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Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes, com vista da casa do brigadeiro Manuel Ferreira e o Pelourinho
Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes, com vista da casa do brigadeiro Manuel Ferreira e o Pelourinho| Foto: Acervo Biblioteca Nacional

O baiano Manuel Ferreira de Araújo Guimarães nasceu na cidade de Salvador em 1777. Pouco ou quase nada se conhece sobre suas origens; sabe-se, todavia, que, depois de concluídos os estudos preparatórios, em 1791, o jovem imigrou para Portugal com o intuito de dar continuidade à sua formação. Aí, diplomou-se na Academia Real da Marinha e deu início a uma atividade que o acompanharia ao longo de toda a vida: a de tradutor de livros científicos. De volta ao Brasil em 1805 e instalado na cidade do Rio de Janeiro, Guimarães tornou-se lente das Academias de Marinha e Militar (1809-1823), atuou como membro da junta diretora da Impressão Régia, inaugurada em 1808, foi deputado constituinte, poeta, tradutor profícuo e escritor.

O seu grande contributo ao Brasil que se tornava independente veio, no entanto, da sua atividade de editor. Entre 1813 e 1814, o baiano dirigiu a mais prestigiada revista cultural do período joanino, O Patriota: jornal literário, político, mercantil, &c. do Rio de Janeiro – que tinha como epígrafe “Eu desta glória só fico contente, que a minha terra amei e a minha gente” ––, também foi redator da Gazeta do Rio de Janeiro (1813-1821) e do Diário do Senado (1826). Guimarães morreu na sua terra natal em 1838.

Em pleno processo de Independência, o baiano editou o periódico O Espelho, que muitos consideram o jornal “sustentáculo” da causa brasileira. O artigo que reproduzimos hoje, publicado em maio de 1822, traz uma longa descrição da importante viagem que o Príncipe Regente, D. Pedro, realizou pela Província de Minas Gerais, entre abril e maio de 1822, viagem ao longo da qual o Príncipe, segundo o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, teria completamente se “naturalizado brasileiro”.

Viagem por Minas Gerais 

Tendo visto várias cartas desta província reterem algumas particularidades da viagem que S. A. R., o Príncipe Regente, empreendeu e tão heroicamente desempenhou em benefício e para tranquilidade daqueles povos, parece-nos dever oferecer ao leitor o que elas contêm de mais notável no seguinte extrato.

Sabendo-se em Mariana, quarta-feira, 3 de abril, que S. A. R., o Príncipe Regente, se achava em Minas, o excelentíssimo senhor Bispo, que em todas as críticas circunstâncias daquela província manejou os negócios com a maior prudência e firmeza, a bem da união e felicidade do Brasil e Portugal, mandou imediatamente na Quinta-feira Santa o reverendo Dr. Marcos Antônio Monteiro de Barros, arcediago-presidente do cabido e provisor vigário geral do bispado, a protestar novamente a sua obediência e fidelidade ao mesmo augusto Senhor, não podendo fazê-lo pessoalmente pelo indispensável dever de sagrar nesse dia os óleos. Acompanhou-o o deputado da Câmara, o doutor Luiz José de Godoy Torres, vereador mais velho, e ambos, no dia 6, se apresentaram à S. A. R., junto à Capela dos Olhos d´água, freguesia do Prado, termo de Queluz, comarca de São João d´El Rei, 22 léguas distante da metrópole, onde desempenharam a sua comissão, sendo acolhidos pelo nosso Augusto jovem com a maior afabilidade, com que aí manifestou a grande estima e contemplação em que tinha o venerável prelado de Mariana.

Desde São João d´El Rei até Vila Rica, teve S. A. R. a satisfação de testemunhar a fidelidade de muitos soldados de certo regimento miliciano da Câmara de Vila Rica, que por saberem que eram chamados por um seu superior para serem obrigados a receberem munições para um infando objeto, que não cumpre memorar, foram testemunhar-lhe os seus humildes sentimentos, protestando-lhe que não podiam, nem queriam ter outro Regente senão S. A. R., que benignamente os recebeu, prometendo-lhes a sua real proteção.

