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A indústria de Gurgel foi pioneira do carro elétrico. O empresário estava determinado a criar o primeiro automóvel 100% nacional.
A indústria de Gurgel foi pioneira do carro elétrico. O empresário estava determinado a criar o primeiro automóvel 100% nacional.| Foto: Divulgação

Numa das reuniões semanais da diretoria na fábrica da Gurgel, em Rio Claro, interior de São Paulo, o empresário João Augusto Conrado do Amaral Gurgel mostrou aos diretores uma peça que havia dado problema no painel de um modelo X-12 e descreveu as mudanças que precisavam ser feitas. Dois meses depois, o diretor técnico entregou a peça com as modificações. Mas o empresário já não se lembrava do pedido. “Quem foi o idiota que pediu para fazer essa mudança?”, perguntou.

O constrangimento foi generalizado. Sem saber como denunciar o próprio chefe, o secretário pegou discretamente o livro de atas. “Quem pediu a alteração nessa peça foi o senhor, doutor Gurgel”. Fingindo dúvida, o empresário revidou: “Fui eu mesmo?! Então vamos fazer assim de agora em diante, porque este idiota sabe das coisas!”

O bom humor de João do Amaral Gurgel só não superava sua disposição e capacidade de trabalho. Foi o primeiro e até agora único empresário brasileiro a produzir um carro totalmente projetado e desenvolvido no país. Um feito que o levou a ser comparado ao industrial americano Henry Ford, criador da linha de montagem na indústria automobilística.

Tesla tupiniquim

Do início, na década de 60, produzindo minicarros motorizados para crianças e karts de competição, ao pedido de autofalência em 1994 e o fechamento em 1995, houve um período de desenvolvimento industrial e tecnológico contagiante. Os veículos produzidos pela equipe de Gugel eram vendidos mesmo quando a empresa adotava estratégias ousadas e arriscadas, como a de lançar no mercado dez mil lotes de ações, para se capitalizar, sob o mote de que os compradores teriam direito preferencial de adquirir as primeiras nove mil unidades produzidas do modelo BR-800. Noventa por cento das ações da Gurgel Participações S.A. foram negociadas. Era 20 de maio de 1988.

Como, então, uma indústria automobilística que vinha obtendo bons resultados e, principalmente, tinha a simpatia do consumidor pôde falir? Por duas vezes, João do Amaral Gurgel confiou a ampliação do seu sonho ao aporte de capital público. Em dezembro de 1991, os governadores de São Paulo, Antonio Fleury Filho, e o do Ceará, Ciro Gomes, se comprometeram a liberar verbas de US$ 80 milhões, que seriam complementadas por mais US$ 80 milhões do BNDES, que condicionou a liberação do dinheiro à participação dos governos estaduais. O capital seria aplicado no Projeto Delta, que previa a produção de um carro popular montado de acordo com as características da região onde seria vendido, e na fábrica de Fortaleza, que seria a montadora, distribuidora de veículos para toda a Região Nordeste e linha de produção de todas as peças necessárias. O empresário, com curioso espírito visionário, escolheu o Nordeste para instalar a nova fábrica porque era a região com maior necessidade de criação de empregos.

Além da estratégia de se posicionar da melhor maneira naquela parte do território nacional e passar a produzir as caixas de câmbio feitas sob encomenda na Argentina, Gurgel não escondia a empolgação com a possibilidade de criar cerca de 6.000 empregos diretos e perto de 50.000 indiretos. “A melhor maneira de gerar empregos produtivos é dar apoio à iniciativa privada capaz de produzir bens de consumo, em todas as áreas da necessidade humana e na escala necessária”, disse, num depoimento ao seu assessor de imprensa na época, Paulo Facini. Mas o dinheiro, inexplicavelmente, nunca foi liberado e os credores não tiveram a mesma boa vontade do empresário, que já tinha adquirido o terreno, construído a fábrica e comprado os equipamentos da Citroën.

