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A historiadora María Elvira Roca Barea posa durante a apresentação de sua obra “Fracassologia. Espanha e suas elites: dos afrancesados aos nossos dias”, que ganhou o Prêmio Espasa 2019
A historiadora María Elvira Roca Barea posa durante a apresentação de sua obra “Fracassologia. Espanha e suas elites: dos afrancesados aos nossos dias”, que ganhou o Prêmio Espasa 2019| Foto: EFE / Victor Lerena

María Elvira Roca Barea (El Borge, Málaga, 1966) escreveu em 2016 Imperiofobia y leyenda negra [Imperiofobia e leyenda negra], um sucesso editorial, uma catarse, um desfibrilador, um novo rumo e um velho burburinho entre as côrtes que pautam como se deve pensar para não sair pela tangente sem permissão. [Leyenda negra, ou lenda negra, é um tema recorrente no mundo de língua espanhola. Segundo os adeptos da teoria, a visão pessimista da história do Império Espanhol decorre de propaganda protestante anti-católica. (N. t.)]

Filóloga clássica e hispânica. Mestre-escola e divulgadora. Ponto de inflexão. Do marco de sua valentia soam hoje relatos paralelos aos isolados pelos interesses da desinformação. Seu ensaio foi um acerto da editora Siruela, e os leitores o converteram no mais lido da última década, porque há gente que busque com sede a verdade, escapando dos dogmas do preconceito. Ainda que ninguém seja o Oráculo de Delfos.

Ensaísta, escritora, professora. Um sorriso desestabilizante que toureia a agressividade dos imperadores da narrativa. Em 2018 lançou 6 relatos ejemplares 6 [6 relatos exemplares 6] e em 2019 voltou a mexer no vespeiro com Fracasología. España y sus élites: de los afrancesados a nuestros días. [Fracassologia. A Espanha e suas elites: Dos afrancesados aos nossos dias.]

Imperiofobia foi mãe de España: La primera globalización [Espanha: A primeira globalização], o documentário de José Luis López-Linares que passou com méritos pelos cinemas do país e levou às telonas os buracos dos mitos interessados, os postulados acomodados pela mediocridade, o ilusionismo das ideologias e as mentiras de uma História que parece jornalismo caça-clique. Antes, discordar era cool. Agora pode ser um ingresso para o patíbulo do cancelamento massivo.

Faz sol em Málaga, e daqui do alto se vê o mar sem névoas por onde se navega a vela solta.

Que ideias sobre a história lhe rondam neste momento histórico?

Não é uma questão puramente de atualidade, mas cada vez tenho mais claro que a história precisa de novos enfoques para ser mais compreensível. Urge incorporar elementos majoritariamente preteridos até agora, como o clima, os fenômenos naturais como a pandemia, e o estudo arrazoado, não preconceituoso, dos impérios. Miro numa concepção da história menos limitada e mais verdadeira, porque a hiper-especialização fomenta uns provincianismos temáticos que a deixam fora de foco. A história sempre foi um campo abonado para todo tipo de colonizações ideológicas, e entre os provincianismos mentais, os geográficos, as histórias nacionalistas, que são uma enfermidade grave e eterna, e tantos condicionantes desonestos, fica claro que os estudos históricos requerem uma renovação.

Essa renovação implica honestidade, uma disposição sincera a encarar os fatos em uma disciplina que deve ser asséptica, ou olhar o passado sem preconceitos é impossível?

Eu abordo a história com a maior objetividade possível, não tanto por ser honesta com os demais, mas por mim mesma. Quero que aquilo que vi, vou ver e vejo não me pese nem me deixe mais limitada. A vida é uma coisa que dura cinco minutos. Já que estamos vivos, tentemos compreender o mundo em que vivemos o melhor que pudermos. E se eu chegar a uma ligeira conclusão, talvez me decida a dividi-la com meus semelhantes, mas, egoisticamente, divulgar essas descobertas é secundário para mim.

A senhora saiu da espiral com raciocínios e enfoques diferentes sobre história com Imperiofobia y leyenda negra. E recebeu uma chuva de bordoadas. Que pensou desde então sobre a sociedade dos dados, o peso dos argumentos e a batalha emocional?

