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Panorama da Universidade de Harvard em 1906.
Panorama da Universidade de Harvard em 1906.| Foto: Collection of Arader Galleries/Wikimedia Commons

Irving Babbitt foi um daqueles intelectuais que, no início do século XX, destacaram-se por se desprenderem da mão invisível que buscava aglutinar a opinião docente em torno de uma visão naturalista e romântica do Homem. Desde o advento de Jean-Jacques Rousseau e de Charles Darwin como sustentáculos da modernidade, duas certezas passaram a ser transmitidas catequeticamente por universidades e mídias progressistas: somos animais evoluídos, e como tais, a nossa psiquê e modo de vida são apenas expressões dessa via naturalista do qual viemos; além disso, e de forma um tanto quanto paradoxal, o iluminismo francês nos fez crer que poderíamos dominar esta mesma natureza determinista, bem como a própria realidade como um todo, através de nossa razão.

Detemos, dessa forma, o tribalismo como o nosso DNA, não passamos de extensões anamnéticas e evolutivas do que fomos até ontem em alguma caverna da África; a nossa razão, assim pensando, é fruto involuntário do acaso furtuito. Mas calma lá, se trata de uma razão que dominamos e evoluímos com maestria, a tal ponto que, agora, podemos ser como deuses. Somos os pós-macacos, e chegamos a tal nível de esclarecimento, que agora podemos nos dar ao luxo de desprezar tudo aquilo que a civilização nos legou. Acreditamos ser possível criar o nosso próprio mundo, do zero ― ex nihilo (do nada) ―, usando somente as nossas capacidades racionais.

Tal Homem: um amontoado de evolução com pretensões divinas, parece ser para Irving Babbitt uma criatura desprovida de qualquer sentido. Contra tais percepções este pensador virtuosamente batalhou, cravando no peito dos Estados Unidos, na cátedra de uma das maiores universidades do mundo, a inscrição que nenhum naturalista, materialista, e demais ideólogos do século XX, gostaria de ler: ex nihilo nihil fit (do nada, nada vem).

Vida

Irving Babbitt nasceu em 2 de agosto de 1865, em Ohio, nos Estados Unidos. Filho de Edwin Dwight Babbitt e Augusta Darling Babbitt, cresceu na famosa Cincinnati. Irving teve quatro irmãos: Thomas Darling, Lucius Albert, Emily ― que morreram ainda bebês ―, e a caçula Katherine. Irving foi casado com Dora Babbitt, com quem teve dois filhos: Esther e Edward Sturges Babbitt.

Em 1885 entrou para a universidade de Harvard com o intuito estudar literatura clássica e línguas. Pouco tempo depois já havia se tornado pesquisador de literatura clássica pela mesma universidade, recebendo posteriormente o convite para lecionar na College of Montana, uma conceituada universidade particular de artes clássicas.

Em seguida se especializou na École Pratique des Hautes-études, um apêndice universitário da famosa Sorbonne, na França. Lá estudou literatura Pali, e por consequência, o budismo ― o que traria enorme influência sobre seu pensamento filosófico maduro.

Voltando da França, lecionou na Williams College, em Williamstown, Massachusetts, porém ficou por lá apenas um ano, pois em 1894 foi convidado a voltar para a universidade de Harvard como professor assistente. Em 1912, por fim, assumiu a cadeira oficial de literatura francesa na mesma universidade. Em 1921 foi honrado com uma indicação ao American Academy of Arts and Sciences [Academia americana de artes e ciências], o que lhe deu certo destaque intelectual além-mar; em 1923, foi convidado a lecionar como professor visitante em Sorbonne, universidade por qual sempre nutriu enorme respeito.

Como professor em Harvard, notabilizou-se por defender abertamente um reavivamento humanista contrário ao naturalismo e ao utilitarismo crescentes no meio intelectual americano e europeu. O fez de forma aberta e corajosa, pela primeira vez, em 1895, na universidade de Wisconsin, onde foi convidado a ministrar uma palestra denominada What is Humanism [O que é o Humanismo]. Mais tarde ele e seu amigo Paul Elmer More denominariam tal vertente de New Humanism [Novo Humanismo]. Tal corrente de ideias nunca decolou de forma vigorosa enquanto estavam vivos, mas também jamais chegou a ir para a UTI do esquecimento intelectual. Mantém-se viva, atuante e, de tempos em tempo, conforme a história remonta suas barbáries cíclicas, volta a ser lembrada e elevada aos altos postos de reflexão.

