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O Tompkins Park, localizado na Alphabet City, na década de 80: refúgio das drogas e traficantes. No detalhe, o Tompkins Park atualmente
O Tompkins Park, localizado na Alphabet City, na década de 80: refúgio das drogas e traficantes. No detalhe, o Tompkins Park atualmente| Foto: Reprodução

“Eu trabalhava em um negócio em que a violência fazia parte da rotina. Era como ser soldado em uma guerra, você espera violência. E houve algo que aconteceu naquela época na Nova York do final dos anos 1980 que eu nunca vou esquecer. Tinha um filme há muitos anos, chamado “Operação França”, que falava sobre heroína que vinha da Europa e entrava nos Estados Unidos. O diretor, William Friedkin, era muito famoso e ele ia fazer um filme sobre o DEA (Drug Enforcement Administration, a agência do governo americano dedicada ao combate às drogas), então eu tive que levá-lo comigo por uma semana para ele saber como era ser um agente do DEA, para ter um senso da realidade. Em um dos dias que ele estava com a gente, nós executamos um mandado de busca em uma crack house em Washington Heights. Fomos até lá com vários agentes e eu os mantive do lado de fora até ter certeza de que estava seguro. Levei Friedkin pra dentro e eu nunca vou esquecer o que aconteceu a seguir. De algum jeito uma mulher pulou nas costas de um dos agentes que estava carregando uma arma de fogo. Esta arma disparou para cima, não acertou em ninguém, mas o barulho foi muito alto, quase ensurdecedor. Naquela situação havia uma pequeno garoto, de uns nove anos talvez, sentado no sofá daquela mesma sala, lendo uma revista em quadrinhos e ele sequer olhou quando a arma disparou. Você pode imaginar o nível de violência que esta criança estava acostumada a assistir, que aquilo não a incomodou?”.

Este relato foi contado por Robert Stutman, ex-chefe do escritório do DEA na cidade de Nova York nos anos 1980 e 1990. A história dá um panorama do que era viver na maior cidade do mundo naquela época, assolada pela violência e enfrentando um problema que até então era desconhecido no país: o crack.

A primeira vez que Stutman ouviu falar da droga foi em setembro de 1985, quando um de seus agentes foi até ele para dizer que haviam encontrado frascos de uma droga que eles não conheciam em vários pontos do bairro Harlem. “Eles chamam isso de crack, o agente me disse”. A equipe do DEA então descobriu que apesar de o crack ser feito a partir da cocaína, a diferença é que o efeito desta nova droga durava apenas alguns minutos, ao contrário do pó, que pode durar horas, e que era vendido muito barato — houve uma época em Nova York que uma pedra era vendida por US$ 2.

“Alguns pequenos traficantes de drogas descobriram como fazer crack, não é necessário ser um químico para fazer isso, e resolveram vender para os usuários na rua. Antes disso, a menor quantia em dinheiro que uma pessoa poderia gastar para comprar cocaína era cerca de US$ 80 dólares por uma dose. Aí o crack começou a ser vendido por US$ 8. Então as pessoas que antes não podiam comprar cocaína começaram a comprar crack e o uso da droga se espalhou muito rápido”, conta Stutman.

A partir daquele momento, a cidade de Nova York começou a viver uma epidemia de crack. Alphabet City, no Lower East Side, e Washington Heights, mais ao norte de Manhattan, foram as regiões mais afetadas neste período. Quem caminha por esses lugares hoje, seguros para moradores e visitantes, não imagina que, no final de década de 1980, Alphabet City era uma região tomada por gangues e em Washington Heights algumas ruas eram praticamente um “drive-thru” de drogas, onde os usuários nem precisavam parar o carro para comprar crack.

Cena do documentário "Crack: Cocaína, Corrupção e Conspiração":  em Washington Heights algumas ruas eram praticamente um “drive-thru” de drogas, onde os usuários nem precisavam parar o carro para comprar crack .
Cena do documentário "Crack: Cocaína, Corrupção e Conspiração": em Washington Heights algumas ruas eram praticamente um “drive-thru” de drogas, onde os usuários nem precisavam parar o carro para comprar crack .| Netflix

Segundo relatório do Departamento de Polícia de Nova York, em 2016 a cidade de Nova York registrou 335 assassinatos. Em 1990, no auge epidemia de crack, houve 2.262 assassinatos, dos quais 7,9% eram diretamente relacionados ao tráfico de drogas ou cometidos por pessoas que estavam sob o efeito de alguma droga, segundo relatório do FBI. “A cidade era muito violenta”, enfatiza Stutman.

Primeiras ações contra o crack em NYC 

A primeira reação do governo americano frente a esta crise foi aumentar o cerco policial e as prisões nas áreas mais críticas. Em Alphabet City, região sudeste de Nova York, o DEA e o departamento de polícia encheram a área de policiais e começaram a prender muitos pequenos traficantes de rua. Em Washington Heights a mesma ação foi feita. “Começamos a prender um monte de gente, e eu mesmo estava apoiando a operação, só o que a gente não estava percebendo que, fazendo isso, estávamos apenas mudando o problema de lugar, para duas ou três quadras adiante”, diz Stutman.