Que não existe relação… A batalha emocional mistura assuntos distintos e enlameia a objetividade, às vezes em busca de adeptos para uma causa qualquer. Alguém tenta expor os argumentos mais racionais possíveis com honestidade, e a batalha emocional enreda tudo sem escutar, com juízos prévios. Nos aproximamos da verdade trabalhosamente, com limitações enormes, mas o ser humano não é só um ser racional. Tem uns componentes de racionalidade, mas são muito escassos, e deve defendê-los com muitíssimo esforço. A batalha emocional funciona quase sozinha. Basta deixar-se levar pela inclinação, e automaticamente o que acontece ao ser humano é chegar a isto ou aquilo emocionalmente e defendê-lo com a fé do carvoeiro até morrer, literalmente.

Perante os dados e os argumentos – a senhora viveu isso na pele –, a sociedade líquida responde com um tsunami emocional que afoga o diálogo?

Tudo o que parte do insulto, a difamação ou a calúnia deve ser expelido de nossas vidas, porque nos convém não pastar nesse pântano desconstrucionista. A confrontação com meus dados e meus argumentos se fez sempre nesses termos. Nunca existiu a vontade de manter um debate entre estudos sérios, vozes com prestígio, ideias sólidas e conversa respeitosa. A luta contra a Imperiofobia se dirigiu com ímpeto ao exclusivamente emocional, recorrendo às desqualificações ideológicas, algo muito significativo das sociedades que começam a padecer de um déficit democrático importante. Nesse caldo de cultura sempre reluz o comissário ideológico que estabelece as idoneidades e te coloca o bracelete amarelo com a estrela de David para situar os argumentos em posições frágeis.

Eu sou um pássaro absolutamente solitário, não pertenço à panelinha dos grandes papas da cultura, nem do mundo acadêmico. Um êxito como Imperiofobia ofendeu muitíssima gente que gastava o tempo no caminho em direção à visibilidade, e de repente foram passados por uma professora de escola. As críticas estomacais a esse ensaio também têm a ver com a enorme virulência política de que padece a Espanha nos últimos anos. A coleção de argumentos da leyenda negra não é só parte da história de muitas nações; é parte, também, dos nacionalismos de cantões, e estes sempre querem sangue.

Se o lamaçal emocional e ideológico impossibilita o diálogo, buscar a verdade da história e da sociedade será cada vez mais difícil?

O ser humano caminha em direção a um tipo de sociedade no qual há cada vez mais indivíduos aglomerados. As colmeias e os formigueiros agora são cada vez maiores. Observa-se numa olhadela que nos amontoamos, e esse crescimento das cidades é uma realidade sem precedentes. Para que os seres humanos possam viver em tal grau de aglomeração, é necessário que se limem as características da individualidade. Rumamos para uma sociedade de homens e mulheres fulanos, cheia de indivíduos muito mais parecidos com ovelhas e muito menos desafiadores quanto ao grupo. Esse contexto faz com que toda verdade que não se converta num dogma coletivo assumido por todos, bem como toda ideia que não vá a favor da manada, se tornem indesejáveis para os seus sujeitos.

Como os limites das margens são muito estreitos, as vidas dessas pessoas se fazem muito difíceis. A discordância se transforma numa dificuldade enorme, quase sem salvação, e em medo de ser separado do rebanho. A mídia e as redes sociais contam com uma grande capacidade para ocupar todos os espaços possíveis, e quase não há mais lugares aonde se refugiar. Isso asfixia a contestação, porque discordar te converte num pária universal. Discordar é um ato cada vez mais heroico, porque o indivíduo que sai do parâmetro é condenado à morte em vida. Os linchamentos mundiais aos quais assistimos não são físicos, mas isso não quer dizer que não afetem o direito a viver de maneira respeitável. Não é fácil sair dessas campanhas massivas de cancelamento, que muitas vezes giram em toro de mentiras deliberadas.

Onde estão os intelectuais honestos influindo na opinião pública?

Nunca tive vocação clerical. Não me entretenho buscando a honestidade ou a desonestidade de ninguém. Faço como Sócrates: tenho meu daimon e tento fazer o que considero decente, em função de meus parâmetros de decência. Não julgo meus semelhantes. Cada qual sabe o que faz e por que o faz. Me repugna essa clerezia que coroa o sexador de pintos ideológicos para que diga quem são os bons e os maus assinalando quem perder a cabeça.

O mundo da cultura não tem meio para enfrentar esse lamaçal?

Quando estudas a história, entendes perfeitamente que o mundo da cultura sempre esteve nos quintais do poder. Tal e como o entendemos, formam poetas, escultores, pensadores, que são gente que não produz nada e deve viver dos outros. Aí estão os filósofos gregos indo às cortes dos tiranos para virar adornos de mesa, incluindo Platão. Não há nada de novo sob o sol. É que faz muito frio quando se está sozinho diante do perigo.

