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Norte-coreanos assistem a cobertura do lançamento de míssil em telão público, em Pyongyang | KIM WON-JIN/AFP
Norte-coreanos assistem a cobertura do lançamento de míssil em telão público, em Pyongyang| Foto: KIM WON-JIN/AFP

Tudo o que você sempre soube a respeito da Coreia do Norte – que se trata de uma ditadura comunista comandada por um líder excêntrico, cujo povo vive isolado de informações sobre o mundo exterior e onde falar de direitos humanos é assunto proibido – seria resultado de uma “manipulação midiática”, articulada por grandes veículos de comunicação para disseminar o discurso hegemônico norte-americano de poder imperialista. Esta foi a conclusão de uma palestra realizada na segunda-feira (31), pela União da Juventude Comunista (UJC) na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo (SP). O evento contou com a presença de dois jornalistas da revista Opera, Pedro Marin e Andre Ortega. 

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Com o tema “Desmistificando a Coreia do Norte”, a palestra teve auditório cheio, com direito a participantes chamando um ao outro por “camaradas”. A ideia, segundo os organizadores, era derrubar “mitos” a respeito do país liderado por Kim Jong-Un. Para os palestrantes, a pressão “imperialista” midiática sobre a Coreia de Norte se daria por conta da posição estratégica do pequeno país, que separa a China das tropas norte-americanas instaladas na Coreia do Sul. “Os americanos buscam a deslegitimização do governo norte-coreano. O mercado de notícias bizarras sobre o país é enorme. A mídia consome a própria ilusão”, completou Ortega. 

Confira cinco mitos contados por jovens comunistas sobre a Coreia do Norte na UFABC:

1 – Liberdade democrática 

A primeira ideia que os palestrantes a favor do comunismo tentaram derrubar foi a de que os norte-coreanos vivem sob uma ditadura. “Antes precisamos pensar nos conceitos de democracia e liberdade nas sociedades capitalistas”, afirmou Pedro Marin. “A Coreia hoje tem conselhos populares nas fábricas, os conselhos populares supremos, há conselhos de professores, de bairros, tudo é muito coletivista. As cidades são pequenas, mas muito organizadas. A vida cotidiana se torna democrática”, defendeu o jornalista. 

Ele e o colega André Ortega exaltaram o país asiático, considerando que até se mudariam para a terra de Kim Jong-Um. “A realidade da Coreia do Norte não é a que está nos jornais”, disse Ortega. “Mas se a Coreia do Norte fosse essa loucura que dizem, ainda assim eu preferiria morar lá, pois lá teria acesso à universidade, não morreria na porta de um hospital. As organizações de bairro se unem para cuidar dos parques e calçadas, tudo é muito mais democrático do que aqui”, acrescentou ele. 

Os palestrantes ignoraram, no entanto, dados da Anistia Internacional dos Estados Unidos e da Human Rights Watch, que acusam a Coreia do Norte de violar brutalmente os direitos humanos. Ainda em 2014, um relatório das Nações Unidas já trazia denúncias de execuções, tortura, desaparecimento de pessoas e da existência de campos de trabalho forçados, pessoas submetidas a estupros, assassinatos, morte por inanição e experimentos médicos. 

2 – Coesão do povo 

Os jornalistas que foram até a UFABC também defenderam a existência de uma coesão, com viés socialista, entre o povo da Coreia do Norte. “Hoje a Coreia vive um processo socialista, uma ditadura do proletariado, que está avançando no seu papel de suprimir a burguesia. Pratica o princípio da organização comum, de grupos unificados nas fábricas, nos conselhos locais. A nomeação de delegados nesses conselhos mantém a coesão do povo”, argumentou Ortega. 

Não é isso o que aponta, novamente, a Anistia Internacional. A existência de campos de trabalhos forçados na Coreia do Norte mostra que coesão entre governo e povo é algo longe de ocorrer no país. De acordo com a AI, a Coreia do Norte pratica nesses campos as chamadas “limpezas de sangue”: um indivíduo comete uma falta contra o regime e três gerações de sua família são punidos. Daí a presença massiva de crianças nesses lugares. 

Imagens de satélites mostram que há pelo menos 16 campos de concentração na Coreia do Norte, e que o número de presos poderia chegar até 200 mil pessoas. O governo admitiu a existência desses espaços, criados para que os cidadãos “reflitam sobre suas ideologias”. 

Shin Dong-hyuk, um ativista norte-coreano que hoje vive na Coreia do Sul, é uma testemunha do horror implementado pelo regime norte-coreano. Ele nasceu em um campo de concentração, de onde conseguiu escapar em 2005, em uma fuga digna de cinema. Durante os anos em que viveu no Campo de internamento de Kaechon, conhecido como Campo 14, Shin Dong-hyuk presenciou mutilações, espancamentos, assassinatos, tortura e fome. Ele mesmo foi obrigado a assistir a execução pública de sua mãe e de seu irmão. 

A vida e a proeza de Shin Dong-hyuk de escapar foram escritas no livro “Fuga do Campo 14”, do jornalista Blaine Harden, que contém muitos detalhes sobre a vida nada fácil dos presos políticos da Coreia do Norte. 