Ranário

Gurgel ainda tentou obter recursos na Sudene e no BNDES. Apesar de ser bom pagador, tendo recebido felicitações da presidência do banco por sua performance e pela pontualidade nos pagamentos, não recebeu a ajuda que esperava do governo federal, naquela época presidido por Itamar Franco. Descobriu-se depois que a Sudene preferiu emprestar dinheiro, para ficarmos num exemplo apenas, ao senador Jader Barbalho, responsável por um ranário que só recebeu mesmo as placas.

Um ano antes, o empresário tinha sofrido um duro golpe do governo federal. As regras do IPI, que taxavam em 5% o modelo BR-800 da Gurgel e 25% os outros carros, foram alteradas isentando do imposto todos os carros com volume menor do que 1000 cm³. A Fiat rapidamente lançou o Uno Mille, com mais espaço e desempenho que o veículo brasileiro. A Gurgel ainda tentou uma reação, lançando o BR-Supermini, mas o leite já tinha sido derramado. Embora resistente, a carroceria de fibra de vidro do carro não agüentou essas três pedradas. A empresa faliu em 1995 com uma dívida de US$ 3 milhões e ninguém disposto a ajudá-la. Não se soube na época, como não se sabe até hoje, oficialmente, se investir numa empresa que dava certo era um negócio arriscado.

“Às vezes, visto o macacão e trabalho com os funcionários. Porque há momentos em que um produto tem que sair de acordo com aquilo que eu quero. Se não estiver, esquece, joga fora”. Quem trabalhou ou conviveu com João do Amaral Gurgel sabia que o grande empreendedor também era mecânico, projetista, torneiro, ou o que fosse preciso para resolver um problema ou achar uma solução.

Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, em 1949, e com especialização no General Motors Institute nos EUA, em 1953, Gurgel também trabalhou como executivo de grandes montadoras (Ford e General Motors) antes de realizar o sonho de fabricar automóveis no Brasil. "Desde criança, queria fabricar veículos. Costumava consertar carrinhos e bicicletas, e isso já indicava certa aptidão para o negócio”, disse numa entrevista. Mesmo assim, enfrentou resistências aos seus planos ainda na escola. Depois de apresentar o projeto de um automóvel popular batizado de "O Tião" teve de ouvir do professor: “Carro não se fabrica, João Augusto, se compra”. Mas o jovem João Augusto não acreditou.

Antes de montar a própria indústria, no início da década de 1960, nenhuma montadora queria vender motores para o empresário. A saída foi produzir o Gurgel Junior, um carro para crianças com motores estacionários e, depois, fabricar karts de competição. Somente em 1965 convenceu o presidente da Volkswagen a ceder o chassi. Mas isso também não foi fácil. O presidente da empresa alemã no Brasil só aceitou a proposta depois que viu e gostou do projeto do carro. Gostou tanto que pediu a Gurgel que construísse um protótipo, apresentado no Salão do Automóvel daquele ano. Em 1º de setembro de 1969, a Gurgel Indústria e Comércio de Veículos Ltda. foi fundada com capital inicial de US$ 50 mil.

O protótipo ganhou o nome de Ipanema e foi o pontapé inicial para a produção de veículos utilitários e esportivos. O primeiro veículo da empresa era um bugre destinado ao campo equipado com motor VW 1300 e chassi de Fusca. As vendas eram feitas numa revenda própria e, depois, pela Volkswagen. A evolução do protótipo para o Ipanema que chegou ao mercado mostra como o empresário planejava suas ações. Com base numa pesquisa, descobriu que o Ipanema substituía o jipe nas fazendas e resolveu investigar o mercado. Viu que o jipe era um carro muito duro, feito para a guerra e, portanto, bastante incômodo para o uso que se fazia no Brasil.

