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A reafirmação das leis que legalizaram o aborto nos Estados Unidos têm por trás uma fantasia antiga e perigosa: a eugenia
A reafirmação das leis que legalizaram o aborto nos Estados Unidos têm por trás uma fantasia antiga e perigosa: a eugenia| Foto: Pixabay

G. K. Chesterton começa seu livro Eugenia e Outros Males, de 1924, alertando que “o golpe de uma machadinha só pode ser contido enquanto ela estiver no ar”. A machadinha no ar era a eugenia, mas o golpe já atingiu seu alvo nos Estados Unidos.

Num caso da Suprema Corte julgado há três anos, Buck vs. Bell, o Ministro Oliver Wendell Holmes Jr. escreveu um voto sustentando uma lei recém-sancionada na Virgínia que determinava a esterilização obrigatória de pessoas sofrendo de “imbecilidade, idiotia, retardo ou epilepsia” – mesmo diante dos protestos de Carrie Buck, 17 anos, que tinha certo atraso mental, mas não a ponto de ignorar a injustiça que estava sendo perpetrada contra ela.

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Permitindo que o Estado removesse cirurgicamente as trompas de Falópio de Buck, diante de um só voto dissidente, dado pelo único ministro católico da corte, o Ministro Pierce Butler, Holmes escreveu: “É melhor para todo o mundo, em vez de esperar executar filhos degenerados por crimes ou permitir que eles morram de fome por causa da imbecilidade, que a sociedade possa evitar que os claramente inadequados se reproduzam”.

Buck foi uma das 60 mil pessoas esterilizadas nos Estados Unidos no século XX, como notou Clarence Thomas em seu voto dissidente no caso Box vs.Planned Parenthood de Indiana e Kentucky, uma apelação que discutia a questão se o estado de Indiana podia legalmente proibir abortos feitos por causa do sexo, raça ou deficiências do feto que está sendo assassinado. A “ideia perigosa” de Thomas — como Ross Douthat a chamou recentemente — é a de que a história sórdida da eugenia nos Estados Unidos continua sendo relevante para nossa interminável disputa constitucional quanto ao aborto.

De acordo com a jurisprudência da Décima Quarta Emenda da Suprema Corte [que fala sobre o devido processo legal], um estado não pode impor um direito fundamental a não ser que por trás dele haja um interesse que só pode ser satisfeito por meios os menos restritivos possíveis. Supondo, apenas para o bem da argumentação, que haja um direito fundamental constitucional ao aborto, ainda assim o Estado tem interesse em impedir abortos feitos por motivos eugenistas — para se deter a machadinha no ar?

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Respondendo a essa pergunta e associando-a às categorias da análise da Proteção Equânime da Corte, Thomas escreveu um voto dissidente de vinte páginas detalhando a história da eugenia nos Estados Unidos, como o objetivo de demonstrar que a lei de Indiana e “leis parecidas promovem o interesse do Estado em impedir que o aborto se tornasse um instrumento da eugenia moderna”.

Como notou Thomas, o “movimento da pílula anticoncepcional do século XX” se misturou e “se desenvolveu juntamente com o movimento eugenista norte-americano”. Ambos “buscavam ajudar a raça [humana] na eliminação dos inadequados”, como escreveu Margaret Sanger em seu ensaio “Birth Control and Racial Betterment” [Pílula anticoncepcional e melhoramento racial].

Mas Sanger expressava dúvidas já no fim do ensaio, perguntando se “a reprodução de casais saudáveis” ou a “esterilização de certos tipos reconhecidos de degenerados” era capaz de limitar a reprodução “em meio às grandes massas que, por pressão econômica, habitam as favelas e lá, impotentes, geram outras massas impotentes, doentes e incompetentes que reforçam tudo o que a eugenia é capaz de fazer entre aqueles cuja condição econômica é melhor”.

