
Há pouco mais de duas décadas, o mundo vivia o auge do maior fenômeno editorial juvenil da nossa era: a saga de Harry Potter. A série de livros retirou da escritora inglesa J.K. Rowling do anonimato (e da pobreza) e apresentou uma geração ao mundo da literatura. A maior parte dos 500 milhões de volumes vendidos em uma década teve como público consumidor as crianças e adolescentes, que formavam filas às portas das livrarias à espera dos novos lançamentos da série.
O rico universo do bruxo de Hogwarts e a narrativa cativante atraíam um público formado com pouco conhecimento dos clássicos e, ao mesmo tempo, familiarizado desde cedo com uma linguagem própria criada pelos desenhos animados e videogames. Para alguns pais, especialmente cristãos, a série assustava por causa da temática da bruxaria. Mas, no cômputo geral, Harry Potter foi elogiado por educadores como um grande sucesso ao atrair os jovens para o mundo dos livros. Se J.K. Rowling não tinha a profundidade de Sheakspeare, seus livros serviam ao menos como uma porta de entrada para a leitura. Mas, 23 anos depois do primeiro livro de Harry Potter, é possível avaliar com segurança se o efeito Harry Potter na formação de leitores foi duradouro.
As evidências mostram que, de forma geral, o sucesso comercial de Harry Potter não resultou em uma tendência no longo prazo. Na verdade, boa parte das pesquisas mostram que o percentual de crianças e adolescentes que lê por prazer tem caído desde que a série foi lançada. Por exemplo: no Reino Unido, terra de J.K Rowling, o hábito de leitura caiu entre 1998 e 2003, mesmo período em que Harry Potter crescia em popularidade.
Nos Estados Unidos, o tempo médio gasto com leitura atingiu, em 2018, o menor índice já registrado, de acordo com o Bureau de Estatísticas do governo federal. Desde 2004, o índice passou de quase 23 minutos diários para aproximadamente 16 minutos. O tempo de leitura perde, de longe, para os minutos gastos assisindo televisão (quase 3 horas), praticando esportes e socializando. Até mesmo a categoria “pensando/relaxando” parece ser mais popular.
Ascensão do smartphone
A maré tecnológica das duas últimas décadas parece ter sido mais forte do que os eventuais efeitos do fenômeno Harry Potter. Em 1997, quando a primeira parte da saga foi publicada, já existia TV a cabo e videogame, mas ambos não eram portáteis; só podiam ser usados durante um período específico e um lugar específico. De lá para cá, os jovens conheceram o Ipod, o smartphone, o Ipad, o Facebook, o YouTube, o Twitter e o Instagram. Os telefones inteligentes só se tornaram populares depois que o último livro da saga já havia sido publicado, em 2007.
A confirmar esta tese, um estudo publicado em 2019 pela organização Common Sense Media mostrou que crianças americanas de 8 a 12 anos passavam cerca de cinco horas por dia diante de uma tela. No mesmo grupo, somente 38% diziam gostar “muito” de ler - o índice era de 41% em 2015.
A idade também é um fato que acaba afastando as crianças dos livros. “Entre os jovens, o gosto pela leitura (...) cai substancialmente conforme eles envelhecem”, diz o levantamento da Common Sense Media. O percentual dos que respondem gostar “muito” de ler passa de 38% na faixa dos 8 a 12 anos para 22% no grupo entre 13 e 18.
É possível, portanto, que o efeito positivo notado por educadores durante o auge da febre Herry Potter tenha sido apenas a antecipação de uma propensão à leitura que se concretizaria de uma forma ou de outra. Por esta hipótese, jovens que não tinham predisposição à leitura não se interessaram por Harry Potter de qualquer maneira. Assim, o sucesso da saga não causou um aumento no número de leitores no cômputo geral - apenas adiantou em alguns anos, ou elevou em intensidade, um interesse que já viria de qualquer forma.
O debate ainda leva a uma segunda questão: mesmo que a hipótese de que Harry Potter tenha criado uma geração de novos leitores, que tipo de livros eles consumiram dali em diante? Mais do mesmo, com obras de apelo adolescente e pouca profundidade? Ou obras clássicas e mais apropriadas para um leitor experiente? As pesquisas acadêmicas não chegam a esse nível de detalhamento, já que muitas variáveis se colocam no caminho. Mas, se o sucesso comercial é um indicador confiável, o resultado não é dos melhores. Pelo menos no Brasil, onde, em 2019, a lista de mais vendidos, repleta de livros de auto-ajuda, foi encabeçada por “A Sutil Arte De Ligar O F*da-Se” e incluiu, dentre outros,"As Aventuras na Netoland com Luccas Neto". Fora da ficção, Harry Potter não fez mágica.
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