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Remédios homeopáticos
Remédios homeopáticos: nenhuma eficácia verificada pela ciência| Foto: Pixabay

Imagine a seguinte situação: uma pessoa tem, sozinha, R$10.000 em mãos. Ela então divide o dinheiro entre cem pessoas, o que faz com que cada uma tenha agora R$100. Um desses indivíduos divide sua centena de reais entre mais cem pessoas, e cada um desse segundo grupo agora tem R$ 1. Por fim, um desses portadores do solitário real resolve partilhá-lo com outra centena de pessoas, e tem-se assim um terceiro grupo de indivíduos com R$ 0,01 cada. Pergunta: entre a pessoa que tinha R$ 10 mil e a que tem um centavo, qual delas tem maior poder de compra?

A resposta — o portador dos dez mil reais — parece óbvia. Ou não, se aplicarmos a essa questão monetária o mesmo raciocínio da homeopatia, a prática que defende que uma solução diluída várias vezes tem mais poder de cura que a substância original. Essa forma de tratamento não encontra lastro na ciência, e mesmo assim é uma das 29 Práticas Integrativas e Complementares (PIC) oferecidas desde 2018 pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aos brasileiros.

Falta de comprovação científica de eficácia não é exclusividade da homeopatia, talvez a mais famosa das PIC presentes no rol do SUS. Geoterapia, Aromaterapia, Medicina Antroposófica, Imposição das Mãos e Constelação Familiar são outros exemplos de terapias que, mesmo não tendo resultados de eficácia reconhecidos pela ciência, continuam sendo ofertadas na rede pública de Saúde e custeadas pelos impostos pagos pelos cidadãos.

Geoterapia

O que é? A prática é descrita pelo Ministério da Saúde como a utilização de argila, barro, pedras e cristais “com objetivo de amenizar e cuidar de desequilíbrios físicos e emocionais por meio dos diferentes tipos de energia e propriedades químicas desses elementos”. O texto afirma que a geoterapia “facilita o contato com o Eu Interior”, e que “a energia dos raios solares ativa os cristais e os elementos, desencadeando um processo dinâmico e vitalizador capaz de beneficiar o corpo humano”.

O que diz a ciência: Em 2001 o psicólogo Christopher French, do Goldsmith’s College de Londres, aplicou um teste em 80 voluntários. Metade do grupo recebeu cristais verdadeiros, e a outra metade réplicas de vidro — mas todos foram informados que suas pedras eram reais. Eles receberam um informativo sobre as potenciais sensações que teriam ao meditar com as pedras nas mãos: formigamento, aumento na temperatura das mãos, nos níveis de energia e na sensação de bem-estar, relaxamento na cabeça, estimulação do cérebro e ativação de todos os níveis de consciência. Dos 80 voluntários, apenas seis não sentiram nenhuma das sensações, e não houve grande diferença entre os resultados de quem segurava os cristais e os que manusearam um pedaço de vidro.

Aromaterapia

O que é? A lista de PIC trata a Aromaterapia como uma prática secular adotada por “terapeutas holísticos” para “estabelecer o reequilíbrio físico e/ou emocional do indivíduo” por meio das “propriedades dos óleos essenciais” extraídos de vegetais. Esses óleos podem ser administrados tanto na forma de infusão ou mesmo aplicados na pele do paciente.

O que diz a ciência: Uma pesquisa realizada pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, estudou a ação de óleos essenciais de alho e casca de canela, entre outros, na bactéria Borrelia burgdorferi, causadora da doença de Lyme. Apesar de seus promissores resultados in vitro, a aplicação de óleos essenciais como antibióticos não é sugerida pela universidade.

“Embora as pessoas afirmem que óleos essenciais são remédios naturais para um grande número de doenças, não há pesquisas suficientes para determinar sua efetividade na saúde humana. Alguns estudos mostram que há benefícios no uso de tais óleos, enquanto outros simplesmente não mostram melhora nos sintomas. Os resultados em testes clínicos são inconclusivos”, alerta o site da instituição.

