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É curioso o fato de que a liberdade de expressão esteja sendo rotulada como instrumento de opressão, quando sempre foi considerada instrumento de libertação
É curioso o fato de que a liberdade de expressão esteja sendo rotulada como instrumento de opressão, quando sempre foi considerada instrumento de libertação| Foto: Pixabay

Se você perguntar a um conservador qual ideia predominantemente de esquerda é a maior ameaça à cultura de liberdade de expressão dos EUA, acredito que ele responderia sem hesitar: “A ideia de que a fala pode ser violenta”. É uma resposta compreensível. Afinal, dizer que a fala pode ser classificada como uma forma de violência não só é a alegação mais radical, mas também é a alegação mais usada para justificar e racionalizar a violência real – inclusive dentro das universidades.

Porém, há outra alegação – um pouco menos sinistra e, portanto, mais fácil de ser justificada. Ela é usada em debates que envolvem questões de raça, sexualidade e gênero, e pode ser traduzida da seguinte forma: nenhuma pessoa deve ser obrigada a “debater” sobre seu direito de existir. Liberdade de discurso é algo bom, mas um discurso que desumaniza é algo completamente diferente.

Por exemplo, ao argumentar que um homem não pode engravidar, você estará “eliminando” os transsexuais. Se argumentar que o casamento é uma união entre um homem e uma mulher, então você estará “desumanizando” os gays.

Outro exemplo, apontado por Jesse Singal em seu valioso boletim informativo, é o de ativistas que certa vez tentaram impedir a professora Heather Mac Donald de dar uma palestra para criticar o movimento Black Lives Matter, com o argumento de que “Heather não iria debater uma mera diferença de opinião, mas o direito dos negros de existir”.

Essas ideias extrapolaram os debates universitários e chegaram até o Vale do Silício, onde funcionários do Google se opuseram à presença do presidente da Heritage Foundation, Kay Cole James, em um comitê consultivo da empresa sobre inteligência artificial. Alegaram que não queriam debater sua “humanidade”, e que James (supostamente) acredita que algumas pessoas “nem deveriam existir”. Mais de 2,5 mil “Googlers” assinaram uma petição para retirá-lo do comitê e, no final das contas, o Google cancelou o comitê consultivo inteiro.

Se fosse verdade, seria muito séria a ideia de que James negue a humanidade de qualquer ser humano. Porém, não é verdade. A crença de que outra pessoa, criada à imagem de Deus e dotada por ele de certos direitos inalienáveis, também possa ser moralmente, filosoficamente ou cientificamente errada não é desumanizante. Ela não nega a existência de pessoa alguma, nem proclama que esse indivíduo não deveria existir.

Além disso, mesmo se achar (erroneamente) que está sendo desumanizado pelo ponto de vista do oponente, você deveria se recusar a ouvir suas ideias? No início deste mês, Singal tuitou esta verdade óbvia e desencadeou uma previsível tempestade online:

Em 90% das vezes, a alegação de que “não se deve debater com alguém que está argumentando contra o meu direito de existir” é simplesmente uma falsa tática de sabotagem. Mas se alguém de fato negar o seu direito de existir, e este alguém estiver em uma posição de poder e disposto a debater, não seria absurdo fugir do debate?

A discussão rapidamente descarrilhou para uma distorção bizarra da posição de Singal, com alegações de que ele teria argumentado incorretamente que abolicionistas negros, como Frederick Douglass, conseguiram, por meio da retórica, “levar seu povo à liberdade”. Ninguém acredita que a emancipação só foi conquistada graças ao debate e à troca de ideias, mas, por outro lado, não podemos subestimar a importância do debate e da troca de ideias para o avanço e articulação da luta abolicionista. Se hoje a escravidão é execrável nos Estados Unidos, não é apenas porque o Assalto de Pickett falhou no terceiro dia da Batalha de Gettysburg, entre o Exército da União e os Confederados.