The Economist diz que a Espanha perde qualidade democrática.

É uma questão que avança nos últimos anos. Perdemos uma educação em democracia, em liberdade, mas não creio que seja algo só da Espanha. É um problema que afeta todas as democracias ocidentais por diversas causas. A primeira é que já são maiores de idade demasiadas pessoas que não têm consciência de como foi trabalhoso estabilizar as democracias, não só na Espanha, insisto. As democracias são muito difíceis de sustentar, e perder o respeito por elas é um perigo. Antes da queda do muro de Berlim, o Ocidente sabia em primeira mão que existia um mundo sem liberdades democráticas. A passagem do tempo faz com que se esfumace essa experiência pela qual muitos deram a vida.

A isto se soma o peso social das gerações criadas na sociedade do Bem-Estar, habituadas a existir em uma adolescência perpétua, na medida em que não reconhecem gratidão. Não têm consciência do enorme esforço do que fizeram as gerações anteriores. Para muitos, o sacrifício de seus antecessores era só uma paisagem. A sobrealimentação, o narcisismo, a sede de ideologias ou a necessidade de se integrar em um grupo a qualquer preço são circunstâncias que levaram a essas gerações que não valorizam a democracia a não saberem viver em democracia. São os mesmos que vivem em uma sociedade de Bem-Estar sem saber viver em uma sociedade de Bem-Estar, e os que, sendo autênticos privilegiados da história, ultrapassaram os recordes de depressão. É uma estupidez pensar que a comodidade, a sobrealimentação e a segurança geram gente feliz. O ser humano é feito para a dificuldade, e é mais virtuoso e mais feliz superando dificuldades.

Como filóloga, crê que “o mundo clássico nos faz adultos”. Mas os clássicos estão cada vez mais distantes das aulas, da mídia, das tribunas…

Os clássicos incomodam muitíssimo.

Por quê?

Os clássicos estão cada vez mais esquecidos nas aulas, na mídia e nas tribunas porque incomodam: te afrontam com realidades humanas que são eternas e muito incômodas. O mundo clássico não tolera a canção de protesto. O mundo clássico engendra a tragédia e o épico. Esses textos estão escritos numa época em que não existia adolescência. Depois da infância vinha a idade adulta, e em seguida tu te encarregavas das tuas obrigações numa sociedade em que, se tudo te ia mal, o razoável era o suicídio. O mundo clássico expõe uma cidadania com níveis de soberania pessoal, de autodisciplina e de moral própria que agora são completamente inconcebíveis. O mundo clássico é a anti-vitimização e nós engendramos um mundo no qual a promoção e a gestão da vítima formam parte da educação. É assim: hoje somos incompatíveis com o modelo humano que propõem os clássicos.

Neste contexto e nestas circunstâncias, como se cultiva o pensamento crítico?

O pensamento crítico se cultiva pondo em perigo a vida. A liberdade individual sempre foi um risco. Agora é pior porque antes, ao menos, dava para fugir. Que fazia um grego quando se via obrigado a se exilar da pólis? Ia a outra pólis começar uma vida nova. Só tinha que atravessar a fronteira para virar a página. Agora não há fronteiras para atravessar e a asfixia é o clima ambiente. Esta é uma das razões pelas quais o pensamento crítico se reduz na mesma proporção em que mínguam as liberdades pessoais. Ao ser humano, sobretudo ao que estamos educando nas últimas gerações, não se deve pedir heroísmos, porque não tem capacidade para enfrentar riscos. É um círculo vicioso…

O êxito de ensaios como Imperiofobia ou El infinito en un junco, de Irene Vallejo, demonstra que há muita gente que continua com fome de verdade e pula por cima das listas oficiais dos mais vendidos.

É possível, porque há de tudo em todas as partes, mas em qualquer sociedade existem umas maiorias que impõem seu estilo e marcam a pauta. Nunca faltarão franco-atiradores. Depois de muitos anos como professora, constato que há um tipo de aluno que, ainda que o enfies num saco e lhe tapes os olhos, vai aprender. Não importa o desastroso sistema educativo no qual se forme. Esse tipo de estudante aparece todos os anos e os vês aí, sobrevoando a onda, em meio ao caos mais absoluto. Quando os olhas nos olhos, sabes que vão sobreviver e que vai ser muito difícil se converterem em um tijolo a mais no mundo. Já a pessoa que impõe a própria lei agora mesmo é uma criatura pseudo-analfabeta, muito infantil, narcisista ao máximo, a quem não podes contradizer, porque se ofende. Este é nosso molde social.