Apesar de Sanger não trilhar por esse caminho, a distância estre este ponto de partida e o aborto eugenista não é muito grande. Poucos anos depois de Sanger ter publicado seu ensaio, o eugenista anglicano progressista William Ralph Inge escreveu abertamente em seu livro Outspoken Essays [Ensaios sinceros] que “o dogma ridículo de que os homens nascem iguais está morto, mas não enterrado. A ‘santidade da vida humana’ precisa abrir caminho para a verdade óbvia de que um jardim precisa ser aparado”. Sem o dogma da santidade da vida humana, o que impede o jardineiro da metáfora de matar as ervas-daninhas?

A questão quanto ao aborto ser usado para fins eugenistas, depois das leis de liberalização do aborto no século XX, era séria. Diante disso, parecia fazer sentido que as pessoas interpretassem os comentários da Ministra Ruth Bader Ginsburg numa entrevista de 2009 para a New York Times Magazine como um aceno positivo para o objetivo eugenista de desestimular a reprodução dos pobres e outros indesejáveis. “Sinceramente, eu achava que, quando o caso Roe [que legalizou o aborto nos Estados Unidos] foi julgado”, disse Ginsburg a Emily Bazelon, “havia uma preocupação quanto ao crescimento populacional, sobretudo das populações das quais não queremos ter muitos representantes. De modo que o caso Roe iria estabelecer um financiamento público para o aborto”.

Numa entrevista posterior para Bazelon, na Yale Law School, Ginsburg insistiu que suas palavras tinham sido reproduzidas com precisão, mas que ela fora “enormemente mal interpretada”. Talvez, e a visão generosa de Bazelon é a de que Ginsburg estava resumindo uma ideia que estava no ar em 1973, mas com a qual ela pessoalmente não concordava (apesar de suas palavras numa entrevista diferente de 2014, na qual ela dizia que “não faz sentido ter uma política nacional que promova o nascimento somente entre os pobres” parecerem endossar tanto os lados positivo e negativo da eugenia).

É impossível dar a mesma interpretação generosa a uma carta de Ron Weddington, um dos advogados do caso Roe vs Wade, ao presidente Bill Clinton em 1992. “Depois de convencer os pobres de que eles não conseguirão sair da pobreza tendo tantas bocas a mais para alimentar”, escreveu Weddington, “você terá de criar meios para evitar a existência dessas bocas a mais”. Isto é, “vasectomias, laqueaduras e abortos” feitos pelo Estado. Para deixar ainda mais claro, Weddington encerrava a carta insistindo enfaticamente que “não precisamos de mais bebês pobres”. A categoria dos “pobres”, claro, geralmente representa outras categorias de “indesejáveis”, seja implícita ou explicitamente.

A tecnologia avançou muito desde 1992 e, como diz Thomas, “com os exames pré-natais de hoje e outras tecnologias, o aborto pode ser facilmente usado para eliminar crianças com características indesejáveis”. Isso levou à eliminação quase completa de crianças com Síndrome de Down em muitos países ocidentais e à disseminação do aborto de acordo com o sexo na Ásia e em algumas comunidades dos Estados Unidos. Além disso, há disparidades raciais nas taxas de aborto em muitas comunidades norte-americanas.

É importante ter em mente que o eu na palavra eugenia significa “bom” – bons genes – e que as pessoas que defendem isso acham que estão defendendo algo de bom para a sociedade e o futuro. E eugenia foi e é um movimento progressista — movimento que se baseia numa visão de desenvolvimento, progresso e perfeição. A história do século XX, contudo, mostra que essa visão do Paraíso leva a resultados do inferno. A busca eugênica pelos bons genes se dá à custa da dignidade e igualdade humanas, deixando de lado o dogma da santidade da vida humana. Em vez de nos alertar que a eugenia pode ser posta em prática aqui, o voto dissidente de Thomas expõe o que já aconteceu aqui, e o Estado está interessado em evitar a volta dessa ideia.

Justin Dyer é professor de ciência política e diretor do Kinder Institute on Constitutional Democracy da University of Missouri.

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês

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