Foi professor do eminente poeta, dramaturgo, filósofo e crítico literário: T. S. Eliot. Eliot nutriu grande estima pelo professor e suas ideias, chegando a escrever ensaios sob a influência do Novo Humanismo. Todavia as constantes críticas ácidas e injustas sobre o cristianismo ― conforme julgava Eliot ― acabou afastando os dois. Mas, como lembra Russell Kirk, Eliot nunca deixou de nutrir um real respeito pelo seu antigo professor.

Irving Babbitt morreu “dignamente” em Cambridge ― como descreveu Kirk no prefácio de sua mais famosa obra Democracy and Leadership [Democracia e Liderança] ―, no dia 15 de julho de 1933, vítima da dolorosa e autoimune colite. Além do já citado Democracy and Leadership (1924), o intelectual publicou mais cinco livros em vida: Literature and the American College (1908) [A literatura e a faculdade americana], The New Laokoon (1910) [O novo Laocoonte], The Masters of Modern French Criticism (1912) [Os mestre da moderna crítica francesa], Rousseau and Romanticism (1919) [Rousseau e o Romantismo], e On Being Creative and Other Essays (1932) [Sobre ser criativo e outros ensaios], deixando inúmeros artigos e ensaios para a posteridade.

Ideias antigas para um bom homem moderno

O pensador construiu a carreira acadêmica no campo da literatura clássica. Seu trabalho, de forma sumária, tinha como objetivo principal a análise comparativa das obras clássicas com aquelas produzidas pela modernidade. Uma certeza fulcral se sobressaiu quando ele fez uma imersão filosófica nas literaturas produzidas após o advento do iluminismo: os indivíduos ― principalmente os homens das letras ― estavam deliberadamente abandonando o reservatório humanístico que duramente foi construído e mantido durante milênios.

Tal Panteão ético foi erigido a partir de um tipo de tesouro que tem mais a ver com a maturidade das tentativas e fracassos, montanhas e mais montanhas de experiências enriquecidas e maturadas pelo tempo humano, que por sua vez gerou uma ética segura para os homens, do que com o acúmulo doentio puro e simples de moralidades temporais. Não à toa muitos ― como Ernest Hemingway ― o considerava um tradicionalista acorrentado à antiguidade, pois abertamente Babbitt defendeu aquilo que, de tão antigo, se tornou perene e indispensável.

Afirma o autor em Democracia e Liderança:

Ao abandonar como simples preconceito as formas tradicionais que são, em considerável medida, as experiências fundamentadas de qualquer comunidade particular, o Estado perde sua continuidade histórica, seu eu permanente, que une seu presente ao passado e ao futuro.

Seria muito simplório encerrá-lo num reacionarismo de ideias, porque todos aqueles que conviviam com ele sabiam que o professor não era um reacionário, apenas um crítico mordaz de uma visão de mundo recém adotada pela intelligentsia como a verdade das verdades. Babbitt não se encontrava entre aqueles que poderiam ser denominados católicos tradicionais, muito menos protestante, ele tinha uma visão ecumênica e benigna frente a religião, apesar de tratar com certa porosidade os dogmas de fé do cristianismo ― principalmente os católicos. A sua relação com a religião ainda é tema de debate entre intelectuais e entusiastas; fato é que, com certeza, o debate religioso foi um campo de interesse.

Estudou com afinco o budismo e considerava as religiões, principalmente as de matrizes judaico-cristãs, um grande sótão ético da humanidade, “local” onde guardamos com segurança ― durante milênios ― tanto a história humana quanto as concepções morais que fizeram do Ocidente mais que um mero experimento ideológico.

No entanto, ainda assim, a postura de Babbitt se mantinha sempre crítica e afastada de compromissos fideísticos, jamais foi subserviente a ideias e fés que pretendiam ao dogmatismo inquestionável. Apesar de manter um suporte corajoso aos princípios históricos do Ocidente, jamais deu a entender que tais princípios participavam de uma eternidade temporal indiscutível. Por isso mesmo, afogá-lo em uma retórica acusativa de “tradicionalismo moralista”, como fez o escritor americano James T. Ferrel, está longe de condizer com a realidade.

A crítica: por que tantos odiavam Babbitt

Quais foram os alvos preferidos do crítico literário? Jean-Jacques Rousseau, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Charles Darwin, Karl Marx, além, é óbvio, dos defensores das teorias elaboradas pelos citados. O professor Irving Babbitt ― explanando de forma geral ― via nas teorias desenvolvidas por esses personagens a encarnação das ideias desumanizadoras que ressoaram a partir da filosofia, da psicologia e da literatura modernas. O Novo Humanismo, como escola crítica, acredita que o Homem não pode ser reduzido à mera evolução animal, que a ética não pode advir de uma liberdade tribal vazia e idílica, e, por consequência, dispensa a moral consequencialista-utilitarista.

