No começo de outubro três cientistas se reuniram na cidade de Great Barrington, no estado americano de Massachussets, e assinaram um manifesto propondo medidas mais liberais no combate à pandemia de Covid-19, como a abolição dos lockdowns e a volta total das atividades para aqueles considerados não vulneráveis, como jovens adultos e crianças. A abordagem chamada de “Proteção Focalizada” é a base do documento, conhecido como The Great Barrington Declaration, e desde sua publicação tem gerado controvérsias e sido alvo de críticas.
No manifesto, os epidemiologistas Martin Kulldorff (professor de Medicina na Universidade Harvard), Sunetra Gupta (professor na Universidade de Oxford) e Jay Bhattacharya (professor na Escola de Medicina da Universidade de Stanford) afirmam que as atuais políticas de confinamento estão produzindo efeitos devastadores na saúde pública, como queda nas taxas de vacinação infantil, agravamento nos casos de doenças cardiovasculares, diminuição dos exames para detecção e tratamento de câncer e deterioração da saúde mental. “Manter estas medidas em vigor até que uma vacina esteja disponível causará danos irreparáveis, com os mais desfavorecidos sendo desproporcionalmente prejudicados”, alerta o documento.
Os cientistas também alegam que a mortalidade causada pela Covid-19 é mais de mil vezes maior nos idosos e nos enfermos do que nos jovens. Entre as crianças, aponta o texto, a infecção pelo novo coronavírus é menos perigosa do que uma gripe comum. Por isso, dizem os autores do manifesto, é importante que se permita àqueles que apresentam um risco mínimo de morte pela doença que voltem a ter uma vida normal.
“Sabemos que todas as populações eventualmente alcançarão a imunidade do rebanho – ou seja, o ponto em que a taxa de novas infecções é estável – e que isso pode ser assistido por (mas não depende) de uma vacina”, diz o manifesto.
Desta forma, de acordo com a Declaração de Great Barrington, balanceando riscos e benefícios e deixando que as pessoas saudáveis tenham contato com o vírus para assim criar uma imunidade natural, as mortes seriam minimizadas, assim como os danos sociais causados pela Covid-19.
Por fim o manifesto sugere que medidas sejam adotadas para proteger os mais vulneráveis, os quais devem ser tratados como o alvo central no combate à Covid-19 por parte dos gestores de saúde pública.
Asilos e casas de repouso, por exemplo, deveriam minimizar o rodízio de funcionários, e dar preferência àqueles que já foram infectados pelo novo coronavírus. As compras de mercado e outros produtos essenciais, como remédios, devem ser entregues nas casas dos aposentados, que devem receber visitas de amigos e familiares de preferência do lado de fora das casas.
“Aqueles que não são vulneráveis devem ser imediatamente autorizados a retomar a vida normal. Medidas simples de higiene, como lavar as mãos e ficar em casa quando se está doente, devem ser praticadas por todos. Escolas e universidades devem estar abertas para o ensino presencial. Atividades extracurriculares, como esportes, devem ser retomadas. Jovens adultos de baixo risco devem trabalhar normalmente, em vez de trabalhar em casa. Restaurantes e outros negócios devem abrir. Artes, música, esporte e outras atividades culturais devem ser retomadas. Pessoas que estão mais em risco podem participar se quiserem, enquanto a sociedade como um todo desfruta da proteção conferida aos vulneráveis por aqueles que acumularam imunidade de rebanho”, conclui o manifesto.
Críticas e apoio
As críticas ao documento que propõe o modelo de imunidade de rebanho surgiram de vários lados. Uma dessas críticas, um artigo escrito por Nafeez Ahmed para o site Byline Times, ataca o American Institute for Economic Research (AIER), think tank que sediou o encontro dos cientistas em Massachussets. Mas, mais do que apontar defeitos no modelo proposto pelo trio de cientistas, o autor do artigo questiona os financiadores do AIER. De acordo com Ahmed, “a Declaração parece subsistir em uma rede de lobby político rotineiramente envolvida em negar os riscos para a saúde humana de indústrias poderosas, como combustíveis fósseis e tabaco”.
No Brasil, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), também publicou um artigo no qual elenca falhas na abordagem dos signatários da Declaração de Great Barrington. Para a Abrasco, o manifesto contra os lockdowns e a favor da imunidade de rebanho “agride o amplamente majoritário consenso internacional a respeito das medidas para o enfrentamento da pandemia do COVID-19. Consenso este construído pelo aprendizado contínuo desses oito meses de adoecimento e perdas de vidas por todo o mundo”.