Vê riscos de sustentabilidade nas democracias europeias?

Não vejo perigos iminentes severos, mas sintomas de lenta putrefação. As ideias democráticas estão firmemente arraigadas, mas uma democracia não é só a gente poder votar de vez em quando. É fácil manter a fachada da democracia e deixá-la completamente vazia de conteúdo.

Como vê a esquerda política ocidental?

A esquerda nacional e internacional se transformou em aliada do grande capital e abandonou os trabalhadores. O populismo desprezou esse âmbito, por isso vemos que se cozinha a fogo lento uma enorme insatisfação. 80% do sustento do Estado sai das rendas do trabalho, e isto é um disparate. Estamos subsidiando a pobreza sem pensar como deixar de sobrecarregar as classes trabalhadoras, o que seria infinitamente mais justo. A esquerda caiu numa embasbacação grave e se esqueceu do povo. Ficamos sem uma esquerda que vá no nervo das desigualdades sociais.

Depois do Brexit, da pandemia e das ineficácias práticas, há risco de europofobia?

Na Espanha, não. A adoração espanhola pela Europa ultrapassa tudo. Vejo, sim, perigos para o futuro da União Europeia (UE), porque creio que ficou muito abalada depois do Brexit. Por isso está parada agora: nem para trás, nem para frente. Na crise russo-ucraniana, que vem de longe, a UE demonstrou ser inoperante em questão de política externa. Isso não é novidade, mas a questão é que não melhoramos. A UE tem um poder tão frágil que, se não avança, retrocede. No âmbito da política interior, aí está, em meio a um conglomerado no qual a moeda única não foi capaz de desenvolver contornos para uma fazenda comum que unifique o sistema de tributação, o qual é um disparate. A UE deve demonstrar que a unidade é a melhor opção, especialmente frente à Grã-Bretanha. Se não conseguir em dez anos, derreterá, enlanguescendo até morrer.

A Espanha tem alguma relevância mundial?

Nenhuma! Outra coisa é que, no passado, existira o império espanhol ou monarquia hispânica – como o senhor quiser chamar – que foi a potência hegemônica que durou três séculos e foi o império ocidental mais influente desde o Império Romano. Mas isso não é a Espanha europeia de agora… Há gente que não saiu mentalmente daí, como o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador. Faz duzentos anos que esse império implodiu e se fragmentou, gerou um montão de realidades políticas, nenhuma das quais demonstrou capacidade nem para se estabilizar, nem para ter a menor influência, não mais no mundo, mas nem sequer sobre o seu continente. A vida daquele império deixou uma língua colossal e milhões de falantes sem cabeça. Sua força cultural é inegável – a música, a literatura... –, mas nada mais. Do ponto de vista político e econômico, tudo é uma catástrofe, porque conseguimos ser os últimos da turma: os que estamos na Europa, na Europa, e os que estão na América, também.

Como são as relações entre a Espanha e a Íbero-América?

Não creio que a Espanha seja uma realidade distinta do ponto de vista hispano-americano. As relações no interior do mundo hispânico, vejo muito mal. Todos os países hispânicos sofrem por por dentro de um trastorno bipolar por não terem sabido entender e aceitar o fim do império. Dois séculos depois, seguem com cantilenas que são cortinas de fumaça para procrastinação inoperante.

A que podem aspirar as próximas gerações de espanhóis?

As novas gerações de espanhóis têm pela frente um abacaxi muito difícil de descascar, porque vivem num país em plena balcanização. Vais ser muito difícil tentar impedir uma fragmentação política. Ademais, estão em meio ao futuro incerto da Europa ocidental. Tem que ver se é capaz de se unificar de maneira que esteja em condição de defender seus interesses, porque já não pode viver mais tempo debaixo do guarda-chuvas dos Estados Unidos, uma potência em plena decadência.

Somos conscientes da relevância do Oriente?

Não. Estamos vendo isso agora: se a China apoiar a Rússia, a coisa fica tremendamente difícil. Mas os europeus estamos muito perdidos e seguimos vivendo das velhas glórias. Não assumimos que vem um mundo novo no qual o Ocidente retrocede frente a uma hegemonia asiática evidente. No mínimo a jogada inteligente era ter atraído a Rússia para o Ocidente…

©2022 ACEPRENSA. Publicado com permissão. Origina em espanhol.
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