Não se pode deixar de expressar o nome do honrado José Coelho de Oliveira Duarte, Capitão Mór agregado à Vila de Queluz, que com inumerável multidão de povo se foi prostrar aos seus reais pés, pedindo a sua Regência única, e que não queriam senão o governo de um, e que fosse o mesmo senhor, ao que S. A. R. respondeu que não podia ser, porque ele era constitucional, mas que tudo estava providenciado para o bom governo e felicidade dos povos. Na Vila Real de Queluz, 10 léguas distante de Vila Rica, no dia 8 de abril, apareceram-lhe o Dr. Manoel Inácio de Souza e Mello e o coronel reformado José Ferreira Pacheco, membros e deputados do governo provisório de Vila Rica, de Minas Gerais – donde partiram às 3 horas, por se terem demorado por certos motivos sinistros que por ora calamos –, os quais foram recebidos por S. A. R., posto que com a maior clemência possível, contudo, com dignidade e firmeza, que os fez tremer e a todos os circunstantes que não estavam na mesma situação. De Queluz deu S. A. R., em consequência das verdadeiras notícias que aí teve, as disposições já anunciadas e seguiu para Vila Rica, pernoitando no dia 8 no Capão do Lana, 11 léguas distante de Vila Rica.

Daqui mandou ao honrado e fiel Coronel João Luciano de Souza Guerra as ordens respectivas à prisão do tenente coronel José Maria Pinto, que ele, com o maior valor e fidelidade, exatamente cumpriu, apesar de obstáculo e perigos que se lhe opuseram.

No Capão do Lana se apresentou à S. A. R. o tenente coronel José Maria Pinto, que, protestando o respeito e obediência que devia, mereceu os mais prodigiosos efeitos da incomparável clemência de S. A. R.

No entanto, em Vila Rica, tudo era desordem e pavor. Cumpre deixar em silêncio os que a motivaram e quem andava à sombra do estandarte da Câmara, com os camaristas, prostituindo o respeito devido a tão séria corporação, incendiando os povos para o mais sacrílego dos atentados, aliciando as milícias, cujos indivíduos, pela maior parte, ainda que não podiam resistir à força, contudo, no ânimo e no coração, eram muito fiéis à S. A. R., de cujos sentimentos, porém, não era o novo batalhão de caçadores, ilegalmente criado, composto da relé dos facinorosos.

O intrépido e Augusto Regente, apesar de saber de tudo, com o maior denodo seguiu para Vila Rica, havendo precedentemente recebido, com a dignidade conveniente à sua real pessoa, novos deputados do governo provisório da província, que em consequência de ordens suas se lhe vieram apresentar.

Não podemos deixar de fazer ver ao público a obediência de José Maria Pinto, que de ordem de S. A. R. apareceu em Vila Rica e, tirando o chapéu à face de toda a tropa, clamou em voz alta: “Viva o Príncipe Regente do Brasil, o Senhor D. Pedro de Alcântara”, com o que tudo se acalmou. Às 6 horas da tarde, entrou triunfante S. A. R., aplaudido de todo o povo, reconhecido geralmente Príncipe Regente do Reino do Brasil, e desmontando com toda a galhardia na Igreja de São Miguel, no princípio da Vila, foi aí recebido debaixo do pálio e conduzido para a matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, onde se cantou o Te Deum, que ele acompanhou com o clero; e daí se recolheu a pé para o palácio por arcos triunfais, preparados no meio da mesma desordem pela intrépida maioria de seus habitantes, e com o mesmo aplauso de vivas. Iluminou-se a Vila nessa noite, não com aquele alinho que se desejava, porque muitos dos seus habitantes tinham fugido para os montes e outros se reconcentraram em suas casas; mas nos dias seguintes foi muito brilhante a iluminação. Nesse mesmo dia, o Excelentíssimo Senhor Bispo de Mariana tinha saído a esperar em Vila Rica a S. A. R., mas chegando à Água limpa, no princípio da Vila, retrocedeu cheio de pesar e lágrimas, persuadido que S. A. R. não entraria nesse dia. Voltou Sua Excelência no dia seguinte e apresentou-se lhe com vários cônegos e eclesiásticos em hábitos de cerimônia, e foi recebido com o agasalho devido ao seu merecimento e fidelidade, fazendo S. A. R. a honra à sua comitiva de mandar dar um lauto e esplêndido jantar.