No texto publicado, a Abrasco reforça a possibilidade, ainda que pequena, de ocorrência de casos graves de Covid-19 entre os jovens. A associação sugere que pode haver colapso no sistema de saúde pública e defende que a proporção de pessoas que apresentam anticorpos contra o vírus é muito pequena quando confrontada com os índices de doentes e de mortos.
A Abrasco relaciona a declaração a uma suposta dificuldade do presidente americano Donald Trump – “defensor ardoroso da estratégia apontada pelo documento” – em sua campanha para reeleição e, por fim, afirma que o trio “sugere implicitamente que a vida de um jovem vale mais do que a vida de uma pessoa mais idosa”, o que seria um problema ético inaceitável.
Uma semana depois de publicada a declaração, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom afirmou, em entrevista coletiva, que confiar na imunidade de rebanho adquirida de forma natural seria um problema ético e científico. “Permitir que um vírus perigoso e que ainda não é completamente conhecido circule livremente é simplesmente antiético. Não é uma opção”, disse.
“A imunidade de rebanho”, alertou Adhanom, “é um conceito usado para a vacinação, na qual toda uma população pode ser protegida de um determinado vírus assim que um limiar de vacinação é atingido. A imunidade de rebanho é atingida protegendo as pessoas de um vírus, não expondo-as a ele. Nunca na história da saúde pública a imunidade de rebanho foi usada como estratégia para responder a um surto, muito menos em uma pandemia”, alertou.
Mas da mesma OMS veio uma opinião que concorda, pelo menos em parte, com a Declaração de Great Barrington. Em entrevista recente à revista britânica The Spectator, David Nabarro, diretor da organização para a Covid-19, afirmou que medidas extremas de confinamento e lockdowns não vão vencer a guerra contra o coronavírus, que deve se estender por um período ainda razoável de tempo. “Apelo para os líderes mundiais: parem de utilizar lockdowns como ferramenta principal, desenvolvam sistemas melhores, trabalhem juntos e aprendam juntos. E lembrem, os lockdowns têm uma consequência que jamais deve ser subestimada, que é fazer os pobres terrivelmente mais pobres ainda”.
O modelo de lockdown também foi criticado por um estudo que comparou os dados de mais de 50 países. O resultado dessa comparação trouxe dados interessantes: a Covid era mais mortal em lugares com populações mais velhas e maiores taxas de obesidade, mas a taxa de mortalidade não era menor em países que fecharam suas fronteiras ou aplicaram o bloqueio completo. Outra pesquisa analisou 23 países e 25 estados dos EUA com políticas amplamente variadas. A descoberta deste levantamento foi de que a tendência da mortalidade era semelhante em todos os lugares, uma vez que a doença se instalou: o número de mortes diárias aumentou rapidamente por 20 a 30 dias e depois caiu rapidamente.
Censura no Google?
Ao se fazer uma busca por Great Barrington no Google, o resultado que leva ao site oficial do manifesto aparece entre os últimos da lista. Em outros países, internautas reclamam que o mecanismo de busca sequer apresenta um meio de se chegar à declaração, e mesmo assim oferece resultados a sites que criticam a proposta.
Pelo menos dois tópicos sobre o mesmo tema foram abertos no serviço de ajuda do Google, e nos dois casos há questionamentos sobre uma possível censura da empresa contra a iniciativa dos cientistas. Nos dois casos, a mesma resposta vinda de um funcionário da empresa identificado como Danny Sullivan não cita nenhuma forma de censura e afirma que o fato de a página aparecer em uma determinada posição na lista dos resultados da busca é fruto de um sistema automatizado.
“Pode levar um tempo para nossos sistemas automatizados aprenderem o suficiente sobre novas páginas como esta, para que elas se classifiquem melhor. Esse atraso pode variar de acordo com o país. Esta página já aparecia e continua aparecendo na primeira página de busca nos EUA. Por exemplo, o site oficial de Joe Biden [candidato democrata à presidência dos EUA] levou algum tempo para aparecer na primeira página de pesquisas que o buscavam, algum tempo depois que ele foi lançado. Tenha em mente que as classificações podem mudar com frequência”, informou.
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