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Loja do Magazine Luiza, em Curitiba
O Magazine Luíza acaba por contrariar a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao pretender que os indivíduos não sejam iguais perante a lei.| Foto: Aniele Nascimento/Arquivo/Gazeta do Povo

O Magazine Luiza resolveu que é bonito e meritocrático usar critério racial para recrutar estagiários. A argumentação é similar à do livreto de Djamila Ribeiro: negros não conseguem emprego porque não aprendem inglês nem estudam, por isso as empresas devem baixar o nível para receber a raça dos desqualificados. (Racistas são os outros.)

Só que o Magazine Luiza foi mais longe, infringiu a Constituição (art. 7, XXX) e resolveu que agora vai contratar só estagiários negros. Segundo a empresa, é um absurdo “apenas” 16% dos seus líderes serem negros. Segundo o IBGE, 9,4% dos brasileiros se declaram pretos.

Como a empresa vai decidir quem é negro? O Estado brasileiro não é racista; não tem raça em documentos oficiais. Tem aquelas gambiarras infames para entrar em universidade e concurso público, mas brasileiro não recebe classificação racial definitiva por parte do Estado. A maioria dos brasileiros não tenta concurso nem universidade, por isso não se depara com os aviltantes tribunais raciais.

Na época da Inquisição era assim também: só os setores mais altos da sociedade aspiravam a certos postos e prebendas, e tinham de passar por um tribunal que julgava a limpeza do sangue, no qual era preciso ser cristão velho de quatro costados. A infâmia racista daquela época passou, briguemos para que esta passe também.

Ser de raça virou mérito 

O diretor executivo da Magazine Luiza, Frederico Trajano, dá tratos à bola para dizer que escolher negros por causa da raça é ser meritocrático. Raça é raça, mérito é mérito. Qualquer um em pleno gozo de suas faculdades mentais conseguirá conceber uma pessoa com raça “certa” e sem mérito, e outra com mérito e sem raça “certa”.

No seu texto, o Sr. Trajano tenta fazer crer que ser esforçado é ter mérito, o que não é verdade. O mérito se revela em feitos, não em sofrimento e esforço; do contrário, o talento e o mérito seriam inconciliáveis, pois ser talentoso significa justamente ter uma facilidade excepcional para executar uma determinada atividade, precisando de menos esforços.

Ainda que admitamos que ter mérito é sofrer ainda mais que Cristo pregado na cruz, e que isso é indissociável da origem pobre, continua sendo possível haver um branco com “mérito”. Afinal, nem todo branco é rico, e nem todo negro é pobre.

Que tem o Sr. Frederico Trajano a dizer para um branco pobre e sofrido que terá a oportunidade de trabalho negada em função de sua cor? Como o Sr. Trajano tem capacidades cognitivas suficientes para virar diretor executivo, há de convir que o fato de haver muitos negros na pobreza não implica que a totalidade dos pobres seja de negros. Como ele tem conhecimento do Brasil suficiente para concluir o Ensino Médio, saberá que a composição étnica deste país varia de região para região, e que os negros se concentram mais nas áreas urbanas das regiões Nordeste e Sudeste, logo, fora daí (na Amazônia, no Cerrado), a pobreza tende a não ser negra. A menos que se dê aquela maquiada e se chame pardo de negro. Se for assim, a coisa muda de figura, e a própria  dona do Magazine Luiza é negra.

Fica, então, a pergunta, Sr. Frederico Trajano da Magazine Luiza: o que é que você tem a dizer ao branquelo pobre, que veio do sertão do Ceará, se esforçou muito, e pretendia estagiar na sua rede? (Digo branquelo, para não poder nem passar por pardo.) E você acha que ele perderá essa chance sem que, ao mesmo tempo, ela vá de mão beijada para um negro de classe média urbana? O que o senhor tem a dizer sobre isso? Dirá que é mérito? Pela sua argumentação, gente da cor errada – não classe, cor – é incapaz de mérito.