Não se trata de não acreditar na evolução das espécies, se trata de não criar uma conexão ética entre a razão humana e as teses evolutivas e materialistas de Darwin e Marx. Babbitt acredita que a modernidade decaiu em uma espécie de duplo padrão de ideias simplórias e paradoxais.

Em suma, o que a modernidade nos apresentou foi, de um lado: os românticos naturalistas da estirpe de Rousseau e Darwin, tentando nos conduzir à condição de homens livres e inocentes, tais como um “macaco melhorado”; e, por outro lado, temos Francis Bacon e Karl Marx conduzindo o homem tribal através de um processo educacional libertador e um sistema econômico revolucionário, vias pelas quais tal “homem melhorado” atingiria um patamar racional tão excelente que seria capaz de dominar a sua própria natureza e história, e dessa maneira, recriar a realidade política e substancial humana.

Eis o paradoxo moderno que Babbitt denominou de “o problema envolvido nas tentativas de ser ao mesmo tempo humilde e autoconfiante”. O iluminismo, principalmente de cunho francês, versa sobre como um homem de constituição tribal e pouco civilizado pode se tornar um deus arquiteto de sociedades e almas perfeitas.

Sobre isso, resumiu Paul Hazard em A crise da consciência europeia de maneira sensacional:

Era preciso, pensava-se, destruir o antigo edifício que abrigara precariamente a grande família humana, e a primeira tarefa era um trabalho de demolição. A segunda, reconstruir e preparar as fundações da cidade futura. De modo não menos imperioso, e para evitar cair em um ceticismo anunciador da morte, era preciso edificar uma filosofia que renunciasse aos sonhos metafísicos, sempre enganadores, para estudar as aparências que nossas frágeis mãos podem alcançar e que bastariam para nos satisfazer; era preciso construir uma política sem direito divino, uma religião sem mistério, uma moral sem dogmas. Era preciso forçar a ciência a deixar de ser um simples jogo intelectual, para se tornar, decididamente, um poder capaz de subjugar a natureza; por meio da ciência conquistaríamos, sem sombra de dúvida, a felicidade. Com o mundo assim reconquistado, o homem o organizaria para o seu bem-estar, para a sua glória e para a felicidade do porvir.

O Novo Humanismo, como resposta a tudo isso, deixa claro que a razão do homem o diferencia de forma profunda de qualquer animal, que a nossa erudição é um bunker intransponível para as demais espécies. Mas ainda que a razão do Homem seja o maior milagre da história humana, e a prova de que o paralelismo cultuado pelos românticos pensadores naturalistas não passa de uma construção sem arrimo, Irving Babbitt deixa claro em Rousseau and Romanticism que a razão do homem, apesar de maravilhosa, também é maravilhosamente limitada para qualquer pretensão de perfeição.

A razão humana dá aos indivíduos a capacidade de controlar seus impulsos e reprovar atitudes que não tragam nenhum tipo de bem; a capacidade de imaginar e antecipar soluções, problemas e perigos; organizar o seu mundo físico e mental; satisfazer seus anseios de forma cortês e civil; além de elaborar projetos magnânimos e explorar as possibilidades da realidade.

Não podemos imaginar, caso queiramos manter a razoabilidade, que tudo isso possa ter sido um acaso estelar, acidente evolutivo, macaquices revolucionárias, ou fruto de um método educacional pensado por um intelectual. No entanto, afirma novamente o crítico americano: isso não indica, nem de perto, que a razão humana seja suficiente para elaborarmos uma sociedade perfeita, ou para afastarmos do homem a sua condição de limitação.

O Novo Humanismo

“Simplificando bastante, pode-se dizer que o humanismo verdadeiro acredita que o homem é um ser distinto, regido por leis peculiares à sua natureza: existem a lei para o homem e a lei para as coisas”, afirmou Russell Kirk ao comentar o pensamento de Irving Babbitt.

O que Irving elabora em suas teorias, se trata de um conceito moral afastado da concepção agostiniana e cartesiana, cuja moralidade advém da apreensão substancial da graça, no caso de Santo Agostinho, ou da razão, no caso de René Descartes. Para o crítico, a moralidade é sim fruto da razão, mas não aquela razão afastada da realidade histórica que a precede, a razão pura e desprendida cultuada pelo iluminismo francês.

