de pedofilia. Em alguns casos, os pedófilos fantasiam com crianças, mas não chegam a molestá-las. Mas, geralmente, quem é encaminhado para tratamento já cometeu algum abuso, ou foi encontrado consumindo pornografia infantil – na legislação brasileira, pedofilia não é crime, mas portar e distribuir pornografia infantil é, assim como abusar sexualmente menores de 14 anos, com ou sem penetração.

(Em tempo: Marsili não cometeu nenhum crime ao recomendar o prostíbulo, já que a prática de pagar por sexo não é proibida no Brasil. Tampouco é crime receber dinheiro por sexo, aliás - a atividade é reconhecida pelo Ministério do Trabalho. A única ação sujeita a sanções legais é a de explorar o trabalho das prostitutas).

Aliás, 80% dos molestadores de crianças não são pedófilos. “Em geral são familiares que se aproveitam da situação de poder para abusar de crianças da família”, diz Baltieri.

Medicação e manutenção da libido

“Em casos extremos, em que o paciente tem impulsos sexuais intensos na direção de crianças, utilizamos medicação, que tem por objetivo reduzir essa intensidade, tomando o cuidado de não acabar com a libido, porque o objetivo é que o pedófilo retome, ou inicie, uma vida sexual adulta saudável”, afirma Danilo Baltieri.

Nesse processo, as esposas são importantes (aproximadamente metade dos pedófilos é casada). “Elas fazem o monitoramento constante, que funciona tão bem quanto em usuários de drogas”, compara o psiquiatra. A comparação com entorpecentes é válida, diz ele, no sentido de que o pedófilo precisa ser mantido longe dos estímulos que disparam o impulso sexual por crianças.

“Pedofilia é uma doença crônica, que pode ser tratada, mas não tem cura”, diz ele. Baltieri lembra que, em média, para cada pedófilo tratado, três crianças deixam de sofrer abuso. “É um transtorno que atrai poucos psiquiatras e provoca, com toda razão, grande raiva na sociedade. Mas um portador do transtorno que procure por ajuda pode ter uma vida saudável e evitar, assim, provocar danos”.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Jr.
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