A empresa transformou o Ipanema melhorando o conforto e anatomia dos bancos, desenhados com o auxílio do Hospital Godoy Moreira, especialista em coluna. “Conhecendo bem a filosofia da Ford, concluí que o jipe Willys só era economicamente viável a partir de mais de trezentos carros por mês. Naquele tempo, a Ford estava fazendo 340 por mês. Achei que poderia dividir esse mercado, pois nosso custo industrial era muito baixo”. E conseguiu. Em 1983, a Gurgel produzia 160 carros por mês. A divisão do mercado de jipes antecipou a decisão da Ford em parar de fabricá-los e a indústria brasileira, pouco tempo depois, dominava 75% do segmento nacional de jipes.

Logo depois, a empresa criou o modelo Xavante, que ganhou novas versões em 1972, o X-10, e em 1976, o X-12, que caiu nas graças das Forças Armadas, venceu todas as concorrências e foi adquirido pela Aeronáutica, Exército e Polícias Militares.

A inauguração da fábrica, construída com financiamento do BNDES, aconteceu em 1975 no município paulista de Rio Claro, às margens da Rodovia Washington Luís, a cerca de 180 quilômetros de São Paulo. A empresa, dois anos depois, alterou sua razão social para Gurgel S.A. Indústria e Comércio de Veículos.

Carro elétrico

O lançamento do primeiro carro elétrico da América Latina, a van Itaipu E-500, foi realizado em 1981. Para recarregar bastava conectar a bateria a uma tomada doméstica. O carro, porém, foi um fracasso de vendas pelo fraco desempenho. Além de não andar mais do que 70 km/h, as baterias tinham vida útil curta e representavam 1/4 do preço do carro. Mesmo assim, a empresa manteve o desenvolvimento de protótipos elétricos, sem conseguir projetar um que fosse economicamente viável. Gurgel acreditava que a energia do futuro era a elétrica e que terras férteis deveriam produzir alimentos. Não fazia sentido para ele subsidiar álcool enquanto o Brasil exportava gasolina barata. A empresa, em 1982, apresentou ao mercado o utilitário G-800.

A Gurgel lançou em 1984 o Carajás, veículo com suspensão independente nas quatro rodas, motor dianteiro VW 1600cc na versão Diesel e VW 1800cc na versão refrigerado a água que mais tarde passaria a ser 2000cc. A empresa já tinha aberto seu capital mediante a oferta pública de 3,3 milhões de ações preferenciais, única forma de obter o capital necessário ao plano de expansão. A empresa resolveu criar também a Gurgel Tec Tecnologia de Veículos S.A., subsidiária da marca destinada a pesquisar e desenvolver novos modelos, além de cuidar do licenciamento e exportação da tecnologia criada no Brasil.

Dois anos depois, a empresa relançou o modelo X-12, reestilizado e sob um novo nome: Tocantins. Nessa época, a indústria iniciou os projetos para a criação de um carro totalmente fabricado no Brasil, pois os carros da Gurgel eram fabricados com motor Volkswagen. No dia 7 de setembro de 1986, a empresa apresentava ao mercado o Carro Econômico Nacional (Cena), ou Gurgel 280, com motor que dispensava correias e distribuidor, por isso considerado revolucionário. Mas a sigla teve de ser suprimida por conta de uma ação ajuizada pela assessoria jurídica do falecido piloto Ayrton Senna, incomodado pela semelhança de sonoridade com seu sobrenome. Sem saber, Senna nos poupou do terrível slogan que Gurgel pretendia usar (“o Cena entra na cena nacional”). O empresário desistiu do nome, mas não deixou escapar a piada: “Mas não vamos esquecer que o rio Senna já corria na França muito antes do Ayrton ser piloto...”.

O BR-800 (BR de Brasil e 800 representando o volume de deslocamento em seu motor de dois cilindros horizontais contrapostos), o novo nome do Cena, o primeiro carro totalmente projetado e desenvolvido no país, foi lançado em 1988. A carroceria de fibra de vidro era construída sobre um chassi tubular e impulsionado por um motor de dois cilindros contrapostos horizontalmente (boxer), refrigerado a água, alimentado por carburador e movido a gasolina, mas o Câmbio ainda era argentino. O desenvolvimento era de 33cv. Naquele ano, foi constituída a Gurgel Motores S.A., controlada pela Gurgel Participações S.A.