Na esteira de Adam Smith e Edmund Burke, Irving Babbitt crê que a moralidade diz respeito ao contexto no qual são formados os indivíduos, e não sobre as suas capacidades racionais de perceberem as regras morais soltas pelo ar. O crítico americano explica que são as experiências humanas recebidas por meio das tradições éticas que formam a manta de princípios que nos permite ser uma civilização ordeira, capaz de liberdade e astúcia intelectual.

Mas o que torna realmente inconveniente as afirmações de Babbitt é o fato que, indiscutivelmente, somente o homem é capaz de buscar melhoria moral, civilizacional e ainda criar argumentos altamente elaborados para convencer os demais a buscarem o mesmo caminho.

Ao mesmo tempo, somente o homem também é capaz de compreender as fronteiras intransponíveis de suas capacidades, lidando com a limitação de forma madura e produtiva. O tribal não reflete sobre como pode criar pesos e contrapesos políticos para o seu grupo, e nem considera criar uma Academia de Letras para premiar autores de pinturas em cavernas, da mesma forma que os golfinhos, por mais impressionantes que sejam, não elaboram tratados eruditos sobre as limitações de suas razões. E contra tais axiomas realmente é difícil de lutar, por mais romântico, utópico ou utilitarista que sejamos.

A civilização é obra árdua de incontáveis cabeças, em incontáveis situações, em incontáveis anos, melhorada, lapidada, e mil vezes revista antes de alçar voo aos postos de normatividade civilizacional; eis o contrato humano construído habilmente bem antes do contrato de Rousseau.

Esta é a herança do Homem, e é isso que Babbitt lutava por conservar: um humanismo que prega as virtudes como melhoramento do caráter moral, o apreço pelas experiências civilizacionais, e a contínua restauração da estética da alma e da cultura. Se houvesse uma imagem para materializar o papel do Novo Humanismo de Babbitt, ousaria propor a de um zelador da civilização ― papel que deveria ser primordial para os intelectuais, afirma o crítico.

O legado de Babbitt

O historiador brasileiro Alex Catharino, em seu breve livro sobre Russell Kirk, afirma que Irving Babbitt foi extremamente influente para o pensamento kirkiano. E isso é extremamente importante para uma análise mais concreta do seu legado, afinal, foi Kirk, em grande medida, o responsável por uma elaboração acadêmica e política daquilo que hoje denominamos de “conservadorismo americano”, ou “conservadorismo esclarecido”; bem como o necromante que invocou dos mortos o estudo acadêmico sobre o conservadorismo filosófico nos Estados Unidos, no século XX.

Além de Russell Kirk, T. S. Eliot e Richard Weaver, já citados anteriormente; Babbitt influenciou também Gertrude Himmelfarb, Anthony Daniels (Theodore Dalrymple), Ted V. McAllister, entre outros. Na verdade, podemos dizer que todos aqueles que estão envolvidos com o desenvolvimento, pesquisa e apologia das ideias tidas como “conservadoras”, Babbitt assume o papel de pilar de sustentação. Russell Kirk chegou a afirmar: “O trabalho sobre a restauração humana dependerá de um remanescente que possa entender as afirmações de Babbitt e se esforçar por implementá-las”.

A teoria humanista que desenvolveu o professor americano arregimentou uma nova abordagem filosófica sobre a lei natural, colocando ― assim como Edmund Burke havia apontado ― a moral sustentada a partir das experiências acumulada pela história, bem como a ideologia política como um projeto pretencioso e mentiroso.

Se fosse preciso afirmar em uma palavra o que representou a atuação filosófica de Irving Babbitt, poderíamos dizer sem correr o risco de cair em erro: o americano versava sobre a capacidade do homem de manter as benesses que a humanidade nos legou, esforçando-se para construir caminhos e vias para melhorá-las ― na medida do possível ― para as gerações vindouras.

Irving Babbitt afirmava a seus alunos que não deveriam citá-lo em seus debates ― parecia ter certa repulsa a seguidores fiéis. Talvez isso explique um pouco o esquecimento que decaiu sobre ele durante algumas décadas; no entanto, cada dia mais as afirmações do saudoso professor “harvardiano” se mostram necessárias. Babbitt errou miseravelmente na tentativa de ser esquecido, assim como acertou assustadoramente em quase todas as suas ponderações sobre as consequências que o modernismo anticivilização traria.

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