Determinou S. A. R. ir à Mariana no dia 7 de abril, o que não pôde efetuar por nesse dia lhe chegar uma parada do Rio de Janeiro, e o efetuou a 8, dia da Senhora dos Prazeres, que foi de um verdadeiro prazer para aquela cidade. Neste, às 7 da manhã, o Excelentíssimo Bispo se apresentou com o corpo capitular, vários párocos, clero e seminaristas junto à primeira casa da cidade, próxima à Igreja de São Pedro, onde na forma do Pontifical Romano deu a beijar a cruz à S. A. R., que, logo que o avistou, se apeou; e feitas as cerimônias da Igreja, com toda a religião e respeito, se pôs debaixo do pálio, cujas varas eram levadas pelo presidente e atuais vereadores, vestidos da gala mais rica, pondo-se sua excelência a um lado da procissão com o cabido, clero e seminaristas, formando a mais extensa e luzidia procissão, cantando hinos e salmos.

Não se pode descrever, e é até incrível, a efusão de júbilo que em todos trasbordava. O povo clamou em chusma continuamente: “Viva o nosso Príncipe Regente e nosso libertador, morra o provisório”.

Junto à Igreja da arquiconfraria de São Francisco, fingia-se com ramos uma mata, de cujo centro saía um jovem, vestido como um índio, o qual, quebrando um arco e setas, feriu docemente a atenção de S. A. R. O clero que compunha a procissão entoava os salmos mais com lágrimas de ternura do que com vozes. As ruas estavam juncadas de flores e folhas até a catedral, a cuja porta sua excelência reverendíssima lhe fez a aspersão costumada e entoou o Te Deum, dirigindo-se à capela do Santíssimo Sacramento, donde seguiram para a capela mor; e ali S. A. R. acompanhou o coro, fazendo-se tudo com a maior decência e harmonia, estando a catedral armada com toda a riqueza. Depois das orações, lançou sua excelência a benção pontifical, que S. A. R. recebeu com ambos os joelhos em terra.

Finda esta ação, S. A. R., recusando a carruagem que se lhe ofereceu, seguiu daí a pé para o Paço Episcopal, que fica a grande distância. Acompanhado pelo Excelentíssimo Bispo, corpo capitular em hábito canonical, clero, militares e povo; todas as janelas das ruas da cidade, por onde passou S. A. R., estavam ornadas de colchas e de todas elas as senhoras lançavam nuvens de flores. Os aplausos repetidos e continuados do povo, os repiques de todos os sinos deram à Mariana o mais belo espetáculo que tem visto, e os que o presenciaram não poderão expressar. Recolhido S. A. R. ao Paço Episcopal, e desde então real, deu beija mão primeiramente só ao Excelentíssimo Bispo, depois ao cabido, à Câmara e, finalmente, a todos. Aí jantou só, sendo servido com todo o respeito e a maior delicadeza. Depois do que, jantou o Excelentíssimo Bispo com toda a comitiva, e S. A. R. voltou a dormir a Vila Rica, deixando os habitantes muito desgostosos por não pernoitar ali. Daí a dois dias voltou S. A. R. a suciar a saudade daqueles seus súditos e honrar novamente sua Excelência Reverendíssima, jantando no Paço, mas não pernoitou. S. A. R., por especial obséquio, mandou-se despedir daquele virtuoso prelado no dia 19, por cuja mercê sua excelência lhe foi beijar a mão no dia 20, com vários membros do cabido que dele se despediram cheios de reconhecimento e saudade.

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