Medicina Antroposófica

O que é? A terapia, informa o Ministério da Saúde, é uma abordagem terapêutica integral com base na antroposofia, que “avalia o ser humano a partir da trimembração, quadrimembração e biografia” e “considera bem-estar e doença como eventos ligados ao corpo, mente e espírito do indivíduo.” A prática se dá por meio de uma “abordagem holística com foco em fatores que sustentam a saúde por meio do reforço da fisiologia do paciente e da individualidade, ao invés de apenas tratar os fatores que causam a doença.”

O que diz a ciência: A Associação Brasileira de Medicina Antroposófica fez uma consulta ao Conselho Federal de Medicina pedindo o reconhecimento da terapia como uma nova prática médica – uma “ampliação da arte de curar”, nos termos do documento. A resposta foi negativa: apesar de toda a documentação recebida, o CFM afirma não dispor “de elementos que caracterizem a Medicina Antroposófica como uma nova forma de prática médica.”

“Acerca da terapia medicamentosa, entendo que o CFM deve recomendar aos médicos que usem os chamados medicamentos antroposóficos com extrema cautela, evitando abandonar terapêuticas já sedimentadas, por alternativas desprovidas de experimentações baseados nos métodos científicos”, alerta o parecer.

Homeopatia

O que é? Mais uma terapia holística abarcada pelo Ministério da Saúde, a homeopatia é descrita pela pasta como uma abordagem que “vê a pessoa como um todo, não em partes”, cujos tratamentos se baseiam “em sintomas específicos de cada indivíduo e utiliza substâncias altamente diluídas que buscam desencadear o sistema de cura natural do corpo.”

O que diz a ciência: Em 2005 a revista científica The Lancet publicou um editorial pedindo pelo fim da homeopatia. O texto criticava duramente a prática, e trazia os resultados de um estudo que comparou 110 testes de medicamentos homeopáticos com outros 110 testes de medicamentos convencionais. A pesquisa concluiu que onde houve resultados positivos com a homeopatia, isso se devia ao efeito placebo — o nível de recuperação esperado por conta da mera expectativa de melhora, e do conforto psicológico de crer-se tratado, e que é independente da eficácia objetiva da medicação.

Resultados semelhantes foram encontrados em estudos realizados na Austrália, e nos Estados Unidos uma agência federal de proteção ao consumidor determinou que medicamentos homeopáticos incluam em seus rótulos a informação de que não há prova válida de sua eficácia. No Brasil, o Ministério da Saúde comemora no 21 de novembro o Dia da Homeopatia.

Constelação Familiar

O que é? Criação do psicoterapeuta alemão Bert Hellinger nos anos 1980, a Constelação Familiar é apresentada pelo Ministério da Saúde como uma “abordagem sistêmica, energética e fenomenológica” que visa “encontrar a ordem, o pertencimento e o equilíbrio” entre os membros de uma família. Quando a vida dos indivíduos segue as “ordens do amor”, reforça o texto, a vida flui de modo equilibrado e harmônico; já a transgressão de tais leis pode levar à “perda da saúde, da vitalidade, da realização, dos bons relacionamentos, com decorrente fracasso nos objetivos de vida.”

O que diz a ciência: Classificada pelo próprio criador como uma terapia fenomenológica, a Constelação Familiar não encontra amparo em quaisquer estudos que possam comprovar sua eficácia. Tal fato foi notado pela Ordem dos Psicólogos de Portugal, que em 2019 emitiu um parecer no qual não reconhece esse tipo de tratamento como algo enquadrado no campo da psicologia.

“Resulta claro da inexistência de informação e, particularmente, de evidência científica, que as ‘Constelações Familiares’ não constituem um modelo terapêutico reconhecido pelas ciências psicológicas. Não há informação e muito menos estudos científicos que permitam compreender exatamente o que é e como funcionam essas constelações familiares, ou como se avalia sua eficácia. (...) As constelações familiares não apresentam enquadramento científico, teórico ou acadêmico, nem socioprofissional, não havendo referência à formação idônea na área, nem qualquer tipo de regulamentação profissional”, destaca o documento.