Imagine ainda que bonito será se esse negro de condições materiais privilegiadas pensar igual a certas divas racialistas da internet, e se sentir à vontade para destratar todo trabalhador branco, tendo-os por moralmente inferiores por causa da cor de sua pele. Será revoltante a humilhação sofrida pelo trabalhador, e preocupante a deseducação empurrada aos meninos negros.

Igualdade jurídica é pilar do liberalismo e dos direitos humanos 

Quanto a esse branquelo pobre do sertão do Ceará, que existe, vale lembrar que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (art. 1), e que “todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (art. 2). Atrelar mérito a raça é contra os direitos humanos.

A Declaração é adepta do liberalismo político: considera que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”

Ora, a Constituição brasileira proíbe que “sexo, idade, cor ou estado civil” sejam critérios de admissão em trabalho. O Magazine Luiza quer que os não-negros não gozem desse direito de serem contratados a despeito de sua cor.

Logo, o Magazine Luiza contraria a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao pretender que os indivíduos não sejam iguais perante a lei, e que branquelos, judeus, japoneses ou caboclos, por mais que pobres, esforçados e competentes, sejam considerados indignos de mérito em função de sua raça.

Nazista também se achava racista do bem 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigida numa época em que o mundo acabara de descobrir o que se passava no III Reich, recém-derrotado. Os argumentos do Sr. Trajano poderiam ter sido usados pelo Reich; afinal, os judeus eram pintados como causa da miséria do trabalhador alemão ou ariano. Nem todo judeu era rico, mas os nazistas faziam de conta que eram. Trazer miséria ao judeu, barrar-lhe os empregos públicos, e depois o exercício de certas profissões, não implicava a melhoria da vida dos alemães, mas os nazistas faziam de conta que sim.

O nazista poderia apontar para o real sucesso de judeus em finanças e profissões liberais, e explicá-la não por causas históricas complexas, senão por maniqueísmo conspiratório. Poderiam fazer uma tabela que atestasse a porcentagem de judeus em tais postos ou áreas, para concluir que estavam “sobre-representados” de maneira criminosa. Poderiam até inventar o termo “judaísmo estrutural” para explicar as disparidades, se não estivessem bem com “judaísmo internacional”. O resto é história.

Se o Sr. Trajano quisesse ser um humanista, se quisesse aliviar a pobreza, que atuasse em favelas. Que levasse boa escola, ou distribuísse bolsas para escolas boas, ou desse educação financeira, ou ensino técnico, ou profissionalizante. Fizesse isso sem tratar as pessoas como cachorro, dividindo-as em raça.

Vai ser “liberal” assim na China! 

Falsos liberais, que são ou progressistas enrustidos, ou anarcocapitalistas sem dicionário, têm alegado que empresas privadas fazem o que bem entenderem. Que quem não goste, boicote. Pois muito bem: que as leis do Estado não valham mais em propriedades privadas, e que os Direitos Humanos não sejam universais.

Quem são os clientes do Magazine Luiza? Brasileiros de toda condição social, de todo o país. Muitos são iletrados, não têm internet, ou usam só pro zap-zap. Compram por preço. Quantos brasileiros têm condições de pesquisar os princípios das lojas em que compram, e quantos teriam condições de arcar com os custos de um boicote? Talvez uma meia dúzia no Leblon.

Como é irrazoável pretender que cada cidadão seja um fiscal da aplicação dos direitos humanos, existem leis do Estado e fiscais para resolver isso. Eu não teria como saber se a roupa que comprei foi feita por mão de obra escrava, ou se a loja do eletrodoméstico aplica seleção racista de empregados.

As leis brasileiras são claras quanto ao racismo no trabalho. Que sejam aplicadas. Se não forem, que ninguém se surpreenda quando os conglomerados resolverem sair imitando as práticas que publicitários levianos acham bonitas, e isso gerar um problema racial de mão de obra.

Quanto àqueles que não creem na universalidade de direitos humanos, que vão ser “liberais” assim lá na China. Lá, pode descumprir tudo. E dá dinheiro.

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