Em outro livro, “Nada a Invejar”, a jornalista norte-americana Barbara Demick apresentou uma série de relatos de refugiados norte-coreanos, tanto de críticos do regime quanto de pessoas que não necessariamente se desiludiram com o país. Eles falam sobre como as famílias vigiam umas as outras e de seus vizinhos, tornando qualquer cidadão um possível delator. 

3 – Governo moderado 

Assim como Cuba, abordaram os palestrantes, a Coreia do Norte vive um cerco e um embargo econômico, o que prejudica a economia do país, principalmente por causa da crise energética causada pela dificuldade de acesso ao petróleo. Segundo Ortega e Marin, os Estados Unidos temem o uso de armas nucleares por Kim Jong-Um e de ter os interesses em expandir o imperialismo norte-americano ameaçados. “Mas os coreanos não pensam em lançar mísseis, não querem a guerra ideológica”, disse Ortega. “Há gente muito moderada na Coreia do Norte, que busca a diplomacia”, sustentou. 

As recentes declarações de Kim Jong-Un demonstram, no entanto, que essa diplomacia já estaria perto do limite. “Todos os EUA estão ao alcance de nossos mísseis”, disse o líder norte-coreano após o lançamento intercontinental no final de julho. 

4 – Sem isolamento 

Pedro Marin e Andre Ortega também não consideram a Coreia do Norte um país isolado do resto do mundo, do ponto de vista da tecnologia. O que haveria, segundo eles, é uma preocupação com a penetração de outras culturas. “A Coreia tem interesse em aproximar seu povo da cultura popular, e rejeitar a cultura reacionária, o que eu acho bom”, disse Ortega. “Nós também somos isolados, ao nosso modo”, acrescentou, explicando que o país dispõe de uma rede intranet com acesso mundial restrito. 

“Os coreanos gostam muito de Abba, conhecem o futebol brasileiro, acessam as notícias internacionais. E sabem que os Estados Unidos são o Diabo”, disse o jornalista, que esteve recentemente em Pyongyang. “Eu visitei o Palácio de Cultura do Povo, onde encontrei CDs da Shakira, livros do Harry Potter. Além disso, em bibliotecas há computadores muito avançados com uma vasta biblioteca musical para todos os gostos.” 

Apesar do apelo ao pop, os palestrantes não chegaram a abordar como o acesso dos coreanos a informações é controlado no país. A intranet norte-coreana, por exemplo, só permite o acesso a sites aprovados pelo governo. Apesar do acesso à internet ser liberado para quem tem computador, a compra do equipamento também depende da aprovação do governo e pode custar meses de salário. 

No ano passado, uma falha de segurança permitiu que uma empresa de tecnologia conseguisse acessar todos os sites do país. Descobriu-se que havia apenas 28 sites disponíveis para a navegação pelos norte-coreanos. Entre esses endereços, estão o da agência de notícias estatal, páginas de receitas e esportes. 

Para acessar outras mídias, como novelas e programas de TV de redes internacionais, no entanto, os coreanos recorrem ao contrabando de DVDs, apontou um estudo da InterMedia. 

5 – Se a Coreia do Norte é um inferno, nós também vivemos em um 

No evento da UFABC, os palestrantes citaram um passado glorioso da Coreia do Norte, com resultados expressivos em termos de saneamento básico, redução do analfabetismo e combate de doenças do Terceiro Mundo, até os anos 1980. No entanto, o presente sem espaço para debates sobre liberdade democrática e direitos humanos não chegou a ser comentado. “Divergências podem surgir, mas não vou defender a derrubada do regime”, afirmou Ortega. “Falamos de ditadura na Coreia do Norte sem partir do pressuposto que o Brasil e a América Latina vivem uma barbárie imoral. Os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do mundo, a maioria de negros. No Brasil apenas 8% da população tem capacidade completa de ler e interpretar um texto, e 17 milhões de crianças vivem no segmento de baixa renda. Se a Coreia do Norte é um inferno, nós também vivemos em um”. 

Para os palestrantes da UFABC, não é possível criticar a Coreia do Norte sem olhar para as mazelas do sistema capitalista.

Apesar das dificuldades que existem em território brasileiro, a comparação feita por Ortega merece um importante contraponto. Um estudo desenvolvido pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit mostra posições bastante diferentes entre Brasil e Coreia do Norte em termos de democracia em 2016 – o Index of Democracy. Cento e sessenta e sete países foram avaliados, numa escala de 0 a 10, considerando 60 indicadores, como pluralismo e processos eleitorais, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. 

O Brasil obteve uma pontuação de 6,9 e ficou em 51º lugar no ranking. Já a Coreia do Norte teve 1,8 pontos e ocupou o 167º posição, a última do levantamento. O primeiro lugar ficou com a Noruega, com 9,93 pontos na escala. São diferentes colocações que implicam na forma com que o governo permite que os cidadãos desenvolvam ao máximo seus potenciais e tenham sua dignidade humana respeitada quando o assunto é decidir a respeito de si mesmo e de seu próprio futuro.

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