Pensamento similar aos dos profissionais da Polônia. Por lá, um estudo de 2011 já deixava claro que o método das Constelações Familiares não preenche requisitos básicos do Código de Ética dos Psicoterapeutas, “o que faz com que seja difícil tratar esse método como uma terapia”.

No Brasil a prática é incentivada inclusive pelo Judiciário, que vem usando as constelações em casos como o de uma mãe que pedia a internação compulsiva da filha, dependente química. Por usar técnicas de atuação e representação, a sessão mediada pelo juiz da Vara Cível de Valença, próxima a Salvador-BA, acabou tendo uma situação no mínimo insólita: um dos presentes foi escalado para interpretar a pedra de crack, objeto de vício da jovem.

Imposição de Mãos

O que é? Presente em terapias como o reiki, a prática terapêutica da imposição de mãos é descrita no rol das PIC como “um esforço meditativo para a transferência de energia vital (Qi, prana) por meio das mãos com intuito de reestabelecer o equilíbrio do campo energético humano, auxiliando no processo saúde-doença.”

O diz a ciência: Um grupo de pesquisadores canadenses e norte-americanos visitou a China no fim da década de 1970 para investigar os poderes de um certo doutor que curava seus pacientes pela transferência de qi (pronuncia-se chi), a energia vital, por meio das mãos. Em um primeiro momento, a interação entre médico e paciente se deu em um mesmo ambiente, com o Dr. Lu manipulando a energia vital a dois metros e meio da paciente, que se contorcia em convulsões a cada movimento do mestre.

Para colocar o método à prova, os pesquisadores colocaram médico e paciente incomunicáveis e em salas separadas, e condicionaram as interações do Dr. Lu ao resultado de um “cara e coroa” de uma moeda lançada. Por quatro lançamentos seguidos, o mestre não efetuou nenhuma manipulação de energia vital. Neste mesmo momento, a paciente em outra sala passava por convulsões intensas. Quando o acaso fez com que Dr. Lu pudesse mandar seu qi para a paciente, ela permaneceu estática. A experiência é descrita em detalhes no livro “The Hundredth Monkey: And Other Paradigms of the Paranormal”, editado por Kendrik Frazier.

Dez anos depois a jovem estudante Emily Rose, então com apenas 11 anos de idade, publicou um estudo científico no qual demonstrava que os praticantes do “toque terapêutico” simplesmente não conseguiam detectar a energia emanada por outras pessoas. O experimento comandado por ela foi simples e direto, e realizado em uma feira de ciências da escola onde estudava.

Separados por um anteparo, os sensitivos tinham que tentar sentir com as mãos o campo energético de outras pessoas, sem saber se havia alguém ou não do outro lado. Deixada ao acaso, a probabilidade de acerto se tinha ou não uma pessoa na sala seria de 50%. Os resultados dos praticantes de toque terapêutico foram piores, com 44% de acerto.

CFM e Ministério da Saúde

Em 2018, o Conselho Federal de Medicina se posicionou contra a adoção das PIC ao rol de tratamentos oferecidos pelo SUS, alegando que tais práticas não apresentavam resultados e eficácia comprovados cientificamente. “A decisão de incorporação dessas práticas na rede pública ignora prioridades na alocação de recursos do SUS”, informava a nota do CFM, que também afirmava que “a prescrição e o uso de procedimentos e terapêuticas alternativos, sem reconhecimento científico, são proibidos aos médicos brasileiros”.

Procurado pela Gazeta do Povo, o CFM afirmou que mantém a posição tomada quando da incorporação das práticas integrativas complementares pelo Sistema Único de Saúde. Questionada se o CFM havia mudado de opinião em relação à homeopatia, reconhecida pelo conselho como especialidade médica desde 1980 e ainda carente de confirmação científica em seus métodos, a assessoria de imprensa confirmou que o conselho segue endossando a prática.

O Ministério da Saúde foi procurado para comentar os investimentos de recursos públicos em tratamentos sem embasamento científico, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação da reportagem.

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