Três anos depois, a indústria aperfeiçoou o desenho, interior e transmissão, do BR-800, agora batizado de BR-Supermini. O novo carro ficou mais bonito e com melhor aerodinâmica. O porta-malas ganhou tampa, os vidros, que eram corrediços, passaram a ter movimento vertical, e o painel, completo, tinha toca-fitas com a marca Gurgel. A direção, mesmo sem a assistência hidráulica e com volante pequeno, era leve facilitando as manobras. Contava aí os poucos 3,19 metros de comprimento. O que deixava a desejar era o consumo, embora esse fosse um ponto valorizado para fábrica. A média ficou em torno de 13,5 km/l, segundo teste realizado em 1992 pela revista Quatro Rodas. O teste mostrou ainda que o carro levava 35 segundos para ir de 0 a 100 km/h, desenvolvimento aquém do esperado se comparado com os concorrentes. A velocidade máxima também não convenceu: apenas 115,5 km/h, atribuída à falta de um diferencial mais longo e uma quinta marcha.

Problemas financeiros

Em 1991 a empresa enfrentava graves problemas financeiros por causa dos financiamentos não liberados pelos governos de Ceará e de São Paulo. Apesar disso, foi o melhor ano da empresa: 3.746 carros produzidos. No ano seguinte, a Gurgel Motores entrou em concordata. A situação piorou com os lançamentos do Chevette Junior (1992) e Gol 1000 (1993) com as mesmas vantagens fiscais do IPI. E a greve de funcionários da alfândega brasileira em 1992, impedindo a chegada de componentes da Argentina, fez a produção cair para 1.671 veículos.

Os problemas foram elevados à milésima potência com a quebra no ritmo de produção, no fluxo de caixa da empresa e, conseqüentemente, acúmulo das dívidas. Gurgel bateu todas as portas que podia, mas nenhum estado se dispôs a pagar sua dívida de US$ 3 milhões nem financiar a construção de uma fábrica sua. Tragicamente, no início da década de 1990 as projeções da empresa davam conta de uma produção anual de 60 mil veículos a partir de 1996, o ideal para equilibrar as finanças de acordo com os investimentos feitos em equipamentos, pesquisas e desenvolvimento de recursos humanos. A fábrica em Rio Claro chegou a ter 1.150 funcionários.

Uma das razões para o sucesso (como não?) da Gurgel foi a estratégia de ocupar nichos de mercado desprezados pelas grandes montadoras multinacionais estabelecidas no Brasil, entre eles o do carro popular de preço acessível, baixo consumo de combustível e de manutenção barata. Não à toa, foi premiada diversas vezes: Troféu Internacional à Qualidade, concedido em 1980 pelo Editorial Office da Espanha; Prêmio Tecnologia Liceu, concedido pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo em 1981; VII Troféu Europa à Qualidade de 1993, concedido pelo Editorial Office e pelo Trade Leaders’ Club, que congregam 12.000 associados em 112 países. E uma das razões para sua derrocada foi tentar competir com as grandes montadoras no segmento de carros populares, um negócio que as multinacionais dominavam por terem capital e tecnologia pronta.

A paixão que os donos dos modelos Gurgel ainda mantêm pelo carro é similar aos fanáticos pelas motos Harley Davidson. Como se fizessem parte de um clube exclusivo que, ao contrário dos clubes exclusivos, comemoram a entrada de novos sócios (são organizados, promovem encontros e mantêm sites dedicados à empresa). Talvez porque se tratasse de um carro totalmente brasileiro, talvez pela estratégia da empresa em se valer disso, o fato é que essa relação de amor pelo Gurgel não deverá terminar nem quando o último veículo parar de rodar e se transformar num objeto de admiração por uma ideia que deu certo.

João do Amaral Gurgel, depois de lutar por oito anos contra o mal de Alzheimer, morreu no dia 30 de janeiro de 2009, em São Paulo.

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