Em um artigo publicado no The New Republic, Josephine Livingstone também provocou Singal, argumentando que “um debate é frutífero quando os termos da conversa são acordados por ambas as partes”. Isso é falso – muitas vezes o debate é mais valioso quando se expõe a má-fé ou hipocrisia da outra parte. Livingstone fez esta estapafúrdia declaração:

Vale notar que justamente os críticos do movimento de justiça social são obcecados com a liberdade de expressão e de debate: é o único princípio inviolável ao qual eles podem recorrer quando falham seus argumentos sobre questões reais.

Mas como saber se um argumento “falhou”, a menos que ele seja ouvido, questionado, avaliado e – obviamente – debatido? Um argumento não “falha” quando é simplesmente declarado falso. Ele falha quando é testado e não funciona.

É curioso o fato de que a liberdade de expressão esteja sendo rotulada como instrumento de opressão, quando sempre foi considerada instrumento de libertação. Comunidades historicamente marginalizadas nos Estados Unidos estão melhor agora ou em 1924, um ano antes de a Suprema Corte tornar a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão, aplicável aos governos estaduais e locais, ao julgar o caso Gitlow vs. Nova York? O próprio Douglass ponderou que a liberdade de expressão é o “grande mecanismo de renovação moral da sociedade e do governo”. Ele acertou quando disse que a liberdade de expressão era “o terror dos tiranos”.

Quanto menos relevantes os debates, maior a chance de ascensão de ideias falidas. E as monoculturas progressistas em setores universitários e no Vale do Silício estão avançando e defendendo a tese de que a fala pode ser violenta e de que as discordâncias desumanizam – especialmente quando envolvem questões de raça, gênero e sexualidade.

O caso da religião

É surpreendente que, agora que cristãos, judeus e muçulmanos podem – e devem – trabalhar juntos, frequentar as mesmas escolas e debater assuntos de fé, muitas pessoas estejam contestando a hipótese de que cristãos praticantes, ou pessoas de outras religiões tradicionais, possam trabalhar com (e muito menos debater) questões que dizem respeito aos cidadãos LGBT. Afinal de contas, questões de sexualidade são mais preocupantes do que aquelas ligadas à eternidade? Por que dizer que a fé de alguém é falsa soa menos ofensivo do que argumentar que homens não têm útero?

A história nos ensina que conflitos religiosos são a norma, não a exceção, e que rios de sangue foram derramados na tentativa de decidir disputas sobre dogma por meio da força das armas. Não obstante, os Estados Unidos alcançaram um nível de pluralismo religioso pacífico que é raro na história mundial. Provamos que é possível tolerar as diferenças religiosas e debater verdades absolutas – questões de identidade tão ou mais fundamentais quanto as categorias populares da política moderna interseccional.

É hora de reconhecer que a guerra cultural norte-americana é uma disputa religiosa, e incorporá-la ao pluralismo religioso que sempre existiu no país. Um cristão não “desumaniza” um homem gay por acreditar na moralidade sexual tradicional, e um homem gay não “desumaniza” um cristão por acreditar que a teologia na qual o outro baseou todas as decisões de sua vida não passa de uma lenda. Propor um limite à liberdade de consciência individual não é mais “desumanizante” do que propor um limite ao alcance de um estatuto de condescendência na esfera pública.

Por fim, que fala será realmente livre se não puder abordar os assuntos mais polêmicos? Debates sobre o pior filme da série Star Wars (ainda é 'A ameaça fantasma', mas 'O último Jedi' não fica longe…), ou mesmo sobre economia ou política externa, podem ser interessantes, e certamente terão importância, mas a ausência de debates sobre princípios fundamentais, como garante a Primeira Emenda, só representaria uma proteção superficial para uma fala superficial. Todo cidadão deve ser capaz de lidar com uma ideia que desafia seus valores mais fundamentais. Um pluralismo saudável requer nada menos que isso.

Tradução de Ana Peregrino.

©National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.

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