Chefe do Departamento de Psicologia da Universidade de Columbia, premiado neurocientista e autor de “Um preço muito alto”, publicado no Brasil, Dr. Carl Hart também é de Nova York e lembra deste episódio.

“Nós gastamos muito dinheiro prendendo muitas pessoas na nossa sociedade, e algumas delas ainda estão na cadeia. E elas fazem parte de uma minoria racial. Aqui nos Estados Unidos nós ficamos envergonhados por causa disso e então mudamos a nossa abordagem”, conta Hart.

Estudos feitos pela National Bureau of Economic Research afirmam que a população negra foi a mais afetada com estas ações de repressão da polícia e com a epidemia de crack. Stutman falou que o crack era considerado problema de pessoas negras e que a primeira resposta das autoridades foi colocá-las na prisão. “Foi uma forma de racismo, mas que muita gente não entendia como racismo naquela época”, recorda.

A partir destas ações policiais, a violência se espalhou pela cidade inteira. Foi então que as autoridades da polícia e do departamento antidrogas perceberam que prender pequenos traficantes e usuários não iria resolver o problema.

As medidas que deram certo em NYC 

Uma nova abordagem então foi pensada para tentar resolver a epidemia de crack e de violência em Nova York. Segundo o ex-chefe do DEA na cidade, quatro ações foram feitas em conjunto.

A primeira delas foi colocar policiais nas áreas mais críticas para fazer rondas a pé, não com a intenção de prender, mas com o propósito de conhecer as pessoas que viviam na região e dar a elas uma sensação de segurança. “Desta forma, os trabalhadores, pessoas pobres, poderiam se sentir seguras ao sair de casa e fazendo isso elas poderiam renovar esta área”.

A aplicação da lei também continuou acontecendo, mas com outro enfoque. Em vez de prender pequenos traficantes que vendiam crack nas ruas, as autoridades de segurança focaram seus esforços para pegar o escalão mais alto do tráfico de cocaína.

“Se continuássemos prendendo pessoas do nível mais baixo do tráfico, chegaria a um ponto que teríamos que prender crianças de dez ou 12 anos, que eram os vigias destes pequenos vendedores de crack. Então mudamos nossa abordagem e fomos atrás de quem fornecia a cocaína para os vendedores de crack. Isso não foi fácil, levou tempo para planejar e fazer boas operações, mas isso fez com que diminuísse a disponibilidade de cocaína na área para ser transformada em crack”, afirma Stutman.

Além disso, o governo americano investiu na prevenção e educação. “Você dá ao crack uma associação tão ruim, que mesmo as pessoas que são usuárias de drogas vão dizer que não querem usar isso, que é muito ruim”, conta Stutman.

Drug Courts

Outra medida tomada foi a de organizar um sistema de tratamento que estivesse disponível para as pessoas que quisessem se recuperar do vício das drogas. Nos Estados Unidos, as “Drug Courts”, uma espécie de tribunal especializado para atender usuários de drogas que cometeram crimes não violentos, surgiram em 1989, na Flórida, e se tornaram um caso de sucesso no tratamento de dependentes.

A juíza Jodi Debbrecht Switalski, que trabalhou nos tribunais de tratamento em Michigan e é reconhecida pelo seu trabalho na luta contra a epidemia de drogas sintéticas e opioides nos Estados Unidos, explicou como funcionam as Drug Courts.

“O indivíduo é exposto ao sistema de justiça criminal se ele cometeu algum crime, e como as cortes de tratamento são voluntárias, os usuários de drogas decidem se querem enfrentar a justiça criminal ou o tratamento, que não é um processo fácil, porque a pessoa tem que ficar sóbria, ir à recuperação, passar por diversos processos para ficar saudável”, afirma Switalski.

Entretanto nem todos os dependentes de drogas que cometeram crimes são elegíveis para as Drug Courts. Aqueles que cometeram delitos mais graves, como abuso sexual e assassinato, representam um risco maior, então são encaminhados para outros tribunais. Pessoas que representam um risco mais baixo também não são selecionadas para as Drug Courts, porque geralmente ficam em liberdade condicional, em observação.

Segundo o instituto nacional de Justiça dos Estados Unidos, em 2015 existiam 3.142 Drug Courts no país. Switalski conta que os custos que elas representam são muito inferiores aos gastos de se manter uma pessoa presa. “Por exemplo, na minha jurisdição, custa em torno de US$ 60.000 (R$ 314 mil) para manter uma pessoa presa por ano, e sei que em alguns lugares este valor chega a US$ 90.000 (R$ 471 mil). Já o protocolo de tratamento custa US$ 1,37 por dia, então significativamente o custo é menor”.

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